Jushumanismo:
Elementos
para uma compreensão jurídica universalista
Willis Santiago Guerra
Filho
Livre Docente em
Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha.
Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Ex-Professor Titular de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará e de Direito da Faculdade Farias Brito (CE). Professor
dos Programas de Pós-Graduação “stricto sensu” em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Candido Mendes, Rio de
Janeiro, RJ. Pesquisador da Universidade Paulista e da Universidade Mackenzie (SP).
Em
texto intitulado “O Sagrado Selvagem”, publicado em obra homônima (Ed. Cia. Das
Letras, 2006), o antropólogo francês Roger Bastide, outro dentre diversos que
estiveram no Brasil pesquisando e lecionando, principia fazendo alusão ao dito
de Nietzsche, sobre a morte de Deus, como sendo já praticamente o mesmo daquele
que à época (o texto é oriundo de uma palestra proferida em 1973) se associava
a Michel Foucault, sobre a morte do Homem, quando a voga estruturalista fazia
eco a pronunciamentos como o de Heidegger, em sua célebre carta a Jean
Beaufret, asseverando o despropósito e a impertinência do humanismo. Que o
anúncio da morte de Deus (e da religião) correspondesse ao anúncio também da
morte do Homem (e do humanismo), para Roger Bastide, seria “lógico, já que o
homem só se constitui como homem através de sua relação com os Deuses”.
E, de fato, é o que constatamos, se recorremos ao que nos ensina a
antropologia, uma ciência, derivada da filosofia moderna – logo, pós-cristã,
isto é, ao advento da subjetividade humana, referida ao Deus interiorizado e
encarnado do cristianismo -, que tem como pressuposto fundamental a unidade do
gênero humano, para sair em busca de regularidades incidindo sempre que
estejamos diante dele, ou seja, de formas de se ser humano, como nós, ainda que
se pareçam tão diversas.
Em
todas as formas de organização social – e o humano só se manifesta e prospera
em alguma delas – tem-se a presença do que para os seus componentes seria
sagrado, índice de uma presença não-humana, a ser reverenciada, como divindade.
Na esteira de René Girard, autor de “A Violência e o Sagrado”, tal como Michel
Serres (em “O Incandescente” e, de uma outra perspectiva, Lévinas, em obra cujo
título já indica a distinção proposta: “Do sagrado ao santo”), é preciso
distinguir, no que é tido como divino e sagrado, a sacralidade e a santidade. O
sacro é, literalmente, o excluído, o separado, mantido de fora do que é comum,
profano, e uma tal segregação pressupõe o emprego de violência, física ou
simbólica, para que se verifique, bem como se mantenha. É um índice da presença
de uma insanidade, ameaçadora, posto que pelo que se considera sagrado se está
disposto a matar e morrer. O santo, a santidade, como a própria etimologia
sugere, ao contrário, é decorrente da sanidade, de uma compreensão sã e
salutar, salvadora, capaz de desativar os dispositivos mortíferos que agem,
sobre e através de nós, humanos. Esta cura, porém, requer a prévia existência
da doença, do mal, a serem desfeitos. A compreensão do Direito universalista e,
logo, humanista, que aqui se pretende
esboçar, há de partir do entendimento da relação dele, por um lado, com esta
violência, sacra, que é uma realidade, por encontrada sempre que se tem a
presença de uma organização social humana, e de outro lado, com a paz, santa,
idealmente almejada, na convivência com os que fazem parte de dita organização,
bem como no interior de cada um e também externamente, nas relações com os que
dela não fazem parte, mas, em geral, pertencem a alguma outra, onde podem haver
concepções diversas sobre como e o que se há de respeitar – no limite, por ser
sagrado.
Do
que se trata, então, é de buscar uma compreensão do ser que somos, enquanto
humanos, em sua correlação com o direito, entendido como o meio com que
estabelecemos, com proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da
violência -, nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como
garantia uma referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em
si e entre si. Espera-se assim atingir, uma compreensão fundamental, essencial,
assim do humano como também do direito, tendo em vista a necessidade que
verificamos de fortalecer um tal entendimento, na atualidade, pelo grau de
incerteza e complexidade atingidos tanto pelas formas jurídicas de associação
humana, como pelo nosso próprio modo de ser.
Daí
que se precisa buscar, por meio de uma regressão simplificadora, a origem
produtora das alterações trazidas ao mundo por esse modo de ser tão peculiar
que é o nosso, o humano, na expectativa de assim atingir uma melhor compreensão
do que nos diga respeito mais proximamente, como é o caso do direito. Não custa
lembrar que a investigação não tem caráter histórico nem factual, visto que não
se trata de responder a questões sobre ocasiões e causas do surgimento do ser
humano e do direito, uma vez que nossa preocupação é com a discussão do sentido
de tais fenômenos, partindo do dado de que aí estão e em correlação, para
indagar, antes, “o que são e por que são assim”, do que “desde quando e como
são”. E se o que se busca é fazer sentido, o que se apresenta é o sentido
encontrado, para a discussão dos interessados.
Uma
primeira indicação (a ser entendida, em termos mais precisos, no sentido em que Heidegger se
referia à “formale Anzeige”, no início de sua longa carreira filosófica,
tomando de empréstimo e ampliando noção devida a seu Mestre, Edmund Husserl) ou
“pista” a ser seguida, aqui fornecida a título de mera sugestão, sobre um modo
de ser do humano, ou como nele podemos perceber, fenomenologicamente, e com uma
conotação claramente jurídica, é a de que o ser humano é o ser responsável. Com essa indicação marca-se bem a sua – aliás,
nossa - diferença em relação a seres que nos são tão próximos, como são os
animais. O ser animal reage, ao invés de responder, donde não lhes podermos
atribuir responsabilidade por seus atos, embora seja comum que lhes infrinjamos
punições, praticando uma espécie de “imputação objetiva”, para coibir ações
suas que repudiamos. Essa nossa característica embrica-se inextrincavelmente
com aquela outra, a liberdade, pois se nossas ações não são meras reações é
porque são praticadas de um modo – por vezes mais, outras vezes menos –
deliberado, sendo essa faculdade deliberativa própria de um ser reflexivo,
devotado ao pensamento. Aqui cabe destacar a relação que guarda a
responsabilidade-liberdade em que habita o ser humano com a sua natureza
extraordinária. E extraordinário entendido primeiramente de maneira neutra,
literal, como o que está fora de ordem, sendo isso assombroso, tanto no sentido
de terrificante, pois é assustador ter a consciência de que dependemos de
nossas deliberações para termos êxito na “luta pela existência”, como também no
sentido positivo, de ser maravilhoso, tomar consciência da existência. Daí
podermos concluir que, também literalmente, só o ser humano existe, por estar
(“sistere”) fora (“ex”) de uma ordem natural, em que outros seres estão, por
ser onde sobrevivem, mas não vivem, propriamente, e isso já por não se saberem
mortais. Acometidos dessa solidão existencial, uma resposta tipicamente humana
está em supor a existência ainda maior de outros seres, míticos, divinos, que
no animismo, tão comum entre os povos primevos, tribais, são associados a
animais, em quem, sob esse aspecto, se reconhece uma superioridade em relação
aos humanos, ao se mostrarem seguros de si, de seu ser. De fato, não é nada
fácil lidar com a instabilidade de ser que é própria do ser humano, o ser que,
a rigor, não é, não tem um ser, fixo, donde se explica a criação de uma
ordenação humana para nos fixar o ser, assujeitando-nos, tornando-nos o sujeito
que somos, sendo semelhantes ao(s) que nos cria(m), pela fala que nos
transmitem.
Eis
o caráter extraordinário da vida humana, dotada de subjetividade (espírito,
mente, consciência ou como se queira denominá-la), na qual se revelam idéias a
respeito do universo “lá fora”, bem como sobre a ou as divindade(s) que nos transcende(m),
como ainda, reflexivamente, sobre si mesma, em si e em outros. Tal
extraordinariedade é que nos atribui, propriamente, a responsabilidade, no
sentido de que podemos assumi-la ou não, pela liberdade co(r)respondente,
imanente deste modo de ser que somos. De antemão, no entanto, assombra-nos a
possibilidade de estarmos pondo a perder uma oportunidade absolutamente
excepcional – e isso, tanto individual como coletivamente, em escala mundial,
inclusive – quando nos conduzimos sem sequer nos preocuparmos com o significado
que pode ter isso de sermos dotados de consciência e da correlata reponsabili(ber)dade.
Referimos, assim, ao que entendemos
ser a relação co-institutiva entre o direito e o humano, a configurar esse novo
humanismo, que também é uma nova concepção jurídica, a que denominamos
“neojushumanismo” ou, simplesmente, “jushumanismo”. Aqui do que se trata é de
verificar em que medida um componente jurídico está presente para fixar, em uma
ordem, tudo o que cria esse ser criador que somos os humanos, a começar pela
própria linguagem, que se origina necessariamente revestida de formalidades,
segundo nos propõe Rossenstock-Huessy, pois exige já um contexto adequado para
que surja, que há de se conceber como devocional, reverente, ritualístico, mimético,
por mítico-religioso. Em um tal contexto é que, por razões fáceis de se
perceber, inserir-se-ia, para se manter e superar as adversidaades, o ser que
se extravia da ordem natural, buscando reencontrar-se, pensando reencontrá-la,
criando, sem se dar conta, outras ordens, “co-naturais”, animistas, ou
sobrenaturais, transcendentes.
Assim, o direito compõe a argamassa
que cimenta nossas relações uns com os outros, sendo que nessa composição
também se faz necessário o fluido da religião, entendida muito simplesmente, de
maneira indissociável das práticas mágicas, com seus mitos e sua encenação, os
ritos, como o faz Marcel Mauss (cf., vg. “Oeuvres”, vol. 2, p. 647), enquanto
um conjunto crenças, cristalizadas em dogmas, dogmas estes que também podem se
revestir de conotação jurídica, donde ser na teologia e na jurisprudência,
entendida como a ciência jurídica em sentido estrito, onde se verifica a
permanência de uma estrutura dogmática de conhecimento, ou seja, de uma
especulação racional sobre tais dogmas. O novo humanismo que é o jushumanismo
não poderá, portanto, incorrer em equívocos dos puros humanismos, que elegendo
o homem e suas capacidades como a medida com a qual se avaliaria tudo o que nos
diz respeito, tanto no campo do conhecimento, da teoria, em que imperariam as
ciências, como naquele da ação, da prática, em que uma moral universalista e
laica haveria de pautar nossa conduta, com pouca consideração para com
situações particulares, singulares, e também para com as crenças que nos
constituem, mesmo que sejam crenças ateístas.
Direito, magia e religião, portanto,
estabelecem uma relação de simbiose, que se pretendeu romper, com o humanismo
da modernidade, sem perceber que o lugar deixado vazio, ao lado do Direito,
termina sendo ocupado por o que se vai chamar então de ideologia, para designar
esse conjunto de crenças, em amparadas em especulações racionais que não mais
se apresentam como teológicas ou metafísicas, por não mais serem tidas como
crenças, e sim como conhecimentos científicos, de acordo com o credo
positivista. E no entanto, mesmo nesse contexto de desmistificação de tudo,
inclusive da relação entre Direito e religião – sem que na época, em geral, se
percebesse o quanto se devia, para que se chegasse a tal ponto, ao
desenvolvimento da religiosidade judaico-cristã -, chama a atenção um
posicionamento como aquele de Jean-Marie Guyau (1854 – 1888), em sua “Crítica
da Idéia de Sanção”, de 1883 ( ed. bras. tr. Regina Schöpke et al,
SP: Martins Fontes, 2007), pela consciência demonstrada do caráter
inextrincável daquela relação, entre Direito, magia e religião.
Para
ele, em se tratando das sanções religiosas (p. 27 da ed. cit.), tem-se o
exemplo mais próprio de sanção, palavra que etimologicamente remete à
consagração, ao que é sagrado, e também à santificação, ao santo, devendo
remeter, de acordo com a idéia que para ele então se fazia da santidade, tida
como divindade ideal, a uma espécie de renúncia, de despreendimento supremo,
donde só se poder explicar a violência contida nas sanções, religiosas ou não,
em se fazendo, como propusemos no início, sua referência ao sagrado – essas
colocações vêm iluminadas em um conjunto de obras recentes, de inspiração
assumidamente foucaultiana, da lavra do filósofo italiano Giorgio Agamben,
retomando a figura do homo sacer, do
direito penal romano, como um modelo para se pensar a situação em que nos
encontramos nas atuais sociedades, em que o poder se exerce de maneira
biopolítica, ou seja, cada vez mais sobre o que denomina vida nua (no que se
pode ver uma alusão à “vida fática” do Dasein
heideggeriano, cheia de conseqüências, como pretendo demonstrar em outro
momento), a qual se pode entender como a vida do ser humano em quem não mais se
reconhece uma pessoa, com a dignidade que lhe é própria. As religiões, assim
como o Direito e magia, enquanto impõem certa regra de conduta, a obediência a
certos ritos e a fé em determinados dogmas, têm todas a necessidades de uma
sanção para confirmar seus preceitos.
Todas elas, para Guyau (v. id. ib.,
p. 77 ss.), são unânimes ao invocar a
sanção mais temível que se possa imaginar ou de outra, elas prometem castigos
eternos e fazem ameaças que ultrapassam aquilo que a imaginação do homem mais
furioso pode sonhar em infligir a seu mais mortal inimigo. Nesse, como em muitos outros pontos, as
religiões, segundo ele, estariam em pleno desacordo com o espírito dos “tempos
modernos”, mas considera estranho pensar que ainda são seguidas por multidões,
inclusive de filósofos, ainda imaginando Deus como a mais terrível das potências,
a concluir daí que, quando está irritado, ele deve infligir o mais terrível dos
castigos. Desconsidera-se, assim, que Deus, esse supremo ideal, deveria ser
simplesmente incapaz de fazer mal a alguém e, com ainda mais razão, de devolver
o mal pelo mal. Precisamente por se conceber Deus onipotente – em sintonia com
uma linhagem de pensamento que deriva da teologia metafísica tardo-medieval de
franciscanos como Duns Scot e Guilherme de Ockham, a já então chamada via moderna, que repercute em filósofos tidos
como maximamente modernos, a exemplo de Leibniz e Kant -, portanto como o máximo de potência, Ele só
poderia infligir o mínimo de dor; isso porque, quanto maior é a força de que se
dispõe, menos se tem necessidade de despendê-la para obter determinado efeito
(princípio da economia ou parcimônia, também conhecido como “navalha de
OCkham”). Como, além disso, vê-se n´Ele a suprema bondade, é impossível
imaginá-Lo infligindo até mesmo esse mínimo de dor. É preciso que o pai
celestial ao menos tenha, sobre os pais deste mundo, a superioridade de não
açoitar seus filhos. Enfim, como Ele é, hipoteticamente, a soberana
inteligência, por onisciente, não podemos acreditar que faça nada sem razão
(princípio da razão suficiente); ora, por que razão Ele faria sofrer
inutilmente um culpado, já que isso não pode alterar o que foi feito, o
passado? E, de todo modo, o ocorrido não se deu com a Sua concordância? Deus
está acima de qualquer ultraje e não precisa se defender, não deve nada a
ninguém e Ele não tem, portanto, de ferir. As religiões são sempre levadas a
representar o homem mau como um titã empenhado numa luta contra o próprio Deus;
uma vez Júpiter vencedor, é muito natural que, daqui por diante, ele tome suas
precauções e esmague seu adversário sob uma montanha. Mas é fazer uma estranha
idéia de Deus imaginar que ele possa lutar materialmente com os culpados, sem
perder Sua majestade e Sua santidade. A partir do momento em que a Lei moral
personificada empreende uma luta física com os culpados, ela perde precisamente
seu caráter de lei, rebaixa-se ao nível deles, decai. Um Deus não pode lutar
com um homem: Ele expõe-se a ser jogado por terra, como foi o anjo por Jacó
[Gênesis]. Ou Deus, essa lei viva, é a onipotência, e então não podemos
verdadeiramente ofendê-lo, mas ele
também não nos deve punir, ou então
nós podemos alguma coisa contra Ele, e Ele não é a onipotência, não é absoluto,
não é (esse) Deus. “No fundo, mesmo na moral kantiana, a sanção é apenas um
expediente supremo para justificar racional e materialmente a lei formal
de sacrifício, a lei moral. Acrescenta-se a sanção à lei para legitimá-la”
(pp. 89 e 90). Caso se queira encerrar a
escalada de violência que vem se mostrando ser a da humanidade coibindo as
ações por meio da sanção sacrificial, originalmente voltada para – e devotada a
- satisfazer divindades em quem projetamos o ódio que nos é próprio, ter-se-ia
que retribuir o mal com o bem, com o amor, fraterno, como apregoa Guyau em
texto que resume suas idéias sobre o assunto, significativamente intitulado
“Sanção de amor e de fraternidade” (ib.,
pp. 82 ss.). Ora, embora ele apenas insinue, talvez para não despertar o
desagrado de seus pares, em época de descrédito do que se pudesse considerar
religioso, não seria essa justamente a proposta do cristianismo? E, sem dúvida,
essa é a proposta contida na filosofia do capitalismo humanista, desenvolvida
por Ricardo Sayeg, Wagner Balera e um conjunto de outros colegas e estudantes
da PUC-SP, para a qual chamamos aqui a atenção.
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