Entrevista
com o professor Dr. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
Professor
Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Livre-docente em Filosofia do Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universität
Bielefeld, Alemanha. Doutor e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP -, onde coordena o
Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos, e também do Curso de Mestrado em
Direito da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro – UCAM. Pesquisador
das Universidades Paulista (UNIP) e Presbiteriana Mackenzie.
Paola
Cantarini –. Em seu mais novo artigo “Primórdios e Atualidade da Luta pela
Constitucionalização no Brasil: Considerações filosóficas no Bicentenário da
Constituição de Cádiz”, o professor ressalta o papel do filósofo, na
interpretação do direito. Poderia explicar melhor tal relação com a frase, que
consta do trabalho “no tempo histórico,
futuro é passado”.
WSGF
– Esta frase é de Kosseleck, professor da universidade de Bielefeld, ainda na
época em que fiz meu doutoramento lá. Ele era uma das estrelas, das maiores, só
não era maior do que o Luhmann, e antes deles, o Norbert Elias. Bem, como acho
que você sabe, deles a minha ligação era com o Luhmann; a frase referida, como
o pensamento do autor, é de proveniência heideggeriana; significa que em geral
só vivemos o que tínhamos como possível de ser vivido. Logo, ela revela a nossa
triste condição de eternamente reviver o passado – mas essa tristeza precisa
ser transformada em um sentimento que nos eleve, ao invés de abater, pelo que Friedrich
Nietzsche chama de amor fati, e justamente
diante desse que considera o maior pensamento que o acometeu, o do eterno
retorno do mesmo.
Paola
Cantarini – Por que? Não entendi o reviver o passado, assim como também não
entendo, e gostaria de entender, essa ideia do Nietzsche, esse tipo de amor, ao
fado, ao destino...
WSGF
– É como o direito que pretende regular o futuro, o que vai acontecer. E ele
faz isso como? A partir do que já aconteceu, do passado; essa para mim, no
momento é a principal questão da filosofia do direito. Eu cunhei neste artigo a
que você se refere, para nominar esta ação do direito, o verbo retroprojetar, ou
seja, projetar no futuro o passado, o que está atrás, retro. Portanto, não tem
nada a ver com este simpático aparelho em vias de extinção, o retroprojetor
(rsrsrsr). E o amor fati é uma ideia
com uma clara descendência estoica, reproposta no contexto do pensamento
nietzscheano por alguém que, é preciso lembrar, sofreu muito, física e
afetivamente, e que mesmo assim identificava no dionisíaco o sentido da vida.
Paola
Cantarini – Depois queria voltar a esse ponto, mas agora não, mais para o
final. Então, no mesmo artigo, o professor ressalta a relação do direito e o
tempo. Poderia melhor explicitar tal relação, de acordo com sua perspectiva e
se teve influência da obra Sein und Zeit,
de Martin Heidegger.
WSGF
– Sim, claro, porém, Heidegger é um autor-chave, para mim, para o Foucault,
como ele mesmo diz em uma de suas entrevistas, para toda a chamada filosofia
continental contemporânea, a que não é analítica, pois esta se referencia em
Wittgenstein – que tem Frege antes dele, assim como Heidegger tem Husserl, não
esqueçamos. Mas neste artigo de que vc. fala, dentre outras coisas, e num
lugar, talvez inapropriado, ou, no mínimo, inusitado - por não ser um texto que
tenha nascido da filosofia, mas que eu o criei como se tivesse –, enfim, nele procuro
mostrar o quanto Heidegger deve a Kant, o da primeira edição da crítica da
razão pura, o que colocou a imaginação como a faculdade primordial, anterior e
superior à própria razão.
Paola
Cantarini – A passagem é a seguinte:
“(...) Mas agora
nos interessa realizar uma reflexão jusfilosófica, que nos leve adiante na
compreensão do que seria o seu tema central, isto é, o modo de ser do Direito.
E nesse sentido fica patenteada a relação ontológica que ele guarda com o
tempo, donde se poder verificar o quanto o ser do direito, tal como o ser em
geral é (no) tempo, uma perspectiva que foi consagrada na – e consagrou a –
obra Sein und Zeit, de Martin
Heidegger, publicada em 1927, causando grande impacto, embora assista em nosso
modo de ver toda razão a este mesmo A., quando em obra publicada no ano
seguinte, Kant e o Problema da
Metafísica, credita a Kant – ainda que para kantianos de estrita
observância numa jogada de criação retrospectiva das condições para legitimar o
seu próprio pensamento – o mérito maior por esta descoberta filosófica. (...)”
WSGF
– Sim, é isso – dá vontade de continuar falando do que vem na sequência, mas o
texto está aí para quem quiser conferir, não? Aliás, está destinado a uma
coletânea que organiza meu Mestre e amigo Paulo Bonavides, mas está às ordens
de vcs. para divulgá-lo por aqui, pois tem lá colocações que eu gostaria de ver
em discussão o quanto antes, as que são pertinentes à nossa atualidade e, mais
especificamente, a “Comissão da Verdade”.
Paola
Cantarini – Segundo o professor, em outros textos, como a tese de filosofia
defendida no final do ano passado no IFCS-UFRJ e também naqueles de
psicanálise, tal como os entendi, o Direito seria criado para justificar nosso
desejo de nos preservar a vida, a nossa e a dos outros sem que saibamos porquê.
Essa é nossa herança, o legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra
que somos, que nos obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu
duplo sentido, de se comemorar. Por nos obrigar a libertar, de que? Estranha
essa ideia de uma obrigação de ser livre; e é de se comemorar em que sentido?
WSGF
– O desejo é regulado pelo direito, mas, a regra é que produz o desejo, então,
sem regra, não há desejo, a regra existe para criar o desejo. O desejo é a
verdade da regra, a regra é o desejo externalizado. E exatamente é uma
confirmação do que eu disse antes, a propósito do Nietzsche, do amor fati, pois é o que nos torna
humanos, essa regra ou Lei, que barrando os instintos nos liberta deles,
produzindo o desejo em seu lugar. Só que, para continuarmos com Nietzsche, não
podemos nos acomodar em sermos apenas “humanos, demasiado humanos”, temos de ir
além, em direção ao que está além, mas aqui, não no além, sendo o que ele chama
de Ubermensch, “super-homem”, que
melhor se traduzirá por “além-do-homem”, pois o desejo é infinito e sem objeto
pré-determinado, está para além de toda determinação e condicionamento, é a
liberdade, e se nós o fixarmos, estagnamos, apodrecemos, morremos, ainda em
vida – são os “sepulcros caiados”, de que falava Jesus Cristo, a propósito dos
fariseus, dos que viviam para a Lei, e não pela Lei, como muitos de nós,
cristãos, ateus ou de outras crenças.
Paola
Cantarini – E o sonho? Também seria superior ao que vivemos acordado? Acho que
Nietzsche diria que sim. Poderia explicar o entendimento do professor, de que
vivemos um direito sonâmbulo, da natureza da ordem do desejo, função do desejo
(e não da vontade ou da necessidade, do utilitarismo), possuindo o mesmo
estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico; há relação com a “poética dos
sonhos (rêverie)” de Bachelard, para
quem: “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse
mundo sonhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse
universo que é nosso”? Assim, o sonhar também permitiria ter experiências sem
limites, nos ensina a liberdade, é isso?
WSGF
– Sim, e eu sou mesmo muito influenciado pelo Bachelard, como aliás muita
gente, sem que dê margem a que se perceba, e aí talvez eu mesmo me inclua, mas
é que talvez também essa seja uma característica de obras como a dele, de
reviver ou reacordar em nós o que lá já estava, adormecido, e daí temos como
nosso mesmo. Eu adoro ele há muito tempo, mas a primeira frase que você cita é
de outro que também curto há muito tempo, o Oswald de Andrade, está no
Manifesto Antropófago, de 1922. O resto é meu, eu assumo, e espero que com a
resposta dada à questão anterior possa ter ficado mais claro, sem também querer
esclarecer demais, pois uma certa obscuridade é o que favorece o sono e o
sonho, a interpretação de cada um. Eu diria que sua pergunt já dá pistas
suficientes para uma resposta também suficiente.
Paola
Cantarini – Gostaria então que o professor comentasse a frase de Foucault
concluindo seu livro “O governo de si e dos outros”, objeto de seu curso de
filosofia do direito este semestre no mestrado da PUC-SP: “A parresía
filosófica que joga nesse diálogo entre o mestre e o discípulo, conduz não a uma
retórica, mas a uma erótica”. (“O governo de si e dos outros”. São Paulo: Editora
Martins Fontes. 2ª. ed., 2011).
No
mesmo sentido: “(...) o erotismo, é, na realidade, um mundo
com existência própria”. (“Reflexões
sobre o problema do amor e o erotismo. Lou
Andreas- Salomé, São Paulo: Landy.
2005, Contracapa)
E
tem ainda, me permitindo uma referência mais forte, “a chama da filosofia se
acenderá sempre na chama do esperma e nos templos ela não será apagada, ainda
que mil seres supremos se agitem para lhe sufocar a centelha”. (Marquês de
Sade,citado em “Sade contra o ser supremo”, Philippe Sollers. Tradução Luciano
Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2001).
WSGF
– Sim, claro, porque não – já o Platão dizia algo semelhante, na Carta VII,
sobre a necessidade da fricção entre as almas para produzir a chama do
conhecimento, e uma alma não pode se friccionar com outra se não for pelo
corpo, pois ele está falado do que ocorreria aqui no plano das almas encarnadas
(rsrsrs). Bem, no erotismo é como no sonho – lembro que ainda estamos no
universo nietzscheano, pois a autora que vc. menciona, como sabemos, foi um
grande amor dele, para quem teria escrito o “Assim falou Zarathustra”, pelo menos
a primeira versão, depois ele acrescentou uma outra parte, menos poética e mais
filosófica. Eu citaria o Bataille para fazer uma ponte entre o Foucault e os já
chamados de divinos Platão e o Marquês, ao associar o erotismo com o sagrado,
já que o chamado”último Foucault”, o da época a que vc. se refere, para
surpresa de seus seguidores, mostrou-se mais espiritualizado, talvez pelo
enfrentamento da doença mortal que o acometia; o Marquês era um naturalista,
assim como talvez também o fosse Platão, o da “doutrina esotérica”, transmitida
só no contato pessoal, com seus discípulos,tal como Aristóteles, que seria,
assim, mais seguidor de seu Mstre do que a tradição nos fez – e faz - acreditar.
Paola
Cantarini – O Sade tem mais jeito de ser
um anarquista...
WSGF
– Sim, um anarquista e um naturalista, antisocial.
Paola
Cantarini – No entendimento do professor haveria, talvez, uma relação entre a
parresía e a literatura; e entre a parresía e o pensamento de Nietzsche?
WSGF
– O parresiasta, aquele que se utiliza da parresía, é no entender de Foucault “o
homem verídico, isto é aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade
num pacto consigo mesmo”, podendo sim ser associado tal conceito à veridicidade
nietzschiana, que seria uma certa maneira de fazer agir essa noção, cuja origem
remota se encontra na noção de parresía como risco para quem a enuncia. Logo,
tem sim relação com Nietzsche, que, de resto, é um – quase o - autor que
Foucault reivindica como seu avatar. Lembremos que Nietzsche proclamava a necessidade
da aventura, de correr riscos, para se obter um aprendizado que de outro modo não
conseguimos, confortavelmente instalados em nossas cadeiras ou poltronas de
estudo.
Paola
Cantarini – Gostaria então que o professor explicasse melhor o conceito da
expressão abaixo, que aparece no seu comentário sobre o Manifesto Antropófago -
de qual tabu se trata e de qual transformação?
“É o tempo
mítico, conceituado por Lévi-Strauss, em sua antropologia estrutural, como
abrangente do passado, presente e futuro... ‘Antropofagia. A transformação
permanente do Tabu em totem’”.
WSGF
– É mais uma citação do manifesto nonagenário, correlacionando com o
Lévi-Strauss, que em seu clássico “Estruturas Elementares do Parentesco” disse
ser a lei que proíbe o incesto, sobretudo com a mãe, a primeira norma,
verdadeiramente universal, a que se encontra em qualquer sociedade humana, sendo
por isso a que é, a um só tempo, social e natural. Claro que isso tem a ver com
o Freud, a quem o Oswald está citando, que muito antes e de outra perspectiva,
informado por uma antropologia mais antiga, em sua obra “Totem e Tabu”, para
explicar a universalidade do complexo de Édipo, afirmara algo muito próximo do
que dirá Lévi-Strauss e, antes do próprio Freud, um outro autor, muito
apreciado por Oswald, e também pelo Nietzsche, um jurista alemão do século XIX,
Bachofen, o autor de “Mutterrecht”, “Direito Materno”, em que postula a origem matriarcal da sociedade, bem
na linha do que dirá depois o Freud naquele livro. Enfim, o que é proibido,
como tabu, e louvado, idolatrado, como totem, “tampona” a origem de nosso
desejo, a nossa origem, de seres anti-naturais, sociais portanto, sim, mas por
conveniência e convenção.
Paola
Cantarini – Para o professor qual seria o desejo de direito e de vida que
temos? Entende ser a felicidade, assim como o era para Oswald de Andrade,quando
proclama, também no Manifesto “A alegria
é a prova dos nove”? Não poderia ser o amor?
WSGF
– É, se for um amor alegre – nada de paixões tristes, como diria Spinoza.
“Amor, humor” – essa eu já não lembro se é do Oswald ou da montagem do
Manifesto Antropófago pelo Teatro Oficina, da qual participei, pelo menos da
versão que foi para a FLIP do ano passado...
Paola
Cantarini – Quando o professor alude a uma das finalidades do ensino voltado às
artes, ao teatro, ao possibilitar o contato da dor, ódio, a fusão cósmica de
corpos, sensações, também todos estes contatos, trocas e buscas podem se dar
fora da sala de aula, fora do teatro, em especial nos relacionamentos humanos,
na relação homem e mulher, onde apesar do trabalho profissional se enquadrar em
tal perspectiva “perfeita”, não se verifica o mesmo interesse em se buscar o
mesmo no resto da vida, com os demais relacionamentos?
WSGF
– Na verdade, a ideia é reduzir mesmo essa distância entre a sala de aula e a
vida lá fora, trazer a vida para dentro da sala de aula, e transformar as aulas
em lições de vida – mesmo, ou porque não dizer, sobretudo, em se tratando de
aulas de direito, ou, pelo menos, de filosofia do direito, pois eu sei que se
forem de direito administrativo fica mais difícil, mas por que não? (rsrsrs) Teria
de tentar, para que o direito fique a serviço da vida, boa, a que se pode ter
depois de avançar no aprendizado sobre o próprio desejo.
Paola
Cantarini – No “Manifesto” escrito com seu amigo e grande filósofo do direito,
lamentavelmente falecido, Luis Alberto Warat, os professores fazem forte e
direta crítica ao autoritarismo no ensino e sua estrutura formal, dominada pelo
capitalismo, afetando à liberdade de cátedra, de estudo, e criando obstáculos
ao alcance do verdadeiro conhecimento, fazendo menção ao ensino encontrado em
diversas fontes, como nas ruas, nas comunidades, e no teatro – citam o Oficina,
e também um cineasta que não é conhecido -, voltado a “uma vivência mais real, mais
forte, como vivência mesmo”. Como superar o sistema capitalista que continua
vigente, ainda mais por ser um sintoma global? Como humanizá-lo? É a proposta
de dois outros amigos seus, os professores Ricardo Sayeg e Wagner Balera, que
me parece conta com seu apoio...
WSGF
– Bem, são muitas perguntas em uma só. Começando pelo Manifesto que escrevi com
o meu fraternal amigo Luis Alberto Warat, alguém que politicamente estava muito
próximo do anarquismo, inclusive de maneira cada vez mais assumida por aquela
época em que escrevemos o texto – que
vem de ser publicado em livro lançado no corrente mês de maio, em Fortaleza,
comemorativo da primeira década de existência do curso de direito da Faculdade
Christus. O cineasta a que vc. se refere era um dos artista que por aqueles
dias circulavam em torno dele, dos que estavam querendo levar para o Rio a
proposta do Cabaret Macunaíma, incluindo filmagens. Era – ou é - um baiano,
apesar do sobrenome cearense, o Luis Alencar, que propunha um cinema radical e
lembro que na época desenvolvia algo abordando o tema da zoofilia – o Warat se
encantou com o rapaz, que tinha uma verve glauberrochiana. Não sei o que foi
feito dele, se realizou o projeto, mas as experiências requeridas parece que
ele já estava fazendo (rsrsrs). E isso pode ser relacionado ao capitalismo, com
a concepção antropológica que lhe é subjacente, do homem como um ser de
interesses gerados por necessidades, tal como os animais, donde a necessidade
de humanizá-lo, o que tanto pode ser visto de maneira mais reformista, numa
perspectiva cristã, católica – lembremos que a ideia de “ecclesia semper
reformanda est”, depois do Concílio Vaticano II, passou também para a igreja romana
-, como é aquela dos igualmente fraternais amigos paulistas que propuseram o
Capitalismo Humanista, e daí o que se busca é a compatibilização dos conflitos,
digamos principiológicos, no campo do direito econômico, em face dos direitos
humanos, ou de maneira antes revolucionária, como seria mais a linha do
falecido pensador do direito argentino, naturalizado brasileiro, pela qual
humanizar o capitalismo significa acabar com ele. De algum modo, vejo isso de
uma maneira circular, em que os extremos do espectro ideológico se tocam.
Paola
Cantarini – As novas bases de sustentação da sociedade, a fim de que esta se
mantenha íntegra, então, precisariam mesmo de alguma forma de ideologia seja a
mitologia, a religião ou mesmo, mundividências filosóficas, reafirmando ou
invertendo valores, ao invés de criar algum novo valor, para que este produza a
afirmação de outros valores, em um círculo que não seria vicioso, mas virtuoso,
é isso?
WSGF
– Sim, vc. pegou bem o “espírito da coisa”.
Paola
Cantarini – O poema de Charles Baudelaire abaixo põem também em relação opostos
– a paixão, até o estupro, e o fato da alma nada arriscar na vida:
“se
o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
não
bordaram ainda como desenhos finos
a
trama vã de nossos míseros destinos
é
que nossa alma arriscou pouco ou quase nada”.
O
poema acima fala da relação entre paixão e estupro, do sofrimento como condição
para o desfrute dos prazeres, haveria alguma relação quanto à sua colocação em texto
de seu livro Conceitos de Filosofia, o que fala em “....medo da morte, medo da
vida, medo de transformação...¨, ao final, na última frase: ¨Tempo, morte,
desejo: gozo”.
WSGF
– Bem, esse texto foi escrito para uma apresentação em Florianópolis, a convite
do Warat, em um evento do que ele propunha à época, princípio dos anos 1990,
como sendo uma “cinesofia”. Então, a gente discutia filosoficamente filmes. E
normalmente a discussão se dava depois da exibição do filme, como hoje em dia
se faz muito e tal. Só que eu escrevi aquele texto, “Tempo e Morte”, e li antes
da apresentação do filme, que então seria visto da perspectiva proposta no
texto, então os dois, texto e filme, formariam uma unidade de sentido,
explicando-se mutuamente. Daí que a melhor explicação para o que consta no
texto encontra-se no filme, “El Matador”, do Almodovar – vc. viu?
Paola
Cantarini – Não lembro.
WSGF
– É o do toureiro, manco e assassino, em que na cena final ele e a advogada
dele terminam fazendo sexo, gozando e se matando...
Paola
Cantarini – Vou procurar p´rá ver, claro. Mas o professor hoje em dia está mais
para o teatro do que para o cinema, não? Por que a proposta de teatraulas e não
outras formas imaginárias, lúdicas, como a própria linguagem escrita ou outras
formas de arte – pintura, escultura, música, dança?
WSGF
– Bem, as teatraulas que temos feito, dirigidas pelo Francisco Carlos, envolvem
outras formas de arte, sobretudo a música, como também deverão se aprimorar no
aspecto cenográfico, agora que estamos contando com o patrocínio, que esperamos
seja duradouro e consistente, do banco Santander – para o dia 23 de agosto está
marcada a apresentação no Tucarena, com esse patrocínio, da “trilogia tebana”.
Penso que por meio do teatro se pode vivenciar mais, em seu mundo artisticamente
criado, do que na vida concreta, nos preparando melhor para ele, ao criar
situações de possibilidades abertas, criando assim a sensação de poder realizar
a constante transmutação que é inerente à vida, de que falo naquele artigo que
comentamos na última pergunta, e em outros, posteriores, especificamente sobre
as teatraulas, ou sobre o Kafka, pois foi trabalhando dramaturgicamente textos
dele que comecei com a atriz que faz comigo as teatraulas, a Fabianna Serroni, essa
pesquisa com o teatro, a performance.
Paola
Cantarini – Sim, e lembro que no texto sobre o Kafka está dito que o
conhecimento só começa quando se deseja a morte, ou, o que seria o mesmo, no desejo
de mudar de vida, de “cela” - que é também desejo de se pôr a caminho, de ser
transportado, aventurar-se, isto é, consoante Kafka, o que seria representado
pela cavalgada, em textos como “Desejo de virar Índio”. Então, que diferença
faz o método de ensino, se não se teve já essa experiência?
WSGF
– Realmente, do que se trata é de provocar essa experiência, da qual nos
afastamos cada vez mais, quando mais entramos por esse caminho da
virtualização, da descorporificação, desmaterialização, que é o da sociedade
atual, então a ideia central da teatraula, como também das oficinas de teatro,
filosofia e literatura, a partir dos textos do Kafka, é corporificar e
materializar o conhecimento, o que me parece a grande contribuição que uma sala
de aula ainda pode trazer, e só algo assim pode trazer, nesses tempos de
informações disponíveis de forma massiva para quem se concetar na rede mundial
de computadores.
Paola
Cantarini – Não seria mais um problema o retrocesso à animalidade, recuperando
a sensibilidade, contrapondo-se ao que no texto sobre Kafka, também, é referido
como a “alienação do próprio corpo, por força das ideias, em que tendemos cada
vez mais a nos tornarmos, deixando de ser reais, animais”, pois isso não
implica no fato de que além da sensibilidade as demais características do
retorno ao animal seriam incorporados, a ausência de limites, de moral?
WSGF
– Na verdade, o que proponho é que encontremos nosso lugar, como humanos,
“entre o animal e o ideal”, quer dizer, que evitemos tanto o rebaixamento à
animalização, como também desconectarmo-nos da “base física do espírito”, como
consta do título de um livro de meu conterrâneo cearense e grande filósofo,
Farias Brito, ou seja, alienarmo-nos em uma idealização, que tanto pode ser uma
religião ou mesmo a ciência, e isso nos impeça de viver da melhor forma essa
dificuldade, esse desafio, de horror e maravilha, que é sermos humanos.
Paola
Cantarini – A causa de tanto desconforto, que seria a vida desenraizada que
levamos, e a busca pelo eterno gozar, para completar o vazio, o que nos falta e
nos escapa, não poderia ser justamente o que se nega com o apelo ao dionisíaco
(já que completamente dominado pelo deus, ficas-se alheio, indiferente aos
outros, cedendo
lugar aos impulsos do irracional)? O individualismo, que é negado tão
fortemente pelo dionisíaco, pelo projeto de teatraula, não carrega em si mesmo
um forte conteúdo individualista? Não é o que se pode concluir do trecho abaixo:
“(..)
A epifania de Dioniso não escapa apenas da limitação das formas, dos contornos
visíveis. Ela se traduz por uma magia, uma maya que perturba as aparências.
(...) ultrapassagem de todas as formas, jogo de aparências, confusão entre o
ilusório e o real, a alteridade de Dioniso depende também do fato de através de
sua epifania, todas as categorias ressaltadas, todas as oposições nítidas, que
dão coerência à nossa visão de mundo, em vez de permanecerem distintas e
exclusivas, se chamarem, se fundirem, passarem umas às outras.(..) quando o
bando das Mênades entrega-se em conjunto ao frenesi orgiástico, cada
participante agita-se por sua conta, sem preocupação com uma coreografia geral
, indiferente ao que os outros fazem (...). Assim que o fiel entra na dança ele
se encontra, como eleito, a sós com o deus, completamente submisso á potência
que o possui e o conduz à vontade” (“Ainda sobre Dioniso”, in: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Jean Pierre Vernant e Pierre
Vidal Naquest. São Paulo: Perspectiva,1995, p. 343).
WSGF
– Bem, na teatraula ainda não rompemos com a separação entre público-espectador
e apresentadores, embora dela faça parte o momento final, em que a assistência
é convidada a se manifestar. Lá, ao mesmo tempo, nos interessa posicionarmos
como retransmissores de uma tradição que se inicia no culto ao Dioniso, em um
ato a um só tempo político, educacional e também religioso, além de artístico,
claro, como eram as tragédias na Grégia antiga, em Atenas. Mas é muito difícil
falar da teatraula, pois ela é antes de tudo uma experiência para se vivenciar,
sendo o que recomendo a vc. e demais interessados em compreender a proposta.
Paola
Cantarini – Levando-se em conta Platão, em O banquete, poder-se-ia dizer, então,
que não seria o teatro, mas sim o banquete, o ato de comer em comunhão, o lugar
ideal para o conhecimento e aprendizado? E a primeira aula, retomando aquela
proposta do Freud, não teria sido o “banquete totêmico”, conforme o que é
referido nos textos abaixo, sendo o primeiro de sua autoria?
“Após o
assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por todos, havendo
neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que um sentido de
incorporação do poder e de recolhimento em si do morto, a finalidade de
instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”.
“É na mesa e na festa, bem mais do que em estruturas abstratas de
troca ou circulação, que se opera a passagem da natureza e da cultura. Dionísio
se apresenta como o grande mediador” (“À sombra de Dionísio. Contribuição a uma
sociologia da orgia”. Michel Maffesoli, tradução Aluizio Ramos. Rio de Janeiro:
Graal, 1985, p.10)
WSGF
– Bom, Platão, em seu último Diálogo, “As Leis”, voltado para o direito, como o
título indica, recomenda expressamente que o banquete, cuja palavra em grego que
o denomina é symposion, seja o lugar
em que se deveria transmitir de maneira ideal, o conhecimento – algo bem
diferente de nossos atuais “simpósios”, portanto (rsrsrs). E o que o Maffesoli
está dizendo nos indica que nossa época está propicia a uma retomada dessa
forma d aprendizado, sendo mesmo o que hoje se tem feito, ainda que não seja
com o intuito de obter conhecimento, mas sim, diversão – é preciso acabarmos,
urgentemente, com essa dissociação entre
divertimento, prazer e estudo, aprendizado, de outro, sendo nesse sentido que
propomos as teatraulas.
Paola
Cantarini – Bem, professor, nossa entrevista já atingiu o tamanho previsto e me
parece que essa resposta fica bem para ser a última. Quero agradecer e encerrar
prestando uma pequena homenagem. Lendo um poema do professor chamado “Poeta
louco”, no livro que está disponível no sítio Jornal de Poesia, ele me fez lembrar
de algumas passagens de Nietzsche, às quais coletei e deixo aqui, digamos, de
presente, dessa sua aluna e orientanda, que muito o admira.
WSGF
– Puxa, muito obrigado, Paola.
“NUR NARR! NUR DICHTER! Somente
Louco! Somente poeta!
¨(...)
portanto, aquilinos, de pantera
São
os anseios do poeta,
São
teus anseios sob milhares de disfarces,
Ó
louco! Ó poeta!
Tu,
que olhaste o homem
Como
deus e como carneiro –
Dilacerar
o deus no homem
Como
o carneiro no homem
E
rir dilacerando –
Isso,
isso é a tua ventura,
Ventura
de uma pantera e águia,
Ventura
de um poeta e louco!...
(...) “- lembra-te ainda, lembras-te ardente
coração,
Como
tinhas sede então –
Que
eu seja banido de toda a verdade!
Somente
louco!somente poeta!...”
“...não
esqueças,
ó
homem totalmente curtido pela volúpia: tu és – a pedra, o deserto , és a
morte..”
entre
as aves de rapina
...mas
tu Zaratustra amas ainda o abismo,
Fazes
como o abeto –
Ele
finca raízes
Onde
o próprio penhasco
Treme
ao olhar a profundeza,
Ele
hesita à beira de abismos
Onde
tudo em volta
Quer
precipitar-se...
...É
preciso ter asas quando se ama o abismo..
(....)
-“quem me aquece, quem me ama ainda
Dai-me
mãos quentes!
Dai-me
braseiros para o coração!
Estendida,
arrepiada,...
Sacudida
ai!por febres desconhecidas,
Tremendo
ante setas agudas e gélidas,
...assim
me acho deitada,
Torço-me,
retorço-me, atormentada
Por
todos os martírios eternos,
Golpeada
por ti, caçador crudelíssimo,
Tu
– deus desconhecido..
Golpeia
mais fundo!
Golpeia
mais uma vez!
Traspassa,
traspassa este coração!
...Tu me pressionas, me oprimes, ah!já perto e
mais!ouves-me respirar, espreitas meu coração, ó ciumento! Mas ciumento de
que..... tua mais orgulhosa prisioneira...
Ladrão
por trás das nuvens...
Fala,
enfim..
Oculto
no relâmpago! Fala! Que queres tu, salteador, de – mim..
...
A mim – queres
A
mim
A
mim – toda...
Não
é preciso antes se odiar, para se amar...
Eu
sou teu LABIRINTO...”
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