28 de Abril de 2011
Entrevista com Dr. Willis Santiago Guerra Filho (acrescentar dados pessoais)
Entrevistador (Prof. Belmiro Patto, UEM):
Como um dos muitos problemas que vimos enfrentando em nossas grades
curriculares, a filosofia pode-se dizer: vai bem ou mal? A sua avaliação é no
sentido de que há tempo suficiente para o ensino desta disciplina como disposta hoje nos cursos de direito?
Willis: Eu acho que a situação não é
boa não! Já foi pior, ou poderia ser pior ainda, ou seja. Por um lado há hoje
em dia tem cada vez um maior reconhecimento da importância da filosofia do
direito, no direito. E especialmente nesta aliança com o direito constitucional.
Eu diria que a concepção atual do direito constitucional, também chamada de neo
constitucionalismo, aponta claramente para uma valorização da filosofia. Quer
dizer, a base de renovação do pensamento jurídico a partir do direito
constitucional, não foi o próprio direito constitucional e sim um enfoque
filosófico do direito, a partir do direito constitucional. É aí que estão, se
bem situados estes assim chamados pós positivistas como o Dworkin, e o Alexy.
São na verdade filósofos que pensam o direito a partir do seu fundamento
constitucional e portanto, o sucesso justo eu diria, deste tipo de pensamento
evidencia a importância da filosofia para o direito, além da preocupação e
ocupação de filósofos em geral que têm se dedicado ao direito. É o caso do
Jürgen Habermas, Michel Serres, apenas para citar entre os vivos, dois dos mais
importantes dos quais eu também acrescentaria o nome do Giorgio Agamben que é
formado em direito, inclusive. No caso do Agamben, de certo modo foi até mais
fácil. Ele hoje em dia se apresenta, desde sempre no cenário filosófico não
como um jurista que faz filosofia, mas sim um filósofo que tem formação
jurídica que, sem dúvida, o ajudou a escrever obras como estas da série Homo Saccer, que é fundamental! Que é
fundamental na atualidade. É agora o que eu vejo, por outro lado, do ponto de
vista da grade eu penso que a presença da filosofia deveria ser maior. Então
sabemos que tem esta célebre discussão sobre o momento em que se deve
introduzir a filosofia do direito na grade curricular, se é já no início para
oferecer os elementos básicos para reflexão ou seria no fim quando então depois de feito quase todo o curso aí
sim o estudante teria elementos suficientes para fazer a reflexão de cume que é
a reflexão filosófica. Eu penso que a filosofia deva aparecer em todos os
momentos da formação, da boa formação do estudante de direito. No começo, no
meio e no fim, ao longo de todo o percurso, de maneiras diferentes, é claro!
Nas mais diversas formas que a filosofia apresenta. No inicio ela vai se
apresentar num modo mais epistemológico uma espécie de uma teoria fundamental
do conhecimento jurídico, não é? Uma introdução ao conhecimento jurídico como
sempre, como toda introdução ao conhecimento tem uma conotação filosófica! E
depois nós vamos, deveríamos ter disciplinas dedicadas a matérias filosóficas
ou filosófico-juridico como e hermenêutica, a argumentação, a lógica jurídica e
a própria filosofia do direito em si mesma. Por que ela não poderia ter uma
seqüência como tem as matérias dogmáticas? Por que não uma filosofia do
direito, um, dois, três e quatro? Já que temos um direito civil um, dois, três
e quatro! Direito penal um, dois, três e quatro! Processual... enfim! Eu penso
que a importância da filosofia para o direito, costumo dizer, é tão grande
quanto a importância da matemática para a engenharia. Então, um curso de
direito com pouca filosofia, a meu ver, é o equivalente a um curso de
engenharia com pouca matemática! Ou seja, é o caminho certo para o desastre.
[Risos entre entrevistador
e entrevistado]
Entrevistador: Em um dos seus textos
mais recentes o senhor aborda a questão dos café filosóficos. Esta pratica
poderia ser adotada nos cursos de direito como forma de despertar os estudantes
para outras perspectivas que a filosofia seria capaz de produzir?
Willis: Ah! Sem dúvida! Este texto foi
publicado numa edição especial do jornal: O Estado de Direito em memória ao meu
muito querido amigo e muito importante filósofo do direito que compartilhado
com a Argentina que é o Luis Alberto Warat, notadamente falecido no mês de
dezembro do ano passado. Inclusive ele estava, ele vinha praticando esta
modalidade de animação; literalmente animação, de discussões filosóficas, e eu
penso que isso é muito importante hoje em dia, ou seja, a gente precisa sair
finalmente, em algum momento, deste modelo, digamos assim eclesiástico,
professoral, medieval ainda de dar aula, de lecionar, de pré-lecionar, quer
dizer é ridículo a gente querer ainda apresentar alguém, algum ser humano como
uma fonte de um conhecimento que, nós sabemos, que hoje em dia circula por
muitas outras fontes e redes literalmente pelas...pelas sobretudo redes
mundiais de informação. Então a gente precisa urgentemente encontrar o melhor
lugar, o melhor modo de aproveitar da presença física, do contato pessoal para
o desenvolvimento de algo que só assim se obtém. Para se ter uma qualidade de
produção do conhecimento com o frescor que deve ter na medida em que se realize
no encontro e não, seja trazido para o encontro já previamente, feito, pronto e
acabado como um café que muitas vezes sequer chega a ser requentado e fica
portanto, intragável. Então é preciso juntos, fazermos e tomarmos o café do
conhecimento, este poderoso estimulante para nós, afinal de contas, juntos,
desenvolvermos o conhecimento que se mostre necessário naquele momento. O
estudante precisa sentir a necessidade do encontro com o professor, com os
outros, com os colegas, precisa entender a importância daquele momento. E se
aquele momento for transformado num momento de uma mera transmissão por meios
que sequer pode competir com aqueles que hoje em dia se está acostumado a ter,
como são os meios de comunicação de massa, os filmes, as encenações com os
recursos hoje disponíveis, então a gente definitivamente não vai sair da crise
em que estamos e não estamos reconhecendo que nela estamos. Porque na verdade
precisaríamos mudar o modo de desenvolver esta relação pedagógica! Então muitas
vezes, como no início da semana aconteceu, eu propus aos alunos que
continuássemos a aula em um ambiente mais agradável e em condições mais
favoráveis a continuarmos após duas horas e meia já de, de contato da sala de
aula, que seria em um café, em um restaurante, em um bar, em um outro local,
mas seria uma continuidade, ainda, do que vínhamos fazendo e talvez até com uma
maior intensidade mas infelizmente talvez por serem alunos da graduação eles
sabem que eu estava brincando, era uma brincadeira talvez, mas, muito séria.
Felizmente na pós-graduação quando já temos um aluno com uma maior maturidade,
estas brincadeiras são levadas a sério e a gente consegue, como você bem sabe,
ter esta extensão do nosso trabalho para um ambiente que nem por isso deixa de
ser favorável ao bom desenvolvimento do conhecimento. Aliás, Platão no seu
ultimo diálogo publicado sobre tema jurídico que inclusive se chama: As Leis,
refere-se explicitamente como sendo o banquete o local mais propicio para a produção e reprodução do conhecimento.
Então, na verdade, não se trata mais do que retomar antigas lições, isso que
estamos aqui a propor.
Entrevistador: Professor quais são seus objetos de pesquisa atuais?
Willis: Eu no momento venho me
dedicando a desenvolver o que espero que possa vir a se tornar uma, uma
perspectiva digamos assim, verdadeiramente pós positivista em teoria do
direito. Eu entendo que aquilo que eu próprio ajudei a apelidar assim aqui em nosso país por
exemplo em, em aquilo que publiquei em 1985 na Revista Nomos de Mestrado em Direito
da Universidade Federal do Ceará, na época inclusive editada por mim,
denominado: Pós modernismo, Oh! desculpa! Pós
modernidade, pós positivismo e a filosofia do direito. Na verdade é o texto
de uma palestra que eu ministrei em vários lugares em que termina relatando o
que eu vinha desenvolvendo ao longo já dos anos 80 quando eu fui fazer meu
doutoramento na Alemanha; depois que retornei aqui para o Brasil, logo em
seguida. E naquele momento a gente referia como pós positivismo como, hoje em
dia e, até muito tempo aqui a gente se refere aqui no Brasil, e mesmo fora
daqui, autores como o Robert Alexy que não, diga-se de passagem, denomina
assim, qualificam assim o seu pensamento. Ou seja, o Robert Alexy ou, o Dworkin
(Ronald) que é uma das influências importantes em Alexy não são autores que se
apresentam mas, que ou pelo menos não denominam assim as suas propostas
teóricas . Quem chegou a denominar um termo similar ao pós-positivismo a sua
teoria foi o Friedrich Müller, autor
da teoria estruturante do direito que ele qualifica de Nach Positivistischen, ou seja, não seria, não seria propriamente
pós positivistas como se diria em alemão, mas seria após positivista, uma
teoria que segundo ele, como ele, no prefácio de sua obra fundamental da teoria
estruturante do direito anuncia, desenvolveu esta obra e este pensamento em
homenagem a Kelsen, fazendo então uma grande homenagem que se deve, que se pode
fazer a um pensador importante, que é justamente procurar superá-lo. Neste
sentido seria uma teoria pós kelseniana
digamos assim. Eu penso, portanto, que nós ainda estamos em busca desta
superação, sobretudo se considerarmos o Kelsen que de certo modo já foi pós kelseniano, pelo menos na medida em que
já foi alguém que pensou para além da Teoria Pura do Direito na segunda e, ao
que tudo indicava inclusive para ele, definitiva versão de seu pensamento
teórico. Culminando, inclusive, movimento que, aliás, vale lembrar, de certo
modo este ano pode-se comemorar seu centenário na medida que a primeira
elaboração mais bem feita desta importante teoria se deu com a publicação de
sua livre docência intitulada: Hauptprobleme
der Staatsrechtslehre, ou seja, Problemas Fundamentais da Teoria do Estado
em 1911, então Kelsen em 1960 publica a segunda edição da Teoria Pura, como é bem conhecido, porém, não, não encerra aí a, o
seu questionamento como pessoa dedicada ao pensamento tal como ele era. Então
nós temos, como eu gosto de enfatizar, que para mim é um gancho importante
justamente para estas novas pesquisas sobre o que estamos aqui conversando,
quando ele então já após publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito, (daqui por diante TP), retifica um conceito
fundamental do seu pensamento que é justamente aquele conceito de norma
fundamental, que ele apresenta como hipotética na segunda edição da TP e já
antes, esta norma fundamental seria uma norma hipotética fundamental numa
condição transcendental do conhecimento jurídico como ele também apresenta em
termos Kantianos, a esta norma da segunda edição teoria pura, só que aí ele se
dá conta de que, se é assim, ela não é uma norma! Uma norma não é um conceito,
uma norma não pode ser uma hipótese, uma norma, nos próprios termos dele, é o
resultado de um ato de vontade, é o sentido de um ato de vontade e não havendo
um ato de vontade correspondente a normal fundamental ela não poderia ser uma
norma, também não poderia ser uma hipótese porque hipótese é algo que se
confirma como verdadeiro ou falso e, portanto, não é um atributo segundo a
própria teoria kelseniana, que se
pode referir às normas e sim às proposições normativas. As normas são validas
ou inválidas, as proposições normativas é que podem ser verdadeiras ou falsas. Portanto
ele se dá conta, que ainda não tinha atingido um conceito satisfatório deste
conceito fundamental do seu pensamento normativo, normativista, e aí faz uma
proposta que terminou, curiosamente, não entrando no cânone kelseniano, não sendo bem aceito pelos
próprios discípulos, pela própria escola kelseniana,
a escola de Viena. Que é a idéia de que esta norma seria de se qualificar, a norma
fundamental, como fictícia, como uma ficção no sentido da teoria da ficção que
ele mesmo refere de Hans Vaihinger, deste pensador que produz uma curiosa
combinação de filosofia Kantiana com Nietzsche. Então, nós
tivemos inclusive já a oportunidade, de ter um de nossos mais próximos colaboradores
desenvolvendo no mestrado este diálogo implícito entre Kelsen e esta vertente
de pensamento que, mesmo sendo kantiana mas, leva à Nietzsche; trata-se do
Henrique Garbeline esse que inclusive colaborou comigo na atualização da segunda
edição da minha Teoria
da Ciência Jurídica e que para o doutoramento está
aprofundando estes estudos. Então aí nós temos esta abertura para uma abordagem,
já a partir do próprio positivismo em sua versão mais acatada e padrão que é a de
Kelsen, uma abertura para um desenvolvimento daquilo que podemos chamar de uma
concepção poética do direito. E é interessante que também neste momento, que é
um momento em que Kelsen desenvolve os estudos pós segunda edição da TP,
digamos assim, e isto está bem, isto está consubstanciado em uma obra póstuma
chamada: Teoria Geral das Normas que tem uma tradução, aqui para nosso idioma
do saudoso professor paraibano Florentino Duarte, José Florentino Duarte. E ali
é muito interessante como Kelsen também recupera, é bom que se destaque, que a
filosofia de Vaihinger já tenha sido usado por Kelsen em 1905 para discutir os problemas
das ficções jurídicas, ele esta de certa forma, retomando meio século depois algo
que já estava o início de sua carreira teórica. E também ele retoma nestes
estudos finais que estão subscontanciados na obra Teoria Geral das Normas, algo
que ele também já havia feito no passado nesse período inicial do seu labor
científico, que é uma aproximação entre o direito e a religião; afinal ele
publicou um livro que chama justamente: Deus e o Estado. Um livro que terminou se
mostrando uma importante fonte para um outro autor que, este sim, se
notabilizou mais do que ele por explorar estes vínculos entre o direito e a
religião que é Carl Schmitt com a sua Teologia Política.
Ora sabemos que Schmitt é um autor que se desenvolve muito no diálogo com
Kelsen e, um dos temas fundamentais deste diálogo é exatamente este, que Kelsen
inicia quando publica a obra: Deus e o Estado. Então, Kelsen no final de
sua vida, neste período final, me parece, fornece já uma série de elementos
para ir além dele mesmo e com ele em grande parte, que é a esta relação entre
direito e religião. Hoje em dia, eu estou muito preocupado em trabalhar dentro
destas linhas fundamentais de aproximação do direito com religião e com a
poética.
Entrevistador:
Bom, o senhor poderia explicar mais detalhadamente o que vem a ser a po(i)ética
e como tal perspectiva pode ser frutífera para o direito?
Willis: A
Poética é uma disciplina filosófica que remonta a Aristóteles. O Tratado da Poética,
fundamental, da lavra deste que é um dos autores do cânone filosófico padrão de
pensamento ocidental. Uma obra que, segundo um estudo que, a meu ver, ainda não
mereceu a devida atenção por parte dos estudiosos da filosofia do nosso país,
um estudo feito por Olavo de Carvalho, um autor que de algum modo sofre com um
certa estigmatização por um lado e, por outro lado também, não deixa de ter o
seu secto de seguidores e admiradores, mas o Olavo tem uma obra em que ele
procurar reavaliar o pensamento de Aristóteles a partir da Poética. Penso que aí
nós temos realmente uma chave para ser utilizada também para reavaliar o
pensamento teórico, igualmente do campo do direito, considerando aquela
faculdade um tanto quanto desprezada tradicionalmente, que é a faculdade da
imaginação. Que é a faculdade da imaginação! E aí, da mesma forma, penso que se
na Antigüidade, e mesmo na Idade Média, porque foi uma obra redescoberta, foi a
obra que foi redescoberta mais tardiamente dentre aquelas que compõem o corpus
aristotélico, esta da Poética, e ela vai ter uma enorme influência, portanto,
sobre a Idade Média e da Renascença, a baixa Idade Média e mesmo a Renascença.
Já na Modernidade eu destacaria uma obra de um autor que para a Modernidade de
certo modo representa o que representou para o período anterior Aristóteles,
que é Kant. Kant tem também uma terceira crítica, a Critica da Faculdade de Julgar,
que ele inicialmente chegou a pensar em denominar de: a Crítica do Gosto;
uma obra que é apresentada como fundadora da estética, mas que trata de um
assunto que podemos, isso que eu penso, devemos também, introduzir na discussão
da temática jurídica. Hannah Arendt já fez em sua última obra, The Life of the Mind,
a proposta de, a partir desta obra (Kant) pensar a política e, do que se trata,
portanto, é de estender a proposta arendtiana para pensar aquele produto,
digamos assim, dos mais importantes da política que é justamente o direito. E em
sendo, portanto o direito tido como uma criação, tal como é própria da nossa
tradição, a tradição ocidental, naquilo que ela remonta também a sua outra
vertente, além da grega ou greco-romana, que é a vertente judaico-cristã, aí
nós temos a possibilidade justamente de uma concepção creacional do direito, do
direito como um produto de uma criação que, se num primeiro momento é tido como
de origem divina, atualmente, ou, ao longo de um processo histórico, cortou ou
perdeu este vínculo com esta origem assentando-se no próprio homem a fonte
criadora, produtora do direito. Ora, então o direito é poiético! É algo que
surge como o resultado do emprego de um saber e de um poder de criação do homem
e, não apenas de mera reprodução como seria o saber da práxis, da técnica e da
prática. Então é uma técnica-poética diríamos em termos gregos. Porque nós sabemos
que, infelizmente, em Roma a técnica e a arte se confundiram e se misturaram,
inclusive numa palavra única que é ars e,
o direito terminou sendo associado mais ao aspecto técnico e, ainda hoje o é, e
menos a este aspecto, que eu diria que ser o aspecto original, e aqui podemos
reivindicar Vico, Giambatista Vico como um dos pensadores que são tutelares,
que são afiançadores desta idéia, quando remete a obra de legisladores
inspirados como artistas, a produção de um direito em suas origens mitológicas.
Ora o que é um mito senão uma criação artística com este conteúdo também, com
esta conotação também de religiosa. Então como você pode ver a gente considera
que é preciso pensar o direito novamente, eu diria, dessa maneira em que ele se
associa a estes elementos essencialmente
humanos, que são os elementos de ordem poética, ficcional, mítico, religioso.
Entrevistador:
Como esta criatividade poderia influenciar a forma de raciocinar em direito se
nos parece hoje que as características principais estão voltadas para um
utilitarismo que a gente poderia até qualificar de estéril?
Willis:
É! Justamente porque é esta visão tecnicista do direito. O direito visto como
um mero instrumento técnico, de controle do comportamento, da conduta humana
sem concebê-lo também como tendo o ônus de justificar! De fundamentar! A
orientação que, pelo direito se fornece, para esta conduta, ou seja, a medida
que nós não temos uma sociedade como a nossa, de uma maneira digamos assim,
bastante extraordinária na história da humanidade, não temos mais este vínculo
que sempre, em geral, tem se observado ao longo desta história, no passado, e
ainda hoje no presente, em sociedades ainda hoje existentes e que se organizam de
um modo; que justamente não é o modo das sociedades com aquelas marcadas pela
civilização ocidental do atual momento de sua história, em que se verificou a
ruptura do vínculo tradicional entre o direito e uma esfera transcendente que o
justifique. Esta esfera transcendente, e neste sentido, uma natureza religiosa,
que tanto pode ser e foi, por exemplo, no nosso passado ou no passado desta
civilização ocidental mais recuado no seu passado greco-romano, esta instância
transcendente é a política, propriamente dita, enquanto a crença na
superioridade da cidade, de cidades inicialmente gregas e, depois Roma; e na
outra vertente, formadora desta civilização, na vertente judaico-cristã, a
justificativa estava na transcendência, aí sim, da própria divindade: monoteísta,
única, do Deus único, criador do universo, do homem e, portanto, das suas leis
fundamentais também expressas muito bem no decálogo, nas dez normas dos dez
mandamentos, dos decalogois
(δεκάλογοι), dos dez ditos transmitidos na tradição judaica através de Moisés e
enviado por Deus. Então é curioso que nós terminamos então produzindo na Modernidade,
claro, a ruptura destes vínculos do
direito com qualquer forma de transcendência, seja em termos estritamente
religiosos ou em termos teológico-políticos, então, o direito está digamos
assim, tendo que se impor pelas suas próprias razões e a gente não pode
considerar satisfatório que a estas razões não se acrescente alguma forma de
convicção emanada daquilo que nós entendemos, se precisa prestar mais atenção
atualmente, que é o próprio sentimento ou a sensibilidade dos que estarão
sujeitos a estas ordenações, para que estas ordenações não sejam percebida e,
de fato, implementadas de uma maneira que desconsidera a dignidade própria
destes sujeitos.
Entrevistador:
É interessante observar que existe esta raiz bastante primitiva que está nesta
ligação entre direito e religião. E sendo a religião um dos seus objetos de
estudo, a que conclusões o Senhor chegou, preliminarmente pelo menos, nesta
relação do direito com a religião?
Willis: Bem! A conclusão é que o
direito, na origem, encontra-se, como eu vinha dizendo, associado sempre a
alguma forma de religião, o direito é sempre um direito que diferencia aqueles
que o adotam de outros que, por não o
adotarem seriam considerados, como por exemplo entre os gregos, bárbaros e que
portanto, menos do que poderia se considerar propriamente humanos, ou seja, o
direito neste vínculo com a religião que lhe é, digamos assim, tradicional, que
é o que mais se observa, onde se observa agrupamentos humanos no modo mais
original em que ele apresenta como por
exemplo, as tribos, ou mesmo depois os clãs, ou seja, mesmo quando estas tribos
por fatores que não vêm ao caso agora explorarmos, transformam-se organizações
ou grupamentos sociais mais complexos ou maiores, porque o fato de ser complexo
depende muito do ponto de vista na medida em que na menor tribo, pode e geralmente,
se encontra presente aspectos de extrema complexidade que são próprios do ser
humano desenvolver! Basta citar o sistema de parentesco tão bem estudado por Levi-Strauss,
justamente nestas sociedades ditas primitivas que deste ponto de vista, por
exemplo, da sua estrutura de parentesco, não têm nada de primitivas, são
extremamente sofisticadas e complexas. E quando nós temos esta separação do
direito da religião que só é possível quando justamente nós vemos surgir uma
espécie de religião muito diferente de outras que são exatamente as religiões
monoteístas; porque aí nós vamos ter a condição histórica para a futura
separação do próprio direito e da religião porque, se num primeiro momento as religiões
monoteístas mantém a relação entre direito e religião e este primeiro momento
pode perdurar como ainda perdura por exemplo, entre as cidades que adotam a
religião islâmica. Por outro lado naquelas de influencia cristã, ou seja, na
versão cristã do monoteísmo originalmente judaico, e também para o islamismo, mas
é na versão cristã que nós vamos observar...aqui parou
o áudio...
Entrevistador: O humanismo parece que
está justamente fincado em toda esta tradição que vem justamente desde a
concepção cristã de mundo. Só que a gente observa também que, e eu sei que este
é um dos temas dos seus estudos, o
problema da violência que foi levantado em princípio pela antropologia e se
configurou mesmo como uma característica original do direito. Como o problema
da violência vai influenciar o pensamento jushumanista na sua visão?
Willis: A violência é, de certo modo, o
próprio conteúdo do direito. Se a gente quiser radicalizar, se a gente quiser
pensar a questão a partir de suas raízes, sem eufemismo, a gente costuma sempre
se utilizar de um eufemismo pra não declarar abertamente esta relação original
mesmo entre o direito e a violência! A gente costuma falar em coação! O próprio
Kelsen, que a gente falava no início, terminou definindo o direito como uma
ordem coativa. Na linha de Ihering, nos lembramos também de Max Weber, invocando
um discurso de Trotsky em que definia o Estado como o detentor do monopólio do
uso da violência de uma determinada sociedade, o que ele faz, utilizando-se
para tanto do direito! O direito pode ser entendido, nestes termos, o direito
já do Estado moderno, pode ser muito bem entendido como a regulação, dizem de
uma maneira mais eufemística, do poder! E o que seria o poder? O uso legitimo desta
violência! Ou seja, um uso e exercício de uma violência que seriam legitimados
na medida que estivessem previamente estabelecidos o modo desse uso, quem
utilizaria, o quanto utilizaria, quando utilizaria, desses meios coativos. Para
assim, evitar que esta violência fosse praticada de uma maneira indiscriminada.
Então, do que se trata é de evitar um uso arbitrário das próprias razões ou da
violência, de maneira irracional! De certo modo do que se trata é de
racionalizar o uso da violência no Estado moderno. Mas, a rigor, de um ponto de
vista sociológico, um observador sociológico como Max Weber e, mesmo um teórico
do direito que por mais que desenvolva uma teoria formal e abstrata, como é o
caso de Kelsen, não deixa por outro lado de estar comprometido com o que pode
se chamar um princípio de realidade!
Neste sentido vai admitir claramente esta relação originária entre o direito e
a coação ou violência, dependendo do ponto de vista. Mas, não deixa de ser a
mesma coisa. Então o que a gente observa em diversas propostas que se
apresentam como humanistas em direito e, em geral, é que elas podem sim estar
acobertando, sob um certo conceito do que seria humano, uma justificativa do
emprego da violência que estaria, poderia estar, e estaria de fato, mostrando-se
divergente desses padrões. É por isso que, se por um lado entendemos que é
fundamental retomar esta discussão sobre o que é o ser humano se quisermos renovar
a discussão sobre o direito, não podemos, ao fazer isso, desconsiderar que o
ser humano é um ser violento por excelência! Eu chego até a radicalizar dizendo
que violência mesmo só quem pratica são os humanos. E só numa perspectiva
antropomórfica é que vamos chamar de violentos, atos que em si não me parece
que se pode caracterizar como tal, como os atos de um animal selvagem qualquer
que sem ter consciência propriamente do que está fazendo exerce as suas forças
naturais na busca de alimento ou, de algum modo, praticando crueldades que não
se podem considerar comparáveis ao que pratica o próprio ser humano.
Entrevistador: Como o Senhor vê o
futuro da filosofia jushumanista? Estaríamos numa espécie de encruzilhada
moral, a partir dos acontecimentos tão contundentes da atualidade? (pós-Modernidade
líquida, tecnologia robotizante, consumismo compulsivo, manipulações bioéticas
de toda ordem, etc.).
Willis: Bem! Eu penso que esta
perspectiva filosófica, ela pode se mostrar como uma espécie de trincheira em
defesa de certas prerrogativas do ser humano que estes desenvolvimentos
mencionados estão negando! E aí, e vai soar muito estranho certamente o que vou
dizer agora, porque por exemplo, exatamente onde estas prerrogativas do ser
humano, a prerrogativa de morrer, de saber que vai morrer; de sofrer, de
aprender com o sofrimento, de se transformar, de se transfigurar a partir de
experiências que hoje em dia se procura de todos os meio evitar! Também não estou
propondo aqui que se vá em busca delas. O que é bem diferente de simplesmente
se negar a importância de nós sermos confrontados com os nossos limites, como a
nossa contingência, com as incertezas de nossa condição de ser consciente, de
viver e, portanto, de não ter existido sempre e nem existir para sempre. Então
estes desenvolvimentos todos mencionados me parece que, por um lado, vão num
sentido de promover um esquecimento desta nossa condição precária de ser ou,
por outro lado buscar a superação dela. Buscar, fazer com que atinjamos um
outro modo de ser e aí eu tenho muitas duvidas se será um melhor modo de ser se
formos tomar como parâmetro para isso, as máquinas que estamos construindo! O
que me parecer ser o caso. Infelizmente.
Entrevistador: E nesta perspectiva
como, como o Brasil se coloca nisso? Inclusive sendo qualificado como país de
periferia por muito tempo, e eu sei que uma das suas lutas é por uma filosofia
brasileira! Obviamente não desconsiderando vários dos autores que já
trabalharam e trabalham nesta perspectiva, seria então possível pensar a partir
de uma forma filosoficamente brasileira?
Willis: Eu acredito sim! Acredito que
há justamente no sentido de garantirmos essas prerrogativas do ser sofredor,
sofrido que somos. Há, sem duvida! Há algo de muito importante que pode surgir
justamente desses que estão na periferia e padecem mais, sob certo aspecto, dos
que estariam no centro. E além do que, estando na periferia e de certa maneira,
deslocados, têm uma posição de observação que nos permite fazer descobertas que
ficam mais difíceis para os que, digamos assim, estão no olho do furação. E se
nós pensarmos que foram justamente das periferias os grandes impérios da
antiguidade que surgiram as duas grandes forças geradoras desta civilização,
que agora está em crise que é a nossa civilização ocidental, ou seja,
justamente ali no nordeste do mediterrâneo em que se tem o surgimento, por um,
lado da filosofia e outros contributos importantes da civilização grega e, por
outro lado, a religião monoteísta da civilização judaica. Absolutamente
periféricas na época em que floresceram. Eu penso que também atualmente nesta
nossa periferia há a possibilidade de florescer pensamento tão exuberante como
este da nossa fauna porém para isso nós teríamos que tomar uma maior
consciência de elementos constitutivos do nosso modo próprio de pensar, e neste
sentido eu destacaria exatamente este modo mais sofredor de pensar que se
expressa muito bem numa palavra que é muito nossa, e quando eu digo nossa, aqui
é evidente incluo os que vivem nesta língua, vivem em línguas similares a esta
que vivemos de origem português ou galaico-portuguesa, que é o sentimento de
saudade. Eu estou muito interessado em conhecer cada vez mais o que seria, o
que se esconderia por detrás desta simples palavra que, como sabemos, é uma
palavra como conotações muito próprias dos falantes de nossa língua que é a
palavra saudade.
[Risos entre
entrevistador e entrevistado]
Willis: O que você acha?
Entrevistador: Eu acho ótimo.
Willis: [risos]
Entrevistador: Principalmente por ser
um sentimento.
Willis: Isso
Entrevistador: Esta racionalidade
esterilizada pelo modelo positivista parece que deu o que tinha que dar. Tem
mais coisas aí, por detrás disso que precisam ser exploradas.
Willis: É isso aí
Entrevistador: Muito obrigado.
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