Tempo(s) em Hedwig Conrad-Martius
Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular do
Centro de Ciências Jurídicas e Políticas
da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Convidado nos Programas
de Pós-Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes e PUC-SP
1. Dados
Biográficos
Nascida
em Berlim, em 27.02.1888, filha do médico Friedrich Martius, professor em
Rostock, que apoiou a vocação demonstrada pela filha para os estudos e carreira
acadêmica, ainda inusuais para mulheres na época. Tanto que inscreveu a filha
em Berlim para cursar a única escola para moças que dava acesso à universidade,
concluindo-a com o Abitur. E assim
ela se tornou uma das primeiras mulheres da Alemanha a ingressar no ensino
superior, inicialmente seguindo cursos de literatura e história, em Rostock e
Friburgo, ingressando depois em Munique, para estudar filosofia, já em 1909, na
recém-fundada, por Theodor Lipps, Associação Acadêmica de Psicologia,
juntamente com nomes que na época estudavam com entusiasmo as “Investigações
Lógicas” de Edmund Husserl, uma alternativa ao transcendentalismo neokantiano
que então imperava, nomes que viriam a se destacar no movimento fenomenológico,
como os de Moritz Geiger, Adolf Reinach, Alexander Pfänder e seu futuro marido,
Theodor Conrad, sendo por recomendação do primeiro, seu orientador, que ela
veio a se transferir para a Universidade de Göttingen, a fim de estudar
diretamente com Husserl, há exatos 100 anos, no semestre de inverno de 1911...
Ali encontraria, em 1920, Edith Stein, com quem manteria estreitos laços de
amizade e colaboração intelectual pelo resto da vida. Em Göttingen Hedwig
organiza, fora do ambiente universitário, uma Sociedade de Filosofia, que
girava em torno da figura de Adolf Reinach, nesse meio-tempo também
estabelecido em Göttingen, que depois se notabilizará por sua contribuição para
a fenomenologia do direito, autor de “Os Fundamentos apriorísticos do Direito
Civil”, tendo outras direções de seu pensamento ficado sem maiores
desenvolvimentos em razão de sua morte prematura, em 1917, no campo de batalha
da I Guerra Mundial, ao qual acorrera voluntariamente. Hedwig manter-se-á fiel à proposta
fenomenológica dita “realista” de Reinach, vindo a desenvolver sugestões suas,
uma delas, das mais intrigantes, justamente na obra a ser aqui enfocada, sobre
o tempo (Die Zeit, 1954, abrev.: Z): o estudo da antevisão premonitória (zeitliches Hellsehen), a clarividência temporal ou o “ver
claro-temporalmente”, para traduzir de modo mais fiel a expressão alemã. A
“visão” (das Sehen), porém, Hedwig
dizia ter lhe sido ensinada por Husserl, de quem vai divergir em sua abordagem,
do que seria uma recaída do Mestre no transcendentalismo ou, mesmo, no
psicologismo, na obra posterior às “Investigações”, sendo que a ela interessava
prosseguir, nos passos de Reinach e outros discípulos de primeira hora de
Husserl, como Jean Hering, uma pesquisa designada como “ontologia essencial” (Wesensontologie), também diversa, como a
simples designação indica, da outra grande corrente divergente da
fenomenologia, aquela encabeçada por Heidegger, da ontologia dita (por ele)
fundamental, que em contraste com aquela se pode também dizer existencial, pois
tem como escopo a investigação no ser que somos os que existimos sabendo dessa
condição, finita, como somos os humanos, do que é isso, o ser, a “coisa mesma”
por excelência – para referir o “princípio dos princípios”, quase um grito de
guerra husserliano, de que nos voltemos para as coisas mesmas, às quais o veto
kantiano teria tornado inacessível ao conhecimento, limitado deste então as
suas manifestações fenomênicas no tempo e no espaço da física hoje clássica,
aquela mecânica, quando para Hedwig do que se trata, para dizer em seu próprio
idioma, é de obter Wesenserkenntnis aller Dinge, auch der vom Denken unabhängigen Welt (em vernáculo: “conhecimento essencial de todas as coisas domundo inidependentemente do pensamento”), ou, em suas próprias palavras, „die radikale Sachlichkeit, um welche Gebiete es sich immer handeln mochte, das unbeirrbare, stets neue Anfangen angesichts irgendeiner aufgegriffenen Problematik“ (em vernáculo: “a radical objetividade, seja em que campo for, o inquestionável, obtida recomeçando sempre de novo a consideração da problemática visada”) – essa necessidade de recomeçar sempre para ir corrigindo os equívocos é uma tarefa a ser atendida dirigindo cada vez maior consideração às coisas tal como as percebemos, valorizando a percepção como sendo o que o termo alemão expressa, uma Wahr-nehmung, um “tomar como verdade”, sem importar se o percebido existe ou não, pois o que ela busca é sua essência, uma essência que independe de existência, podendo mesmo ser mais difícil de se perceber enquanto existente, “ex-sistente”, ou seja, “sendo fora”, transcendente, sobretudo em se tratando do sujeito do conhecimento apegado a seus modos de existência e de consciência rotineiros. Ora, são exatamente essas condições de
limitação do acesso ao ser que Hedwig investigará, muito bem informada pelos
desenvolvimentos contemporâneos das ciências naturais, na sua trilogia dedicada
ao estudo, por ordem de aparição das obras, do tempo, já referida, do ser (Das Sein, 1957), e do espaço (Der Raum, 1958), das quais a primeira
será aqui sucinta e (espero) didaticamente abordada.
Mas
voltando ao escorço biográfico de nossa A., temos que, em 1912, ela vence um
concurso na Faculdade de Filosofia da Universidade de Göttingen com a obra “Die erkenntnistheoretischen Grundlagen des
Positivismus” (“Os fundamentos epistemológicos do
positivismo”). Impossibilitada de prosseguir seus
estudos em nível doutoral nesta universidade, por não constar a língua grega em
seu exame vestibular, o Abitur, termina obtendo o título em Munique, com o referido trabalho premiado, onde o sucessor de Lipps e seu antigo colega Alexander Pfänder
havia assumido a cátedra, o que já não seria possível a Hedwig, por sua
condição de mulher, àquela altura, lhe vedar o acesso ao pré-requisito, que
seria a livre-docência – na época, só se concebia como portadoras desse título
às esposas de livre-docentes, título
meramente honorífico, como o de embaixatriz ainda hoje, quando se é casada com
um embaixador...
Seu marido, o também filósofo, fenomenólogo pioneiro do que viria a
ser a Escola Realista de Munique e Göttingen, Theodor Conrad, diante da impossibilidade
da esposa de fazer carreira acadêmica e de sua dedicação às plantas, adquiriu,
ainda antes de começar a I Guerra Mundial, um pomar em Bad Bergzabern, no
Pfalz, donde ela poderia auferir ganhos, fazendo algo que sabia e gostava, o
cultivo do solo, mas daí extraiu também material para escrever uma obra
filosófica, Die Seele der Pflanze.
Biologisch-ontologische Betrachtungen (1934), sobre a alma das plantas, como indica o
título, a qual ela conclui que se mostra através das flores, por serem elas os
olhos de suas plantas se abrindo. O sítio logo se tornou um local de encontro
entre os amigos, fenomenólogos, havendo Spiegelberg em seu texto sobre a
história da fenomenologia chegado a referir-se a um “Círculo de Bergzabern”.
Ali, uma das visitantes mais assíduas, a hoje Santa Edith Stein, converteu-se
ao catolicismo. Em 1937 o casal vendeu a propriedade e mudou para Munique, onde
a situação política impedia que publicassem seus trabalhos. Em 1938, Hedwig
ainda consegue publicar na Áustria “Ursprung
und Aufbau des lebendigen Kosmos” (“Origem e Construção do Cosmo vivente”),
republicada em 1949 com o título “Die
Abstammungslehre” (“A doutrina da evolução”, notoriamente
anti-evolucionista), mas em seguida é impedida pela censura política, em vista
de sua origem judaica, de continuar publicando. Só após a II Guerra começam a
vir a luz seus novos trabalhos, em filosofia natural, matéria em que veio a
assumir a docência na Universidade de Munique, em caráter honorário, poiss já
havia ultrapassado a idade-limite para habilitar-se como professora regular,
catedrática. Faleceu em 1966, em Starnberg, na companhia de seu marido e de uma
filha adotiva.
2. Aprofundamento
da caracterização geral de sua postura filosófica
Como integrante da corrente dita realista da fenomenologia, Hedwig
Conrad-Martius (de agora em diante, HCM) entende terem as essências intuídas,
empaticamente percebidas, uma subsistência e validade próprias, totalmente
independentes do sujeito que as conhece, correspondendo a ambos como que duas
formas de existência subsistente, “hypokamenomênica” (do grego hypokamenon, termo filosófico para
denominar a substância a tudo subjecente) e, logo, formas distintas de
conhecê-las, por nós humanos, em que ambas se fundem, a saber, a hilética (do
grego hylé, literalmente, “madeira”,
mas tecnicmente, em filosofia, a matéria) e a pneumológica (do grego pneuma, literlamente, ar, e no contexto,
“espírito”). Um ser puramente material tem uma consistência já pronta e
acabada, enquanto aquele espiritual tem como característica a possibilidade de
transformação, desde que não seja ele próprio um produto já, como por exemplo
os personagens de uma obra de ficção, aos quais, no entanto, apesar de dotados
de existência, falta aquela consistência hilética. Daí se
poder falar, com o importante fenomenólogo polonês pertencente ao Círculo de
Göttingen, como HCM, Roman Ingarden – de quem Karol Woytila (o Papa João Paulo
II, que canonizou a colega de seu conterrâneo, Edith Stein) foi discípulo -, de
uma “incompletude ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o
que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura são os autores das
obras ficcionais (cf. Barry Smith, “Meinong
vs. Ingarden on the logic of fiction”, in:
Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss., disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e Josef
Seifert, “The truth about fiction”, in: Kunst
und Ontologie. Für Roman Ingarden zum 100. Geburtstag, W. Galewicz et
al. eds., Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1994, p. 97 ss.). Assim, os juízos realizados no âmbito deste
universo ficcional diferem daqueles feitos a respeito da realidade propriamente
dita, a ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingarden,
“quase-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou “falsos”, pois a
“realidade” da ficção é uma simulação da realidade, enquanto ficcional, mas o
mesmo não se pode dizer dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se
referem a um possível “estado de coisas” (state
of affairs, Sachverhalte), tal
como destacado por Reinach, em contributo que hoje vem sendo retomado. Isto não
é de se considerar uma simulação da realidade, mas uma outra realidade, de uma
outra natureza – deontológica, por exemplo, no caso do Direito, do âmbito do
dever ser, e não puramente ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente construída, sim, tal como a
ficção, mas de modo coletivo, difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a
impõe a nós COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não apenas
podemos, se quisermos -, e isso para evitar que, em razão do descrédito, se
venha a sofrer conseqüências, bem reais, como são as sanções jurídicas.
Já os objetos
pertencentes ao campo designado por HCM realidade efetiva (wirkliche Wirklichkeit) são reais não por existirem no tempo e no
espaço, mas antes, existem espácio-temporalmente por pertencerem essencialmente
desse modo ao mundo (HCM, Realontologie,
in: Jahrbuch für Philosophie und Phänomenologische Forschung, 6, 1923, §
7). O esforço a ser realizado – que HCM certa feita descreveu como uma obsessão
pelas coisas (Sachbesessenheit) -,
então, é de se tornar receptivo para “deixar as coisas” como que falarem por si
mesmas, para aprender com elas, percebendo-as em seu ser, para além – ou aquém,
de qualquer modo, fora – das referências, de resto, subjetivas, por
transcendentais, de tempo e de espaço, o que requer que a compreensão
filosófica – e que só pode ser filosófica, por escapar ao escopo de qualquer
ciência – do que é tempo, espaço e, claro, do que é ser, objeto de tratamentos
em separado por nossa autora, na já referida trilogia, de maneira específica.
Autoras que se ocuparam do trabalho de HCM e de outras filósofas, como Angela
Alles Bello (v. “A fenomenologia do ser humano”, Bauru, 2000) e Ursula I. Meyer
(“Die Welt der Philosophin”, esp. vol. IV, Aachen, 1998), vêem nessa postura de
maior abertura para a percepção do – e no – mundo sem como que agredi-lo com
nossas idéias preconcebidas a seu respeito,
algo tipicamente feminino. Entendo que, mesmo em assim sendo, não
haveria aí algo como com que uma predestinação anatômica para tal, aludindo ao
conhecido dito freudiano, de que a anatomia é um destino do qual não escapamos
os seres linguageiros que somos, pois em um poeta como Francis Ponge, autor do
célebre livro de poemas programático já em seu título, “Le parti pris des
choses”(1942), podemos encontrar essa mesma disposição para deixar ver as
coisas em seu próprio mundo, recuperando uma capacidade de expressá-las e expressarmo-nos
que nos liberte do desgaste a que o modo como costumamos falar a respeito nos
submete. Deixemos que ele fale por si mesmo, em uma passagem bem
representativa, encerrando seu texto “Cristais
Naturais”, de 1946 (contido em “Métodos”, RJ: Imago, 1997, p. 85), um dos
que produziu não para atender o que considera o reclamo absurdo dos filósofos,
desde Sócrates (segundo Platão, claro), de pedir aos poetas que digam de outro
modo, explicando, o que disseram do modo que lhe era possível, em sua poesia, mas
para dizer o move e co-move ao fazer isso, a poesia: (...) “Tenho medo de que
tudo isso seja bem subjetivo! // Outra coisa que me parece essencial, que
gostaria de dizer. Vocês sabem que o que me sustenta, me empurra, me obriga a
escrever, é a emoção provocada pelo mutismo
das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de
solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas,
solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos...//Por que não
dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios
homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavras, são tão mudos quanto as carpas ou os
pedregulhos? Na verdade que eles não dizem nada, que quando falam o que dizem é
nada – que não exprimem nada de sua
natureza muda?// E ao contrário, quando eles tentam realmente exprimir alguma
coisa – pois muito bem, só o que temos é a impressão de que conseguiram; mas
quanto a entender, não entendemos nada. Parece que estão falando sânscrito,
chinês. Incomunicabilidade das pessoas, das mônadas. Por quê? Porque o sistema
de referências nos é obscuro...” (grifos do A.). Do que se trata, então, é de
compreender tal sistema de referências – e propor outros, com os quais possamos
nos entender, concordar, discordar sobre o que com eles buscamos captar.
Na(s) matemática(s)
temos exemplo(s) típico de um tal sistema de referências, que é como uma malha
que tramamos para envolver ao que percebemos, a fim de nos situarmos em face do
que nos deparamos. E na matemática tem-se também um excelente exemplo de como
podemos nos ocupar deste meio de percepção como um fim em si mesmo, praticando
um construtivismo formalista, contra o qual Husserl se insurgiu, ao advogar uma
postura dita intuicionista.
Para os intuicionista, Luitzen
Brouwer a frente, tendo ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes
dele o seu mestre, Weierstraß, a prática da matemática, como explica Jairo José
da Silva (em Filosofias da Matemática,
São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152), “não se constituía na derivação de
teoremas, no interior de uma lógica determinada a priori, como para os logicistas e formalistas, mas no exercício
criativo de uma consciência matemática, limitada apenas ao princípio formal a
que está sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o intuicionismo,
enquanto vivência de uma consciência moldada pelo sentido interno, que é o
tempo, a investigação matemática se dá em um processo temporal finito, mas que
não é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-determinado. Toda
construção que extrapole a intuição fundamental é inexistente, mera forma
fantasmagórica, concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre com
os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e abusa, sem que deles possa
oferecer um verdadeiro conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato
infinita pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de momentos – e
também por vivermos, até onde nos é dado
perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um evento singularíssimo,
o assim chamado “big bang”, e cada
vez mais se confirma a hipótese de que marchamos rumo a um “big crunch”, um colapso cósmico – que
pode gerar novo “big bang” quando se der o fim da expansão de
um universo que, estando em desaceleração, então pararia, chegando assim,
literalmente, o fim dos tempos, ou melhor, do tempo, e a morte cósmica – um
cosmos que contém entre suas propriedades a vida, e a consciência, tal como se
revelam, ambas em nós, e a quem nossa A. atribui, explicitamente, a primeira
dessas qualidades (v. já a obra antes referida, publicada em 1938, cujo título
contém a noção de um universo vivo, lebendiges
Kosmos) e, de modo subentendendido, também a segunda, ao referir, ao final
do livro sobre o tempo, a uma “imaginação (do) real” (reales
Imaginatio) e uma “intencionalidade objetiva(da)” (objektive Intentionalität), mesmo sem explicar exaustivamente o que
seriam, sobretudo esta última. Daí HCM associar o tempo com a vida, pois em ele
faltando, com o correspondente imobilismo, ocorreria o que também conhecemos
como sendo a morte. Ela também vai dizer que esse momento inicial e o outro,
final, se considerados de ponto de vista onticamente temporal, podem ser
aproximados até o momento presente, ou seja, o que já não o é, não é e o que
ainda não o é, também não, sendo, ambos, nada, tal como seria antes da origem e
depois do final...
3.
Do tempo e suas espécies: a duração indefinida
transcendental-imaginativa (ou intencional-subjetiva), a temporalidade
instantânea metafísico-real (ou intencional-objetiva) e a eternidade presente
transfísico-eônica (ou imaginóide-etérea).
Um
ponto, então, para começar, e eis o que melhor mesmo representa o começo, como
também já a beira do fim, tanto que o “corte de Dedekind” em uma reta, ou seja,
o que corta uma linha, é como se define matematicamente, na atualidade, o
ponto. E com esse ponto, como seu desdobramento, “explicação”, se pode imaginar
o que seria tudo o que se desdobra no tempo e no espaço, alterando e
movimentando-se, a partir desse primeiro e já definitivo ponto. O ponto não tem
dimensão, ou melhor, tem dimensão zero, pois não ocupa nenhum lugar no espaço,
espaço que, também, não há, onde só há um ponto, ou melhor, o ponto. Ele também
se encontra fora do tempo ou, dito de outra maneira, nele não há tempo, pois
não há diferença, mudança, se não há sequer movimento. Lembremos, como o faz
HCM, que o tempo, para Aristóteles, é a medida, o número do movimento como
relação entre o anterior e o posterior. E uma das consequências da postura
anti-subjetivista adotada por ela será, justamente, recuperar a possibilidade
de se debater com pensadores antigos, digamos, tal como se tivessem formulado
em nossos dias seus argumentos, pois se afasta a imposição moderna do sujeito
como máximo fundamento securitário do conhecimento. No que diz respeito à
discussão filosófica sobre o nosso tema, o tempo, segundo ela o primeiro a
referi-lo à subjetividade e interioridade humanas, sob evidente influência do
cristianismo, foi Santo Agostinho, o qual, em conhecida passagem das
“Confissões” (XI, 14), diz só saber o que é o tempo no interior de si, não
podemos exteriorizar esse conhecimento: “Se me perguntam, sei o que é, mas se
me pedem para explicá-lo, já não consigo”.
Fora do espaço e do tempo, lá onde talvez
qualquer um alcance em sonhos, ou quem seja especialmente dotado para a criação
artística, religiosa, bem como de clarividência, há esse ponto, em que se tocam
as esferas do tempo do mundo e daquele oniabrangente e supramundano, dito
eônico (abrev.: Än) por nossa autora pode ser o ponto – estar neste ponto seria
estar onde teologicamente se poria a divindade, por ser lá onde o sem nome e
sem número, eterna e imutavelmente pode "in-(e)sistir". Ter atingido
esse ponto é como interpreta nossa autora a iluminação de Buda, tal como Mircea
Eliade a teria dado a conhecer, posto que de lá declarou revogada, para com
ele, a terrível lei da irreversibilidade do tempo, dizendo-se contemporâneo do
início do universo, assim como a chegada desse tempo seria o que, para ela, se
pode estar anunciando na mensagem cristã da ressurreição dos mortos no final
dos tempos, ou deste tempo (Die Zeit,
pp. 282/283). Nós, os que simples e
atualmente "ex-sistimos" – e para HCM, contra Heidegger, essa não é
uma característica apenas dos humanos, por saberem que sua vida tem no seu
desaparecimento, na morte, sua destinação, assim como antes de nascer não
existia, sendo a vida essa via indo do nada ao nada, um entre-nadas de nada,
pois todo ente está sempre, do ponto de vista ôntico-temporal, a todo momento,
saindo do nada, o que já não é, o que é passado, e se dirigindo, ou sendo
tragado pelo outro nada, o que ainda não, que é o futuro - parece que fomos
expulsos, por outro lado, dessa condição, de sermos sem sabermos que não somos,
pois ser é ser desde sempre e para sempre, e assim estamos, “sendo fora”,
“ex-sistindo”, mas a ela, a condição pré-natal, retornaremos, se é que não é
nela que já estamos, ou continuamos, sem perceber, por não tematizarmos o
chamado tempo eônico (Än). Este é o antípoda do tempo real, pois se ele (e
nele) é sempre, só, o agora, (n)aquele, ao contrário, é já presente tudo o que
aconteceu e acontecerá no mundo abaixo ou melhor, dentro dele: é o que nos
sugere a imagem do ponto, se o pusermos em movimento, para fora da sua a-dimensionalidade,
lançando-o em uma primeira dimensão, que assim se cria, onde (e quando) então
ele aparece como uma linha. Estendendo-se, com o passar do tempo, em um espaço,
que é essa extensão mesma, da linha, cortando um plano que ela, também, cria,
gerando assim, numa segunda dimensão, a superfície.
O espaço, real, por onde se estende a linha,
com o tempo, cronotopicamente (expressão de Bahktin, cunhada para designar a
quarta dimensão, do espaço-tempo, da teoria relativística einsteiniana), irá
encurvá-la, o que nos apresenta uma quarta dimensão: o espaço-tempo, segundo a
teoria da relatividade, à qual melhor corresponde uma geometria não-euclidiana,
como a de Riesman. A reta, no real, portanto, é o segmento de um círculo, e só
é uma reta no plano imaginário, da superfície bi-dimensional. Já no plano
simbólico, podemos convencionar que o círculo, real, assim como a reta,
imaginária, seriam como um ponto, infinitesimal, próximo de nada, do vazio, do
zero. Sua proliferação, numérica, resultaria em tudo quanto tomar forma, tal
como delineado, intuitivamente, no plano geométrico euclidiano, como uma folha
de papel composta de pontos. Nesse papel/plano, se introduzirmos dois eixos
ortogonais referidos por coordenadas, normalmente designadas por x, para o eixo
horizontal, e y, para aquele vertical, então os valores numéricos de x e y se prestarão para localizar e nomear
qualquer ponto, que seriam esses números, combinados, sem ser nenhum deles,
exceto se forem definidos como número que não é igual a si mesmo, ou seja, o
zero, na conhecida definição de Frege. Então, são esses conjuntos de nulidades
que configuram tudo o que é, que só é por haver quem, vindo a existir, ilude-se
com o começo e o correspondente fim de si, quando melhor seria entender, como o
poeta, filosofando, que “each is at once the centre and the circumference; the
point to which all things are referred, and the line in which all things are
contained” (Percy Bysshe Shelley, “On life”, in: A defence of poetry and
other essays, S.P.: Landmark, 2008, p. 16. Trad.: “Cada um sendo por sua vez o centro e a
circunferência; o ponto ao qual todas as coisas são referidas e a linha na qual
todas as coisas estão contidas”).
O avanço da matemática, que é de
se considerar como o avanço da própria imaginação humana criativa em um de seus
setores, terminou impulsionando o avanço da investigação da matéria e do espaço físicos, permitindo
que se sofisticasse e ampliasse muito nossa apreensão do estado do mundo em que
nos encontramos, forjando a cosmologia relativística e a microfísica quântica,
sobre as quais estava muito bem informada HCM. Nesta última, por exemplo, já se
sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta partícula última
indivisível, um “ponto”, tal como concebido na geometria euclidiana, tornada
padrão de racionalidade pelo cartesianismo da (primeira ou mais recuada)
modernidade. Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo, reduzido
a proporções infinitesimais, e consideremos que uma reta é formada por uma
série de pontos, assim como em cada ponto da reta se pode conceber o cruzamento
com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas
cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um corte, que em
matemática se denomina “corte de Dedekind”, já referido – um abismo na reta. A
imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e
ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode
obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração
redutora diante dela.
O movimento de um ponto produz
uma reta, o movimento circular da reta produz o círculo e assim por diante.
Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na práxis empírica, determinando
aquelas formas em sua identidade absoluta, com propriedades absolutamente
idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas elementares, por uma
operação sobre elas se constrói novas formas de maneira metódica, com um método
que garante verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura
literalmente circular desta forma de pensamento fica evidenciada quando
propomos que se conceba o ponto como um círculo diminuto, na tentativa de
forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às pesquisas da
física quântica sobre a estrutura do real. Quanto a saber se haveria
continuidade entre os dois mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que
de maneira alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o ideal não
é um dos possíveis do real, obtidos pela variação imaginária das formas
sensíveis (Cf. “Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die tranzendentale Phaenomenologie”, 1936, § 9, passim). Por isso que a reta será
melhor representada como uma continuidade imaginária dos pontos em que se
tocam, na série de círculos que são os pontos,
postos lado a lado, pois assim fica evidenciada a verdadeira
descontinuidade, que a imagem da reta nos oculta, assim como o conceito vulgar
de tempo, como um contínuo retilíneo infinito ou ilimitado, quando é, antes, ao
contrário circular, logo limitado, e descontínuo.
Eis que aparece sob nova luz a
desgastada e desvalorizada definição de Euclides para o ponto, como “aquilo que
não tem partes”, se combinada com seu quinto postulado não-geométrico, de que o
todo é maior do que as partes, o que faz o ponto escapar do todo, de toda e
qualquer representação ou manifestação no real, mas permanecendo na consciência
imaginativa. Da mesma forma, o tempo adquire essa condição que HCM chama de
“transcendental-imaginativa”, bem diversa do tempo real (abrev.: Rz), pois
enquanto aquela existe na consciência, subjetiva, este existe no mundo real
(abrev.: W) ou do real, também espacial, sendo o tempo de agora, o da
atualidade (= Aktualitätszeit,
abrev.: Aj) esse corte ou furo que atravessa o tempo real num mundo em contínua
descontinuidade. O tempo no direito, por exemplo, sobre o que escreveu densas
páginas o filho de Husserl, Gerhard, exemplificaria muito bem esse caráter
imaginário e (intra-)subjetivo da temporalidade irreal, humana, beneficiária da
descontinuidade do tempo real, pois expressando a liberdade a que assim temos
acesso, podemos fazer o tempo, com o direito, retroceder ou ser diferido de
acordo com disposições normativas, tanto legais como contratuais... Em
conclusão, temos que não há, pela investigação de HCM, o tempo, mas sim,
tempos, que são também lugares onde acontecem mundos - autopoieticamente, para
utilizar uma expressão que não era empregada ainda na biologia em seu tempo, ou
mesmo na teoria do conhecimento, mas que ela já anteciparia, quando desenvolvia
idéias como a de auto-constituição da natureza, tal como aparece já no título
de uma obra sua publicada em 1944, a saber, Der
Selbstaufbau der Natur, Entelechien und Energien.
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