ENSAIOS DE PSICANÁLISE APLICADA
Willis
Santiago Guerra Filho*
São Paulo, Abril de 2005
Ø
APONTAMENTOS INICIAIS DE PSICANÁLISE
Em 1891, FREUD escreveu o primeiro dos seus estudos sobre as
paralisias cerebrais em crianças, e começou a investigar a teoria da afasia.
Enquanto observava o trabalho de BERNHEIM com seus pacientes no hospital,
começou a pensar com mais intensidade acerca da possibilidade de haver “poderosos
processos mentais que, não obstante, permaneciam escondidos da consciência dos
homens.” É assim que, embora não constem de suas “Obras
Completas”, por entenderem seus editores de ali só incluírem obras
psicanalíticas, já naqueles estudos neurológicos se pode rastrear elementos do
pensamento freudiano posterior, o que é ainda mais explícito no abandonado
“Projeto de uma Psicologia Científica para Neurólogos”, com seu modelo
energicista.
Em “Uma breve descrição da psicanálise”, o próprio FREUD afirma que
ela nasceu no século XX, em 1900, com o aparecimento da obra “A interpretação
de sonhos”, embora tenha afirmado, em ocasiões anteriores, serem seus “Estudos
sobre a Histeria”, realizados com BREUER, os primeiros de cunho psicanalítico –
no que parece ter sido repelido até por BREUER. A todo nascimento, no entanto,
antecede um “período de geração”. Assim foi, também, com a psicanálise. É
necessário, pois, chamar atenção acerca das influências que determinaram sua
origem, assim como a época e as circunstâncias que precederam sua criação. Não
se sabia muito a respeito das “doenças nervosas funcionais”. Não existia, na
verdade, um tratamento médico adequado para elas. Os médicos da época, somente
começavam a tratar a paralisia histérica quando a doença já se encontrava em
estágio avançado, tendo danificado gravemente o cérebro e levado a paralisias
orgânicas. Foi, então, que FREUD concluiu que, durante a hipnose, havia a
manifestação de processos mentais inconscientes. Ele concluiu isso com base no comportamento dos
pacientes, após a hipnose: eles não tinham consciência do que haviam dito ou
sentido.
CHARCOT utilizava-se da hipnose para curar pacientes histéricas, mas
não direcionou seus estudos no sentido da compreensão psicológica da histeria.
Seu discípulo, PIERRE JANET demonstrou que os sintomas da histeria eram
dependentes de certos pensamentos inconscientes (idéias fixas). Atribuiu, no
entanto, a histeria a uma suposta “incapacidade constitucional”.
O “caso Anna O.”[1] serviu bem para ilustrar a relação entre os
sintomas da histeria e o período de enfermagem. Em outras palavras, pode-se relacionar
a vida emocional do paciente aos sintomas que aparecem na histeria.
Para BREUER e FREUD, nos casos de histeria, o afeto passava por uma
inervação somática fora do comum (conversão), o
que gerava o sintoma - mas se lhe podia dar uma outra direção e ver-se
livre dela, se a experiência traumática fosse revivida sob hipnose. Esse
“redirecionamento” foi chamado de “método catártico”, sendo considerado o
“precursor imediato da psicanálise”, onde está contido o seu “núcleo essencial”
[2].
Após a publicação de “Estudos sobre a Histeria”, FREUD e BREUER se
separaram: FREUD resolveu dar mais um passo no sentido do desenvolvimento do
método psicanalítico. Ele achava que a hipnose não era a forma mais adequada de
tratar pacientes histéricos, em primeiro lugar porque ela não funcionava com
todos os pacientes: muitos não conseguiam entrar em transe. Em segundo lugar,
porque ele não estava satisfeito com os resultados terapêuticos da catarse
baseada na hipnose: o paciente não tinha consciência dos processos inconscientes
pois, quando ocorriam, ele se encontrava “em transe” - portanto, não
consciente. Notou, também, que o bom resultado do tratamento dependia muito da
“boa relação entre paciente e médico”.
Era necessário, no entanto, substituir a
hipnose por outro mecanismo que possibilitasse ao paciente recordar aquilo que
ele havia “esquecido”. Foi nesse contexto que surgiu a idéia de utilizar a
“livre associação” como principal mecanismo substitutivo da hipnose. A livre
associação consistia no compromisso dos pacientes “de se absterem de qualquer
reflexão consciente e se abandonarem em um estado de tranqüila concentração,
para seguir as idéias que espontaneamente (involuntariamente) lhe ocorressem –
a escutarem a superfície de suas consciências.” [3] Cumpre
ressaltar que, para que as idéias fluíssem com espontaneidade era necessário
que se estabelecesse um vínculo emocional entre paciente e terapeuta – a
transferência. A este caberia interpretar as idéias “importantes” que fossem
surgindo na fala do paciente. As idéias que seriam consideradas “importantes”
para a terapia, dependiam da interpretação (particular) do terapeuta[4] e
estariam vinculadas a cada caso concreto: a história pessoal do paciente. Dessa
forma, a transferência, a livre associação e a interpretação do terapeuta
substituíram a técnica de hipnose.
Nesse processo interpretativo era
necessário levar em conta, principalmente, as “resistências” do paciente.
Resistência, recalque ou repressão, Verdrängung em alemão, consiste em
uma sensação que de incômodo ou sufoco, que leva o paciente a “desalojar” o
material que o incomoda. “Contudo, apesar de ter sido afastado, tal material
permanece junto ao sujeito, pressionando pelo retorno e exigindo a mobilização
de esforço para mantê-lo longe.”[5] O
chamado “retorno do reprimido” se refere à “pressão pelo retorno”, que gera os
“sintomas” apresentados em pacientes
histéricos, por exemplo.
A causa da repressão pode ser encontrada em valores morais,
religiosos, sociais, etc. Os impulsos sujeitos à repressão dependem sempre da
“história pessoal” do paciente e estão sempre ligados à idéia de erro, de mal
dos impulsos sexuais vivenciados na infância.
Apenas em conseqüência da repressão é que os fatos se tornam
patogênicos, “isto é, haviam tido êxito em manifestar-se ao longo de caminhos
fora do comum, tais como os sintomas.”[6]
Ao contrário do que se pensava até então, FREUD defendia que os
processos mentais são em si mesmos inconscientes. Apenas uma pequena parcela
“escapa para o consciente”. A maioria dos processos mentais se tornam
conscientes “pelo funcionamento de órgãos especiais (instâncias ou sintomas).”[7]
FREUD defendeu que, se todas as condições postuladas pela psicanálise
fossem implementadas, seria possível estender o tratamento psicanalítico a
outros “fenômenos”, além da histeria. Na
obra “A Interpretação dos Sonhos” – publicada em 1900, conforme já
salientado - FREUD já defendia que os sonhos eram construídos exatamente da
mesma maneira que os sintomas neuróticos. O sonho, com sua linguagem
figurativa, aparece como uma realização disfarçada de um “desejo reprimido. “O
estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho –
processo conhecido como trabalho do sonho – ensinou-nos a maior parte do que
sabemos sobre a vida mental inconsciente.”[8] Também
as parapraxias ou “atos fallhos” (Fehlschlüsse) – esquecer coisas,
lapsos de língua –tão freqüentes na vida cotidiana, são vias de acesso ao
inconsciente. Dessa forma, a psicanálise poderia ser relacionada à vida normal,
criando, então, uma nova psicologia.
A partir de então – ano de 1909 -, sua obra começou a ser divulgada e
foram fundados periódicos dedicados exclusivamente à psicanálise,
principalmente em países da Europa e Estados Unidos[9].
Entre 1911 e 1913, C.G. JUNG[10], em
Zurique, e ALFRED ADLER, em Viena, chamaram atenção da comunidade científica da
época, na tentativa de atribuir uma nova interpretação à teoria psicanalítica,
na tentativa de “suavizá-la”, livrando-se dos rigores e exigências da
psicanálise, em respeito a seus princípios. Muitos depois de JUNG tentaram
conferir uma nova interpretação à psicanálise, muitas delas distorcidas e
equivocadas – principalmente na Inglaterra e Estados Unidos.
A teoria psicanalítica não está, no entanto “completa”. Muitas de suas
teorias – e a psicanálise pode ser descrita antes como um conjunto dessas
teorias (teoria do narcisismo, das pulsões etc.), ao invés de uma só teoria -,
como aquela relativa à libido, não estariam absolutamente completa.
Com a implementação de novas pesquisas em psicanálise foram descobertos
fenômenos humanos bastante importantes e interessantes, como o fenômeno de que
“nos estratos mais profundos da atividade mental inconsciente, os contrários
não se distinguem um do outro, mas são expressos pelo mesmo elemento.”[11] Em
pesquisa realizada por um filólogo, KARL ABEL, em 1884, havia-se descoberto que as línguas mais
antigas, conhecidas por nós, tratam os contrários da mesma maneira – a palavra
alemã Boden, significa ao mesmo tempo sótão e chão, ou seja, a parte
mais alta e mais baixa da casa. Com base nesses fatos, pode-se afirmar que a
“equivalência dos contrários nos sonhos constitui um traço universal do
pensamento humano.”[12]
Também foi “descoberta” a vinculação do sentimento religioso à relação
com o pai, como sua raiz mais profunda; as expressões artísticas – literatura,
pintura, etc. - mostram, na verdade, a vinculação delas ao “inconsciente
incompreensível”, permitindo a “construção de uma ponte” entre o mito e a
realidade: o complexo de Édipo. O complexo de Édipo é o “correlativo psíquico
de dois fatos biológicos fundamentais: o longo período de dependência da
criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual atinge um primeiro
clímax do terceiro ao quinto ano de vida, e depois, passado um período de
inibição, reinicia-se na puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma
terceira parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a parte
criadora das grandes instituições da religião, do direito, da ética e de todas
as formas de vida cívica, tem como seu
objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar seu complexo de Édipo e
desviar-lhe a libido de suas ligações infantis para as ligações sociais que são
enfim desejadas.”[13]
A divisão do aparelho psíquico em EGO (Ich), SUPEREGO (Überich)
e ID (Es), bem como em uma região dominada pela consciência (Bewußtsein)
e outra, bem mais vasta, de contornos indefinidos, onde prevalece o
inconsciente (Unbewußt), faz com que possamos definir a psicanálise como
a psicologia do ID e de seus efeitos sobre o EGO, mediados pelo SUPEREGO. Daí
ter FREUD consagrado como objetivo maior de sua técnica tornar consciente o que
está insconsciente: “Wo Es war, soll Ich werden”.[14]
Os estudos de teoria psicanalítica vem
contribuindo significativamente para que se compreenda a ação constitutiva que tem
o desejo em relação à subjetividade humana. Para que chegássemos a nos
conceber como sujeito, no entanto, fez-se necessário um longo percurso, no qual
influenciaram sobretudo contribuições de proveniência religiosa, filosófica e
jurídica.
A contribuição maior da religião, especialmente aquela de origem
semita, monoteísta, reside na produção de um primeiro sujeito, Deus
todo-poderoso e onisciente, pois o sujeito tal como o concebemos e com o qual
nos identificamos, é um sujeito de saber e um sujeito de poder, de vontade de
poder (Nietzsche), de vontade de vontade (Heidegger), ou, simplesmente, um
sujeito de vontade, pois a vontade já implica um querer se impor aos outros
e/ou ao mundo. A filosofia, desde sua origem grega, vem contribuindo com o
desenvolvimento do sujeito de saber, tendo reforçado esta vertente da religião
semita, quando de seu encontro histórico, do qual resultou a teologia medieval,
origem mais próxima da subjetividade moderna, com suas implicações econômicas,
políticas etc. O direito, especialmente desde sua elaboração pelos romanos, sob
o influxo já da filosofia grega, revela-se a terceira matriz fundamental da
configuração de nossa subjetividade, conferindo-lhe a forma para sua expressão
institucional, definindo, por exemplo, nosso modelo de filiação, vinculação
matrimonial, apropriação e disposição de bens etc. A concepção jurídica romana
já se faz presente, assim como última grande corrente filosófica grega, o
estoicismo, que tanto a influenciou, na origem mesma do cristianismo, através
de seu primeiro sistematizador, Paulo, sendo a versão cristão da religião
monoteísta semita, por sua adoração de um Deus que se fez homem, fator
absolutamente decisivo para realização de nossa subjetividade atual, pois
Cristo foi o primeiro sujeito humano, com características que agora se atribui
a todos, em obediência a sua doutrina. Um momento em que se dá o entrelaçamento
mais firme entre o direito, a religião e a filosofia/teologia, tendo como pano
de fundo uma renovação dos estudos da linguagem, e que assume particular
importância para o que se sucedeu – ou seja, nossa Civilização -, foi aquele do
chamado primeiro renascimento, na última passagem de milênio, nos séculos XI e
XII, portanto. Este período marca o início do que se pode denominar “primeira
modernidade”, quando a Escolástica medieval se constitui, sob a influência do
nominalismo dialético representado exemplarmente no pensamento de Abelardo,
mais conhecido por ter sido protagonista do que se pode considerar o primeiro
caso de amor romântico – e, logo, moderno -, sendo que seu pioneirismo se deu
também no campo das idéias, que, de todo modo, é indissociável daquele das
emoções e sentimentos, como hoje sabemos, graças, também, à psicanálise.
I
De
tragédias, mitos, direito e outras ficções
contempladas
pela metapsicologia freudiana.
Ao comparar manifestações mais tradicionais de ordens simbólicas e
normativas, como a religião, a ética e o direito, com a psicanálise, ressaltam
os contrastes. Por exemplo, entre a miríade de regras que constituem os
primeiros, regras com caráter genérico e abstrato, e aquela uma só regra,
concreta e individual, que constitui a última: a da associação livre, para
revelar-nos os desejos, sempre pessoais. A psicanálise, portanto, não se
prestaria a fundamentar um discurso que tenha por objeto algo da ordem do
coletivo.
Vale esclarecer que aqui seguimos a Freud e Lacan,[15] quando
insistem em tratar do coletivo não
como uma entidade com
"id-entidade" própria, mas sim, como projeção do individual. G.
Pommier ressalta que "embora não exista inconsciente coletivo, existem
ficções coletivas, que retiram sua força do inconsciente de cada um".[16] Por
outro lado, é bom lembramos que, se o inconsciente não é coletivo, tampouco é
individual, mas sim "transindividual", enquanto constituído por um
Outro, efeito sobre o sujeito de uma ordem simbólica, que o antecede e
transcende,[17] por
estar no começo, tanto da espécie (filogênese), como de cada indivíduo
(ontogênese). Inclusive, como destaca Enrique Mari,[18] Freud
enfatizou isso tendo em vista uma leitura de sua obra "Psicologia das
Massas e Análise do Eu" (v. esp. cap. X),[19]
naquele primeiro sentido, feita por Hans Kelsen,[20] quando
no final de seu longo percurso teórico irá concluir que o fundamento no qual o
direito se assenta é uma norma fictícia – sendo ele, portanto, assim
como a religião, a moral e, porque não dizer, a própria psicanálise, grandes
ficções, que construímos individual e coletivamente para tornar possível nossas
vidas em comum, o que termina sendo enormemente favorecido se nos damos conta
desse seu caráter fictício, simbólico, convencional: se não esquecermos que
estamos para efeitos práticos assumindo como verdadeiro o que não é (ou não se
sabe se é) - desenvolver racional e conscientemente
uma ilusão não é melhor do que se iludir com a racionalidade e a consciência?
De forma convincente, a partir de uma série de estudos dedicados ao
assunto, Joel Birman sustenta que o intento de Freud, de fundar em bases
científicas a psicanálise, teria esbarrado em obstáculos epistemológicos
intransponíveis,[21] os
quais, no entanto, serão superados, por meio daquilo que o próprio Freud
denominará sua “metapsicologia” – a ela, em estudo célebre de 1937, sobre o fim
da análise, se referirá como a “feitiçaria” que usou, para atravessar aqueles
obstáculos. Já em seu estudo “Uma neurose diabólica do século XVII”, de
1923, Freud demonstrará seu respeito pelo enfoque demonológico da loucura,
superior ao da ciência oficial de então, assim como na segunda série de
palestras introdutórias à psicanálise, de 1933 - que, como é sabido, jamais vieram a ser pronunciadas, devido à
saúde de seu autor -, naquela que teria sido a 30ª palestra (a
segunda da nova série), ele fará em relação às práticas ocultistas,
especialmente a telepatia, considerando possível que o futuro avanço da ciência
a revelasse plausível, enquanto, por hipótese, um resquício de quando nossos
antepassados se entenderam sem possuírem a linguagem para se comunicarem. Ao
que parece, portanto, Freud teria chegado a conclusão semelhante àquela de
Lévi-Strauss, quando o antropólogo afirmou não poder diferenciar o estudo dos
mitos feito por ele desses mitos mesmos...
Certa feita disse Jacques Lacan, em um de seus Seminários,[22]
"o que vem lá do começo tem um nome: é o mito". Myeîn, em
grego antigo, significava iniciar. No mito, mascara-se a verdade. Mas ela está
lá, só que mascarada, enfeitada. Talvez isso seja preciso por não ser tão bela
e agradável olhar para ela; por não suportarmos vê-la diretamente, sem
anteparos, assim como não suportamos olhar de frente, por muito tempo, o sol -
ou a morte. Como Nietzsche, que em sua obra “O Nascimento da Tragédia no
Espírito da Música” (1872) atribui à extrema sensibilidade do grego antigo
para a dolorosa verdade da existência que pode se acabar violenta e
abruptamente sua capacidade a criação das tragédias, podemos ver aí a fonte de
sua rica mitologia, bem como, posteriormente, da transformação de ambas em
filosofia, mãe de toda ciência.
Então, no mito, a verdade é dita, mas
não toda a verdade: uma verdade pela metade, isto é, literalmente, em símbolos.
O mito é da ordem do simbólico. Aqui, vale observar que não há uma só
explicação para a origem etimológica da palavra "símbolo" - como, aliás, ocorre com freqüência, em
etimologia -, mas penso que aí, mesmo quando fantasiosa uma explicação dada,
ela não perde seu valor como expressão do imaginário - e a explicação real, do
real, de qualquer forma, é impossível de ser dada, pois ele se define - em Lacan -, precisamente, como o que nos
escapa. Para nós, nesse contexto, mito é uma fantasia estruturante do sujeito,
uma verdade, que, como toda verdade, "tem uma estrutura de ficção",[23] e "só pode ser concebida se enunciada em
um semi-dizer".[24]
Lembremos, portanto, nessa perspectiva,
do mito concebido por Freud, para figurar o surgimento da religião e de tudo o
mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico. Na origem
disso tudo – onde se inclui, é claro, o próprio direito - estaria um crime, o
primeiro, o assassinato de um pai, que só depois de assassinado os assassinos o
perceberiam como pai, e a eles, os assassinos, como filhos. Esse pai teria sido morto por não partilhar
nem limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e ab-usava das mulheres
da chamada "horda primitiva", em que viviam agrupados. Há, portanto,
nesse assassinato, uma conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio,
o que seria justificável, e de fato o foi, dadas certas circunstâncias, até por
padres da Igreja Católica, teólogos-juristas medievais, regicidas. Só que o
tirano, depois, revelou-se como pai.
Na situação que podemos imaginar como
sendo aquela dos "filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que
cresciam, eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus
próprios meios o sustento e as suas mulheres, o que bem pode ser entendido como
“trágico”: No mito-fundador da sociabilidade humana, concebido por Freud,
encontramos, como veremos em seguida, as características próprias da tragédia,
o seu telos, tal como se acha definido por Aristóteles, nos capítulos
sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a poética: provocar piedade e
temor. Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que os filhos
expulsos ficavam inconformados com a perda do convívio na horda, onde
aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que sozinhos não
conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia que os levou a pactuar,
tacitamente, o assassinato de quem os expulsou, e que morto, ausente, se
revelará como o pai.[25] Eis que, porém, esse primeiro contrato, um
pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito
benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer
modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além disso, ao invés da
aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí
também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de
verdade", donde terem instaurado o
matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi
organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss considera a
lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira: a
lei que proíbe o incesto com a mãe.[26] Após o
assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por todos, havendo
neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que um sentido de
incorporação do poder e de recolhimento em si do morto, a finalidade de
instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”.
Na situação em que se encontraram nossos
antepassados parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os
sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o instrumento de
purgação e apaziguamento, pela catarse provocada com a encenação das tragédias,
de semelhantes paixões: temor - "prius in terram deus facit terror"
- e piedade (inclusive, auto-piedade). Assim é que, como para
complementar o mito do assassinato do pai primevo, no dizer de Lacan,
"talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz (...), mito
de um tempo para o qual Deus está morto",[27] a
outra grande invenção de Freud, para estabelecer o estatuto da fantasia
inconsciente que nos constitui, inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei",
apontada por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada obra, como
exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer "tremer de
temor" e apiedarmos.[28] Ali,
também um filho assassina, inconscientemente, o pai, que o expulsara do
convívio familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda primitiva,
vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o saber (inconscientemente), ou
seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos
primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual
com a mãe, acompanhado de um gozo letal.[29] Em
ambas as hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela se toma
consciência, é o reforço da interdição, com
a invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto,
revela-se como condição do gozo, ao acenar para a sua possibilidade,
anunciada no além dela,
isto é, na sua trans-gressão.
Eis aí representada a origem violenta de toda proibição, tanto
sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo
enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna”
não poderá ser contido pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma
consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização
defendida pela ideologia oficial e a “re-sacralização” crescente das relações
fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”.[30]
Há, então, para a psicanálise, um
pai-morto na origem da sociedade, da religião, da ética e do direito, assim
como na origem da própria psicanálise, só que aí não é um pai-mítico, mas um
pai real, o pai do pai da psicanálise, o pai de Freud, cuja morte, segundo
atesta ele próprio, o teria levado a escrever o seu primeiro trabalho puramente
psicanalítico, "A Interpretação dos Sonhos", a partir da
interpretação que elaborou para os sonhos que tinha com seu falecido pai.
Depois, com a postulação do complexo de Édipo e do mito da horda primitiva,
Freud vai pôr um pai-morto na estrutura de nossa organização psíquica. Por fim,
em sua última obra, “Moisés e o Monoteísmo”, Freud pretende descobrir um
patriarca assassinado pelos seus na origem da nação e da religião monoteísta
judaica. Então, como dirá Lacan, tudo gira e é amarrado pelos
"Nomes-do-pai" - e ele dará vários nomes ao Pai, pois o conceberá
como uma "função", mais dessubstancializado do que em Freud, por quem
era tido como uma "posição". O significante "Pai" é
equivalente ao significante "Lei", no mesmo encadeamento ao qual
pertencem outros significantes, como "Deus" e "Falo", por
entre os quais o sujeito se constitui, e pelos quais é representado. [31]
Tendo referido à lenda de Édipo para caracterizar, segundo a
psicanálise, a associação da Lei, em suas diversas modalidades, com a função
paterna, vale fazer uma alusão à filha de Édipo, Antígona, o símbolo da firmeza
ética, para todas as éticas possíveis, inclusive a ética da psicanálise, cujo imperativo
categórico é: "não ceda de seu desejo".[32] Disso resulta a negação de toda ética
universalista, tal como aquelas propugnadas na modernidade, em prol da ética de
cada um, a ética individual e situacional, a ética da amizade e do cuidado de
si, sobre a qual falou e escreveu o último Foucault.[33]
Dependendo do ponto de vista, Antígona
pode aparecer como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito
positivo; santa, para o direito natural, tradicional, meta-positivo, de origem
religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem santa, nem criminosa,
duas ilusões provocadas por duas ficções diferentes: a religião e o direito.
Para a psicanálise, Antígona apenas agiu
conforme o seu desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era permitido
escolher a morte que teve, como condição de seu gozo.[34] Sua
liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu corpo para ser o túmulo de
seu irmão, que assim descansaria em paz, na paz que não teve um outro seu
irmão, seu pai, Édipo – reza a lenda que ele teria sido muito mal-tratado por
seus filhos-irmãos, após a revelação que o desmoralizou, tendo lançado sobre
eles a maldição de que jamais se entenderiam, como de fato ocorreu, pois se
enfrentaram na disputa do trono de Tebas, donde adveio o falecimento daquele a
quem Antígona insistiu até a morte para enterrar condignamente, perante seu tio
e (ex-)futuro sogro, Creonte.[35]
Na "metáfora paterna" psicanalítica, o pai aparece como
"outro", uma figura estranha ao Um que são mãe e filho, um
estrangeiro, "étranger", "étre-anje" -
"ser-anjo", sempre por perto, que de tanto aparecer e reaparecer se
torna familiar, mas que em dado momento, de anjo da guarda torna-se
anjo-exterminador, e corta a relação “umbilical” entre mãe e filho, fazendo a
castração simbólica do Falo que um representa para o outro. Com isso,
instaura-se a falta, a falha, que possibilita a fala do filho, para preenchê-la
- a fala e tudo o mais que é da ordem do
simbólico, do humano e do sublime, como as leis. A castração simbólica,
portanto, repristina aquela Lei primordial, proibindo o excesso, o incesto. Mas
nem todos a aceitam, donde além dos neuróticos haverem os que se põem acima
dessa Lei ou fora dela: os psicóticos e os perversos.
Daí ter Freud falado na necessidade de
sublimar nossas pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno,
tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos produzidos em nosso
imaginário, que são espectros, fantasmas, a atormentarem o sujeito, sempre em
busca do objeto causa de seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a
ele. Por isso Lacan representa esse sujeito por um "S" cortado, S',
para representá-lo como barrado, castrado simbolicamente, enquanto aquele
objeto, causa de seu desejo, ele o chama "objeto a minúsculo",
reivindicando-o como sua única descoberta em psicanálise. Esse (a)
remete ao conjunto vazio (ø), pois inexiste onde o sujeito pretende
encontrá-lo, o que se explica naquilo que Lacan propôs como a "fórmula do
fantasma": S' ◊ a.[36]
Decompondo-a, tem-se que, ao mesmo tempo, S' ‹ a (S' menos que a), S' › a (S'
mais que a), S' ^ a (S' inclui a) e S' v a (S' exclui a).
Na base de toda a ilusão coletiva que é
a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões,
portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que somos, por não
sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio,
essa falta de ser, quando se ausenta “aquilo” que julgávamos ser – nossa mãe,
onde “éramos” antes de nascer -, nos leva a falar. Adquirindo a linguagem, nos
vem a ilusão fundamental: a do Eu.[37]
Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir “algo” que
preencha-nos o vazio de ser – o “objeto a” de que nos falou Lacan, objeto
perdido do desejo, inexistente, no sentido em que Heidegger se refere a “das
Ding”[38] -
terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte ou a
ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa;
com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos,
negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de
sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.
Como o tipo de discurso que aqui desenvolvemos é de se considerar, em
um sentido amplo, um discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético”,
podemos imaginar várias versões para a história da origem do humano,
permanecendo sempre o mesmo desfecho.
É
assim que podemos partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi
recolher em Rousseau, no “Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a
qual iremos em seguida desenvolver, para verificar uma outra forma de situar a
origem do que é mais propriamente humano, isto é, o social, o político, moral,
jurídico etc. – em uma palavra o cultural ou simbólico – nas paixões,
nos afetos, no corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre
desejo (humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela Lei, pela
Letra.
O que se está propondo agora é iniciarmos com uma releitura de um
texto clássico a partir da “desleitura” - ou “desconstrução” - que dele fez
Derrida em sua obra “Da Gramatologia”. Não pretendemos aqui,
propriamente, contribuir para uma melhor compreensão daqueles textos de outros
autores, ou desses autores, mas sim que eles contribuam para o desenvolvimento
do que iremos pensar, ao pensar no sentido em que estavam pensando os que antes
escreveram – o que importa é a ajuda que poderemos receber de outros que,
anteriormente, se aventuraram em busca do que nós também estamos buscando:
compreender melhor este mundo onde nos encontramos jogados, pro-jetados,
pro-jetando-o.
A origem mais remota da sociedade,
segundo Rousseau, não é o contrato social, tal como ele expõe em sua mais
célebre obra – ou nos fez supor, com sua leitura. No “Ensaio sobre a Origem
das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação musical”, publicado
postumamente, em 1781, e escrito após o “Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens” (1754) – cuja leitura pode
desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias de Rousseau, a
saber, que o homem no estado de natureza seria bom, quando na verdade dele não
se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não possuía, a rigor, uma
consciência moral, tal como os animais -[39],
antecipa-se, corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da
espécie humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
E Rousseau chega a essa conclusão por
considerar que a humanidade surgiu em razão de contatos entre hominídeos onde
mais escassa e necessária se tornou a água. Não foi, portanto, o fogo que fez
surgir os homens, quando o domesticaram, nem o calor das fogueiras que nos
forjou a consciência, mas sim o frescor das águas de rios e lagoas, com as
quais se saciava o corpo por dentro e o acariciava por fora, fazendo acender um
outro fogo, “um fogo sagrado que conduz ao fundo dos corações o primeiro
sentimento de humanidade”, e que depois nos atrairá para o fogo que aos outros
animais assusta. E também em torno do fogo serão galvanizados os laços sociais
que primeiro serão gerados na água, como a própria vida o foi. Mas agora
deixemos com o próprio Rousseau a palavra:
“...nos lugares áridos, onde só
os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para cavá-los, ou pelo menos
entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a origem das sociedades e das
línguas, nas regiões quentes.
Aí se formaram os primeiros laços entre
as famílias, aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. (...)
Olhos acostumados aos mesmos objetos desde a infância aí começaram a ver
outros, mais doces. (...) Atraíam-se gradativamente uns e outros; esforçando-se
por se fazerem entender, aprenderam a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras
festas: (...) o prazer e o desejo, confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal
foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes brotaram
os primeiros fogos do amor” (cap. IX).
Eis que a origem de tudo o que nos diz
respeito mais de perto, enquanto humanos, é a festa. Note-se como foi no
encontro com desconhecidos e desconhecidas que a necessidade carnal se tornou
paixão, a vontade se tornou desejo, e nosso corpo adquiriu consciência,
consciência de que não é apenas um corpo, carne, mas um local de prazer, de
onde se fala para obtê-lo. Seria a partir desse encontro, então, que assim como
a carne crua passou a ser desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o
sexo com os iguais e conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um
primeiro momento, desinteressante, e, em seguida, proibido. Eis-nos novamente
diante de uma possibilidade de surgimento da “primeira Lei”, aquela que
Lévi-Strauss considera, a um só tempo, natural e social, e que para Freud nos
constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto –
especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido por este último, para
figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente
humano, do simbólico, antes referido.
Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual
silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar nisso, não nos
conscientizamos, propriamente, de nossa situação existencial em toda a sua
precariedade – e beleza. É preciso, portanto, espaços privados para se falar
disso, que é mais do que falar de si – como na clínica psicanalítica e psicológica
em geral -, pois é falar do que somos todos nós, e nesse discurso moldarmo-nos,
eticamente. A ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já
pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que confrontamos com a verdade
fundamental de que toda moral é invenção coletiva, geral, e também, em certa
medida, particular, individual, singular, feita para justificar nosso desejo de
preservar-nos a vida, sem que saibamos porque.
Cabe ao direito solidificar essa
invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os, em
busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.
Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma
origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais
recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do
pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao
qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se
ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe
uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da
existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter
ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para
isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de
criações desenvolvidas pelo engenho humano – artes, mitologias, ciências,
religiões, filosofias – e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente,
do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito.
A positividade do direito é sua
existência afirmada como independente de qualquer transcendência, ou seja, como
resultado da deliberação humana, garantindo a submissão a esta deliberação sem
apelar a nada diverso da própria vontade que o põe, sobre ele dispõe, e o
impõe. Dessa forma, o direito não é uma entidade, não existe, como existimos os
seres humanos e demais seres – que, a rigor, não são “seres”, mas “sendos”,
entes -, nem tampouco “eksiste”, “existe fora”, como Deus ou o transcendente.
Trata-se de uma ficção necessariamente coletiva, que se nos impõe e mesmo, nos
constitui, como seres sociais que somos, mas que, ao mesmo tempo, depende de
nós para existir, ou de nossa crença nele. O objetivo da presente investigação
é examinar como se constroem ficções, na vivência pessoal e convivência social,
dentre as quais se inclui, com destaque, o Direito, que desde há muito vem
operando cognitivamente com esse registro ficcional.[40]
O ordenamento jurídico é formado por
normas e condutas humanas; atos de vontade que estabelecem normas, de acordo
com outras, preexistentes, e normas que conferem um sentido jurídico àqueles
atos. Esta é a concepção clássica do positivismo jurídico, aquela kelseneana.[41] Para
Kelsen, em sua “Teoria Pura do Direito”, haveria uma “norma (hipotética)
fundamental” (Grundnorm), que em sua teoria fornece a
consistência lógica do sistema jurídico, bem como a base última em que se
assenta a estrutura hierárquica (Stufenbau) do ordenamento jurídico, não
sendo ela própria – ao contrário das demais - o resultado de um ato impositivo
de vontade, mas sim uma condição a priori do conhecimento jurídico, no
sentido transcendental kantiano. Fica-se, então, sem saber como um ato
“meramente pensado”, uma hipótese com função heurística, pode se constituir no
fundamento de validade de uma ordem coativa (Zwangsordnung), como seria
para Kelsen a ordem jurídica, formada por normas imperativas, que fornecem o
“sentido objetivo de atos de vontade para o Direito”.[42] Já no
final de sua longa carreira, porém, abdica do próprio fundamento de sua
monumental construção teórica. "Em obras anteriores", escreveu ele,
"falei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato de
vontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempre concebida como uma
norma que não era entendida como o conteúdo significativo de um ato de vontade,
mas que estava pressuposta por nosso pensamento. Devo agora confessar que não
posso continuar mantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem
crer-me, não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durante décadas: a
abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser o correlato de
uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é uma norma fictícia,
baseada em um ato de vontade fictício. Na norma fundamental se concebe
um ato de vontade fictício, que realmente não existe".[43] Eis
como até de uma perspectiva positivista, a mais clássica, pode se chegar à
conclusão de que o direito é, essencialmente, fictício – ou seja, não “é”.
II
FILOSOFIA
E PSICANÁLISE
ou
Avesso da Introdução a J. Lacan, O Seminário, livro 17, "O avesso da
psicanálise".
Introdução é a iniciação com seu ritual
preparatório de uma revelação que assim se (re)produz. O avesso da iniciação:
uma vez conhecidos os mistérios, querer mais é propagá-los aos quatro cantos,
acabando com eles.
Introduzir, levar alguém para dentro do
círculo de iniciados, mas não diretamente para o meio do círculo - antes, fazer
um circunlóquio, dar voltas com o neófito em torno da matéria para que ele
possa compreendê-la, envolver-se abrangê-la, e depois assenhorar-se dela,
"dominar a matéria".
O
avesso da introdução vai para fora do círculo e direto ao seu ponto central,
nada de metalinguagem, coincidência entre enunciado e enunciação, a pergunta é
a resposta. Ir lá p'rá fora, hinausgehen,
dizia Hegel, para falar da saída do diabólico círculo vicioso (Teufelskreis) dialético, para o Além (Jenseits), o outrem da contradição - Jenseits do bem e do mal, em Nietzsche, dos
princípios do prazer e da realidade, em Freud, percebido na brincadeira de seu
neto para suturar a falta da mãe: o-o-o-o-For(a)t-Da.[44]
Então, assim como as palavras
primitivamente têm sentido antitético, intoduzir é entrar e também sair, entrar
para sair, com-e-fora, (without); é como
percorrer a faixa de Moebius, sem avesso
nem começo, onde o que está no centro está dentro e fora; o nó borromeano,
"a coisa" lacaniana, em cujo campo "se projeta algo para além,
na origem da cadeia significante"[45]:
"S1", significante sem significado, auto-fundamentado, vazio.
Direto ao assunto, sem introdução,
introduzindo-o: o avesso da psicanálise é a filosofia, enquanto essa última for
discurso de domínio da verdade toda, no qual somos, pedagogicamente,
conduzidos, introduzidos - ainda que pelo avesso.
A filosofia é episteme, o avesso do saber comum, da doxa,
donde dokein, que deu docere, doutrinar, ensinar, e dogma. Mas o saber comum é o avesso do
saber-que-se-ensina, por ser saber-já-desde-sempre-e-por-todos-sabido.[46] A
psicanálise é o avesso-do-avesso-do-avesso, e o seu avesso é a filosofia. A
cadeia se fecha com um nó borromeano.[47]
Psicanálise e filosofia estão, portanto,
amarradas uma à outra. Pode-se dizer que são as duas faces de uma mesma moeda.
Melhor, porém, dizer que são como verso e anverso ("envers") da mesma
página. Essa é a imagem proposta por Ferdinand
de Saussure para que se figure as duas vertentes do signo, a de uma folha
de papel com duas faces mas que é um todo, estando ambas no mesmo plano:
S(ignificante)/s(ignificado). Isso se lê: "significante sobre significado,
o sobre correspondendo à barra que separa as duas etapas".[48]
Ora, se para F. de Saussure significante
e significado estão no mesmo plano e se encadeiam linear e horizontalmente para
formar o discurso, isso parece ser válido sobretudo se o considerarmos enquanto
"escritível", escritura, texto - e do qual se quer saber apenas o
enunciado, mas não a enunciação: se
quisermos mais ainda, se quisermos interpretar
o discurso, então não basta considerá-lo em seu desenvolvimento no eixo
sintagmático, em sua superficialidade, onde os signos se relacionam "in
presentia", mas sim, também naquele paradigmático, onde se verificam
relações "in absentia", na profundidade, em que os signos se articulam,[49] e da
frase, a partir de suas raízes, seus radicais, se forma a "árvore"
dos sintagmas, o indicador sintagmático de Noam Chomsky[50] - há
que se levar em conta essa árvore, essa "arbre", e, por metonímia,
seu anagrama, a "barre", a barra, o Real, que é responsável pelo desnivelamento,
pelo deslizamento incessante do significado, que está sob o significante, o
qual “pesa na barra”, e se impõe portanto.[51]
Então, S/s vira f(S)1/s,[52] para
simbolizar a incidência do significante sobre o significado, verticalizando o
seu encadeamento, que se ramifica, na profundidade, em duas estruturas básicas,
a metonímica e a metafórica. A primeira é simbolizada por f(S1...S2)S =~=
S(-)s, onde o lado esquerdo indica a conexão de um significante com outro
significante, que produz o efeito de metonímia, o qual é equivalente (=~=) a
uma determinação do significado, do efeito significante, por uma falta (-) de
ser, de realidade, de "adequatio rei", de relação (semântica)
entre signo e objeto da denotação, o que
é suprido pelo desejo (de que assim seja).
Já a estrutura metafórica é simbolizada
pela fórmula f(S2/S1)S =~= S(+)s, indicando a possibilidade de substituição do
significante que determina o significado para produzir um efeito criativo,
conotativo, como aquele obtido na poesia - ou na análise: é essa a função do
sujeito, que é sujeito de significante ("assujeitado"), ocupando o
lugar de sujeito do significado, deixando assim, esse sujeito, de (apenas)
ec-sistir, "ficar de fora", para (também) ex-sistir, entrar no processo
de produção de significado, ser o que um significante (S2) representa para o
Outro (S1).[53]
Agora, chega-se ao ponto em que se tem
de examinar a "subversão (da filosofia) do sujeito e dialética do desejo
(nas relações discípulo/mestre/subordinado,
analisando/analista/ histérica) no inconsciente
freud(o-lacan)iano".[54]
Ali, há
o Grande Outro, "O", o outro do sujeito do conhecimento, do
consciente, que é o sujeito do significante, o inconsciente. "O"
simboliza o lugar onde se rompe a correspondência unívoca de um signo a uma
coisa, possibilitando o encadeamento vertical, em profundidade, dos
significantes, numa "reunião sincrônica e enumerável em que cada um se
sustenta apenas pelo princípio de sua oposição a cada um dos outros".[55] O
resultado, a significação - simbolizada s(O) -, reafirma a submissão do sujeito
ao significante, havida desde que um significante primeiro, S1, deixou nele a
marca de um traço unário ("einziger Zug"), cindindo-o, alienando-o da
realidade na fala do ser desejante[56] pela
"falta do Outro" - simbolizada S(Ø)[57] e, na
identificação primeira, que forma o "Ichideal", I(Ø) -, (im)pondo-lhe
a barra que o divide (S') e a ausência (a) de um objeto "a", causa de
desejo, no lugar privilegiado do gozo: (Ø).[58]
Assim, tem-se que "o desejo do
homem é o desejo do Outro", i.e., "é como Outro que ele deseja",[59]
querendo ser o Outro de alguém: desejo --- Outro. Sob o domínio do Outro dá-se
a perda (do gozo) e a possibilidade do mais-de-gozar ("Mehrlust",
como em "Mehrwert", "mais-valia) do saber, gozo do Outro:
Outro/perda. Daí que o desejo se impõe à verdade: desejo/verdade. Por outro
lado, a perda (no plano real, a privação) leva a que se procure supri-la (no
plano imaginário, a frustração) por o que se acha, se descobre (no plano
simbólico, a castração): a verdade.[60]
desejo_ ------ Outro
verdade perda
Chegamos, então, ao ponto central de
nosso trabalho, no qual se apresentam os discursos do mestre (M), da
universidade (U), da histérica (H) e do analista (A). Em M, S1 ocupa o primeiro
posto, em cima a direita, o lugar do desejo, ficando abaixo dele o sujeito
barrado (S’), no lugar da verdade, enquanto o lugar do Outro é ocupado pela
cadeia discursiva, S2, e abixo dela, no lugar da perda, como excedente de
produção (mais-valia, ou mais-de-gozo), está o objeto pequeno “a”. Com um
quarto de giro, mudando as posições, obtém-se o discurso da histéria (S’/a ---
S1/S2), mais um quarto de giro, e aprece o discurso do analista (a/S2 ---
S’/S1) e, por fim, com mais um quarto de giro, tem-se o discurso universitário
(S2/S1 --- a/S’). Se pusermos esses discursos no “quadrado lógico”, em-se que M
e U são contraditórios, assim como H e A, isto é, excluem-se mutuamente,
enquanto U e H, da mesma forma que M e A são contrários, mas não se excluem,
podendo ser ambos, simultaneamente, “verdadeiros”, isto é, complementam-se.
O discurso do mestre, do senhor, se
transmite, repercute por repetição, no discurso universitário, burocrático, com
o(s) significante(s)-[do(s)-]mestre(s) "S1" no lugar da verdade,
dando suporte ao encadeamento de significantes "S2". Passar do
discurso universitário para o discurso da histérica, passá-lo por uma
"histericização", é evitar a sua esterilização, reativando-o pelo
outro-gozo do desejo de saber: "a" no lugar da verdade. Do discurso
da histérica há que ser dado o "passe" para o discurso do analista,
com o "a" assumindo o lugar dominante para, assim, mostrar sua
inacessibilidade, sua "inapossessibilidade". Daí, completa-se o giro,
a revolução - no sentido original, celeste, do termo, que é o preferido por
Lacan -, retornando-se ao discurso do mestre, depois dele passar por seu
inverso, o discurso analítico, de modo que ele agora assume uma nova forma,
superior, a qual pode bem se chamar de "maestria", enquanto discurso
praticado pelos "mestres dos mestres", os "grandes
mestres",[61]
categoria em que se pode situar um Sócrates, Lacan e, segundo esse último,
Salomão; os que "não cessam de repetir o fracasso (...), o fracasso das
tentativas de uma sabedoria de que o ser seria o testemunho".[62]
Nos quatro discursos, então, se
identifica as famosas "impossibilidades": governar, ensinar, analisar
e saber o que quer uma mulher, o que faz a histérica desejar (saber).[63] Ali
também se pode identificar quatro práticas, associando-as aos quatro discursos:
análise pessoal/discurso da histeria (ou da histérica), teoria/discurso
universitário, supervisão/discurso do mestre, formação/discurso do analista.
Percorrendo cada um desses discurso, fazendo-os circular, em uma banda de
Möebius, pode-se propor a seguinte seqüência: U---H---A---M---U’---...GRANDE
MESTRE.
A idéia central de "O avesso da
psicanálise" me parece ser a de captar o significado desses discursos a
partir do seu encadeamento, relacionando-os uns com os outros, naquilo que os
liga e distingue. Daí a intenção declarada de "pegar a psicanálise pelo
avesso e, talvez, justamente, dar-lhe seu estatuto no sentido jurídico do
termo".[64] Ora, o
estatuto jurídico das pessoas, seu status,
se define, precisamente, a partir das relações básicas que elas estabelecem entre
si, por contraste e oposição. Assim, o status
de marido co-implica o de esposa, do mesmo modo como o de solteiro e solteira
se opõe ao de marido e esposa; o de pais (legítimos ou não) co-implicam o de
filhos (legítimos ou não) etc. Dessa forma, o discurso, com seu encadeamento de
significantes que se definem mutuamente por oposição, pelo direito (e pelo
avesso), estrutura o mundo real.[65]
Por fim, examinemos mais de perto o discurso com a estrutura básica,
que representa o avesso da psicanálise, como ele se constitui
"miticamente" a partir da
dialética senhor/escravo.[66]
Para designar os quatro lugares que as letrinhas podem ocupar em nosso
algoritmo estamos autorizados a empregar os seguintes termos, além daqueles
acima referidos:[67]
agente/ verdade ----- trabalho/produção
Agente não é apenas quem faz, mas também
a quem se faz agir, e é nessa posição que aparece o significante primeiro, S1,
o significante-mestre, na fórmula que é o ponto de partida de nossa cadeia
algébrica, e que representa o discurso do mestre. O que o faz agir é a verdade
que lhe sustenta. Sua ação é o trabalho, que resulta na produção.
No discurso M, então, a verdade do
mestre é S', indicando que ele é barrado, marcado para morrer, por ser sexuado,
gozar, e saber disso. "S1" é o significante que representa esse
sujeito para "S2", é o significante da marca, do traço unário, que
está no lugar do desejo. "S2", o outro significante, o que está no
lugar do Outro, é na verdade toda uma bateria de significantes, na qual "S1"
intervém, sobre a qual atua, trabalha, deixando como produção - ou melhor, como
"excedente de produção", para levar adiante o paralelo com a
"mais-valia" - o "a", o "mais-de-gozar", que para
o sujeito barrado "S'" representa a perda do "gozo
absoluto", restando-lhe o "outro-gozo", separado por sublimação
do gozo sexual.[68]
O escravo, literalmente, sustenta o
mestre com seu saber(-fazer), o qual se apropria de seu mais-de-gozar (Mehrlust), do "mais-de-saber" (Mehrwissen) e do "mais-de-valor" (Mehrwert) ou mais-valia, deixando para o
primeiro o trabalho, o saber e o gozo. Ao escravo é ordenado (- S1) que ele
saiba (- S2) o que fazer para satisfazer o desejo (- a) do senhor (- S').[69]
O status
libertatis do senhor, portanto, depende daqueles que se encontram em status subjectionis, que nada possuem - sendo,
eles próprios, posse -, situação que favorece o aparecimento nele de uma
consciência independente das coisas - enquanto "coisa" entre as
coisas, e também "não-coisa", ser vivo, literalmente, sujeito. Canetti, por exemplo,
recusa a validade heurística da definição jurídica do escravo como
"coisa", achando mais adequado compará-lo ao animal doméstico, com o
qual teria em comum o traço fundamental da "singularização", por
serem isolados do convívio dos seus.[70] Em Aristóteles já se tem, contudo, a
consciência clara de que a percepção do escravo como coisa tem caráter fictício
- no sentido que Bentham atribui à ficção, que, como mais de uma vez refere
Lacan, não é algo ilusório, enganador, mais sim um elemento estruturador do
real, donde sua importância para o direito, que pode ser concebido, na esteira
daquele que representa para a filsofia do direito continental européia
contemporânea o mesmo que Bentham para a tradição anglo-saxônica, H.
Kelsen, como fundamentado, em última
instância, numa "norma fictícia", em sua obra póstuma "Teoria
Geral das Normas".[71]
O conceito econômico de "escravo" que Aristóteles
apresenta na "Política", Liv. I, nos caps. 2 e segs, esp. no cap. 5,
como um "instrumento vivo", ministro da ação de atendimento às
necessidades vitais da família da qual integra o patrimônio, não o impede de,
do ponto de vista ontológico que é o seu, afirmar que a relação natural entre
senhor e escravo seja a de amizade, já que há uma convergência entre seus
interesses. Já na "Ética a Nicômaco", Liv. VIII, cap. II, in fine,
o estagirita esclarece que não pensa ser possível a amizade para com um escravo
qua escravo, que é como se fora um objeto ou animal, desempenhando sua função
econômica, mas que, na realidade, é um outro sujeito, um ser humano, a quem são
inerentes os princípios de justiça, pelos quais se pautam relações de amizade.
Já Platão, em sua última obra, "Leis", Liv. VI, in fine,
referira que aos escravos, por serem inferiores, se deve tratar com mais
justiça ainda que aos iguais, "pois quem natural e genuinamente reverencia
a justiça, e odeia a injustiça, se revela ao lidar com quem possa facilmente
praticar a injustiça".[72] O requisito necessário para que se dê a
diferenciação entre sujeito e objeto, pela qual se estabelece o saber como
domínio da verdade.[73]
O senhor, então, "num-quer-nem-saber", quer e
pronto.[74] Ao escravo cabe atender
esse desejo, saber desse desejo, saber não só como atendê-lo, mas até saber
qual ele é. O senhor não quer saber de nada, apenas quer. O escravo não quer
nada e tem que saber de tudo. Eis como o escravo é obrigado a se tornar um ser
pensante e um ser moral, um filósofo, a serviço do senhor,[75] sob o domínio de
significantes-primeiros (S1), absolutamente vazios de significado, que dizem,
interrompendo antes do termo significativo: "Eu quero...", "Tu
deves...".[76] Cria-se, assim, o espaço a se tentar
continuamente preencher pelo deslizante encademento metonímico (S2), o vazio
que é do próprio sujeito (S'), o qual por isso impulsiona sempre a cadeia de
significantes para ver se atinge o que lhe preencheria, esse objeto impossível,
inacessível, simbolizado por "a", a res, a "coisa",
o Real.
III
S(Ø)riso:
o Riso e o Gozo
ou
De
que(m) s'(i) goza quando se(i) ri(r)?
A questão que deu motivo a esse
trabalho é o avesso daquela colocada por FREUD no Cap. IV de sua obra sobre a
relação do inconsciente com o chiste (Witz),[77]
retomada por LACAN na 5a. sessão do Seminário sobre formações do inconsciente, do dia
04.12.1957. Aqui importa, portanto, considerar a piada como fonte de desprazer,
perguntando que(m) (se) incomoda naquelas que se diz serem "de mau
gosto", "besta" ou "sem graça", e que levam a reações
que vão desde o enrubescimento, passando pela "cara feia", até chegar
ao paroxismo da agressão física.
Nessas
situações, se diz algo sem ser na hora e/ou lugar apropriado, quando e onde até
se poderia contar uma piada ou fazer um trocadilho, mas não a que foi contada
ou o que foi feito. A que se poderia contar ou o que se poderia dizer, para
fazer graça ou ridicularizar, provocaria riso ou, no mínimo, um sorriso
condescendente, revelando uma formação do inconsciente de quem a contou. Já a
piada ou trocadilho que provoca o "mal-estar" nos ouvintes, de acordo
com a hipótese que se quer aventar, revelaria uma formação do inconsciente
deles. Nesse caso, não são mais eles que gozam com ou do que conta a piada ou
faz o trocadilho, mas sim, ao contrário, eles se sentem gozados por ele, pois
descobririam que "ele sabe que (eu sei que (ele sabe que (eu sei)))"
(A. DIDIER-WEIL, “Inconsciente Freudiano e Transmissão da Psicanálise, Rio:
Zahar, 1988, cap. XII).
Esse tipo de Witz, que
ofende ou insulta, se inclui normalmente na categoria daqueles que FREUD, no
Cap. III da obra referida, chama de "tendencioso", como são as piadas
picantes, por oposição àquelas "inofensivas", "inocentes"
ou "abstratas". Para ele, a "essência do chiste", que lhe
interessa determinar, com sua investigação, seria mais fácil de se captar
através dessas piadas inocentes, do que por intermédio daquelas outras, em
geral "maldosas" ou "cerebrinas". Isso porque a piada
inocente teria como que um fim em si mesma, não se pondo a serviço da
manifestação de algum pensamento, donde ser uma expressão mais fiel do que se
passa no inconsciente de quem a faz. Assim é que, no capítulo seguinte, após
reconhecer que em toda anedota se pode perceber um certo grau de
"tendenciosidade", isto é, uma "segunda intenção" -, pois
assim é que ela cumpre a sua função de reforçar um pensamento contra o
"poder limitador e coercitivo" do juízo crítico - FREUD destaca que
mais importante de se observar não é o efeito, mais evidente, da piada em quem
a ouve, mas sim, naquele que a conta - ou a quem ela ocorre. Isto porque o
efeito em quem ouve seria um mero
reflexo de processos que ocorreram em quem fez o trocadilho ou a piada.
No capítulo dedicado
especificamente às "tendências do chiste", o terceiro dessa sua obra,
FREUD observa que essas anedotas "tendenciosas" ou
"maldosas" são fáceis de se identificar e diferenciar daquelas
"abstratas" ou "inocentes", a a partir da reação que
provocam em quem as escuta, na medida em que aquelas do primeiro tipo sujeitam
quem as faz a esbarrar com pessoas que se mostrem incomodadas ao escutá-las, ao
mesmo tempo em que são aquelas capazes de provocar uma irresistível explosão de
riso, enquanto as anedotas do segundo tipo, as "inocentes", têm um
efeito nos ouvintes que não costuma passar de um ligeiro sorriso ou uma outra
forma qualquer de assentimento.
O móvel típico da anedota tendenciosa ou
"maldosa", como se sabe, é praticar uma velada agressão sexual,
realizando como que um desnudamento da pessoa do outro sexo, a quem se dirige.
Trata-se, portanto, de uma operação de desvelamento e re-velação do sexo, que
vem acompanhada da sensação de prazer experimentada naquela "cena
original", em que o desmascaramos pela primeira vez, descobrindo que a mãe
não o tem - e o faz. Daí o riso, essa forma originária de comunicação, com a qual manifestamos aos presentes nossa
satisfação. Não se ri, porém, quando "portas são batidas em nossa
cara" e "sob a máscara, uma outra máscara aparece(...)", como
diz LACAN, no Seminário de 16 de abril de 1958.
Retomando o texto de FREUD de
onde o tínhamos deixado, é importante destacar sua observação de que a anedota
tendenciosa, em geral, necessita de três pessoas para surtir efeito, ou seja,
além da pessoa que a faz, e que não ri, há aquela outra, de quem se goza,
objeto do desnudamento e do ataque sexual, perpetrado pela primeira, e há uma terceira pessoa, que vai realmente rir e
gozar do efeito prazeiroso da anedota, sendo, com isso, "subornada",
para que represente esse papel, que permite a quem faz a piada romper seus
constrangimentos sem causar constrangimento.
A partir do que ALAIN DIDIER-WEIL elaborou, a pedido de
LACAN, no seminário "L'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre",
pode-se considerar essas três pessoas, esse trium actum personarum,[78]
enquanto internalizadas no sujeito, isto é, como estruturantes de seu
inconsciente. Isso se revela, por exemplo, quando o sujeito enrubesce ao dizer
ou ouvir algo, ao cometer um lapso ou fazer uma piada "infeliz". É
que aí ele (1) lembra que ele (2) esqueceu de que a ele (3)
foi escondida alguma coisa, o seu não-saber do sexo, do desejo. Daí a surpresa,
o enrubescimento e, também, o mal-estar daquele que pela piada ou trocadilho
"é despertado da apatia em que se encontrava, na sonolência da mesmice,
por algo que se passa numa fração infinitesimal de decurso de tempo"
(FRANCISCO PACHECO), e do que não é mais possível retroagir, negar, re-negar ou
de-negar, pois mostra que "eu (1) não sabia que eu (2)
escondia que alguma coisa em mim (3) estava escondida". E o pior é
que isso é revelado publicamente, exposto ao olhar observador, que expressa um
saber absoluto, quando então nos vemos na situação de poder dizer "eu sei
(que eles sabem (que eu sei (que eles sabem)))".
É assim que, de repente, somos
levados a vivenciar o grande Outro como esse saber de que não se sabe nem
falar, apesar d'Ele se mostrar.
Como bem explicita LACAN, no
seminário sobre formações do inconsciente, o prazer que sentimos com a piada -
ou, como ele prefere dizer, o "traço de espírito" -, esse prazer
passa necessariamente por esse Outro, o terceiro além do primeiro, o que diz a
piada, e do segundo, que a ouve ou é vítima dela, que é gozado por ela - e por
quem a fez. Esse terceiro é quem dará a garantia de que esse gozo não será
sancionado, apesar da transgressão que implica. Quando essa garantia falta, o
chiste fracassa, na realização de seu objetivo de dar prazer. É quando ele
causa desprazer, o mal-estar típico da piada de mau-gosto, que apesar de ser
dita com a intenção de fazer graça, móvel de toda piada, resulta sem graça. O
sujeito, agente da piada, torna-se então seu paciente, vítima de si mesmo, e
tenta escapar para a posição do terceiro, rindo, sozinho, de sua própria piada
- o que, normalmente, como observou FREUD, ele não faz, na posição de primeiro.
O sujeito, nessa situação,
barrado pelos outros em seu desejo de fazer graça com eles e para eles, gozar
deles, apresenta-se como um "impertinente", como alguém que não
conhece o seu lugar, o lugar ao qual ele pertence, indo ocupar outro lugar, no
qual os outros não se reconhecem como iguais, "egoais", pertencentes
à mesma ordem de um mesmo pai fundador, pertença essa que é re-afirmada,
re-conhecida pela exclusão
do que des-conhece esse
re-conhecimento. É isso o que RICARDO GOLDENBERG, no artigo "Assim é se
lhe parece", publicado no ante-penúltimo número de 1994 do Boletim da
Pulsional, identifica, quando se lhe recriminam que ele, judeu, ache engraçadas
piadas racistas sobre judeus, no que,
segundo ele, o mais divertido - e paradoxal -
é que, em nome do combate ao racismo, é por ser judeu que o mandam calar
a boca. É interessante lembrar aqui como no livro sobre o chiste e sua relação
com o inconsciente, FREUD constantemente recorre a piadas de judeus, sintoma de
seu mal-estar como membro dessa comunidade, da qual, com isso, se excluiria.
Algumas dessas piadas, que segundo ele, em carta a FLIEß, de 12 de junho de
1897, teriam um "sentido profundo", aparecem já em sua primeira obra
psicanalítica, sobre interpretação dos sonhos. Afinal de contas, o Witz
remete ao wissen, ou seja, ao saber, e a um saber da constituição, de
"como é", wie ist, que é concreto e particular, como o momento
presente, wie jetzt, "como agora". É daí que, como destaca MAX
KOHN, já na primeira página de sua obra "Freud e o Iídiche: o
Pré-analítico" (Rio: Imago, 1994), em seu livro, FREUD não vai empreender
uma análise propriamente da comicidade no Witz, mas sim, sua relação com
a linguagem, como no exemplo do "familionário", destacado por LACAN.
Passando agora à segunda e
última parte dessa exposição, quero indagar sobre o significado da
interpretação em uma análise que tivesse o mesmo efeito da piada de mau-gosto.
Note-se que aí estamos nos defrontando com uma situação, a analítica, que se
revela também uma formação do inconsciente, mas que seria o oposto do chiste,
se considerarmos esse, com FREUD, como "a mais social e menos
privada" dessas formações.
FREUD mesmo, no livro
mencionado, no capítulo sexto, em que trata da relação do Witz com o
sonho, refere a reação, bastante comum, de o analisante rir, quando por meio da
interpretação, revela-se o incosnciente para ele. É que, como bem explica
ROBERTO HARARI, em artigo sobre o chiste, de seu livro "Discorrer a
Psicanálise", a interpretação bem sucedida teria as mesmas características
de uma manifestação chistosa, tais como (1) a "ocorrência involuntária",
resultado da atenção flutuante; (2) a "brevidade", para utilizar um
dos recursos da própria formação do inconsciente, a "condensação",
para assim "fazer eco" no sujeito; (3) o "caráter alusivo"
de ambos, a boa interpretação e a boa piada, que, assim, dão margem a que o
sujeito mesmo perceba o que se quer dizer, pois não é dito logo, diretamente;
(4) a "surpresa", que não ocorre quando o sujeito reage à
interpretação exclamando com satisfação: "É isso mesmo o que eu
pensava", no que demonstra que ele apenas reforçou o lugar narcísico e a
posição egóica por ele ocupado.
Há, por outro lado, a situação
referida por FREUD, no local por último citado, de que comumente, à
interpretação psicanalítica de um sonho, alguém não familiarizado com essa
técnica reage dizendo que só pode se tratar de uma piada - mas não demonstra
nenhuma satisfação com ela, e sim, mal-estar. Essa, aliás, foi uma reação que
FLIEß teve, quando leu o manuscrito de "A Interpretação dos Sonhos",
tal como se acha registrado no próprio livro, no sexto capítulo, mais ou menos
na metade da segunda parte do item "A".
Para FREUD, essa conotação de
"piada sem graça", suscitada pela interpretação psicanalítica dos
sonhos, se explicaria pelo fato de que, apesar da semelhança entre os
mecanismos de elaboração do sonho e do chiste -
o que, inclusive, constitui seu ponto de partida, na investigação da
relação deste último com o inconsciente -, no sonho o emprego desses mecanismos
ultrapassa os limites que na brincadeira chistosa são demarcados por aquele
øutro, o terceiro, para quem se faz a piada ou trocadilho, a gozação, de modo
transferencial.
Então, ocorre que, sem
transferência, ninguém gosta que brinquem com seu sintoma, mas o que se
precisaria alcançar, com a análise, seria justamente a ridicularização e
conseqüente rebaixamento do que atribuímos importância desmesurada, pondo
"acima de tudo e de todos", como sendo o mais importante na vida, e
que não alcançamos. Daí experimentar-se a sensação de viver uma tragédia,
quando na verdade, como disse LACAN no seminário "Momento de
Concluir", a vida não é trágica, ela é cômica, donde em
"Televisão", no final do terceiro capítulo, falando do
"saint-homme", o "santo-homem", o "homem-são",
ele ter dito que quanto mais somos santo - isto é, sãos -, mais rimos, e quanto
mais desses formos, maiores as chances de escaparmos dos tentáculos do discurso
capitalista - de nos salvarmos, portanto.
IV
Processo
e Inconsciente
O
desenvolvimento de uma escuta analítica representa um esforço de dar conta das
necessidades de uma prática calcada na percepção diferenciada das manifestações
de perplexidade de sujeitos, que despertam para uma consciência, permanecendo
sob a influência decisiva de processos que nele se passam, sem que sobre ele
tenham conhecimento pleno – ou mesmo, em certas circunstâncias, conhecimento
algum. O sujeito, ao final da análise, se apropriaria de tal modo de seu
próprio desejo, que aprende a lidar melhor com o desejo, e o “desejo do desejo
do outro”, que o constitui(u), sem se assujeitar a ele(s). Não estranha,
portanto, que uma das principais inovações lacanianas em psicanálise, a noção
de “gozo”, tenha sido extraída do vocabulário jurídico, onde o termo se refere
à disponibilidade do sujeito sobre certos bens, sendo estes entendidos, também
em seu sentido jurídico, como dotados de um sentido também imaterial, enquanto
objeto possível de um direito qualquer do sujeito, derivado do interesse (ou
necessidade – em psicanálise se diria, melhor, “desejo”) na fruição desse
objeto. É da forma como se busca a satisfação (“gozo”) dos “direitos” que nos
damos aos próprios desejos que se organiza o psiquismo
Os
processos que (n)os constituem se desenvolvem a partir de uma estrutura
formalmente similar em todos os sujeitos, uma estrutura que guarda semelhança
com aquela dos processos judiciais, na esfera do direito. No processo judicial,
inicialmente se tem um sujeito, que se apresenta como autor de uma demanda,
dirigida a um outro, o juiz, queixando-se perante ele com relação a um terceiro
sujeito, o réu. Esta estrutura triádica, como diziam os medievais, configura um
trium actum personaram, um ato envolvendo três pessoas, tal como ocorre
nos primórdios de todo sujeito humano, que se constitui como indivíduo a partir
da relação que estabelece com as figuras parentais, onde a figura paterna
representa aquela do juiz, e a materna é o réu, acusado de nos subtrair o bem,
o objeto, capaz de nos satisfazer os desejos. Há, ainda, como pressupõe a
psicanálise, uma estrutura triádica situada internamente em todo sujeito, na
qual o juiz é representado por uma “super-consciência”, o “super-ego”, que
reforça na consciência (“ego”) a oposição que faz às demandas oriundas do
inconsciente.
A “queixa” do paciente,
em psicanálise, é o sintoma, que aparece em sua enunciação, mas sempre como que
“entre aspas”, disfarçado, sem ser nomeado devidamente – de certa forma, o que
se está buscando é uma nomeação para afetos incompreendidos, e isso desde há
muito, desde quando nossa capacidade de expressão – e, logo, também de
compreensão - era mínima. O sintoma é como um carvão, que pegou fogo, e por
isso virou cinza, devendo, então, como a fênix mitológica, renascer dessa
cinza, reacender.
A
análise, então, a diferença do processo judicial, triádico, vai se constituir
como um ato a dois, presentes, mas que evoca muitos outros, ausentes, que se
manifestam na fala do analisando e para a escuta do analista, sendo revelados
seja pela simples enunciação do primeiro, seja pela intervenção do segundo. O
que aí vai aparecer é transferencial, e na transferência o paciente faz como
faz no “mundo lá fora”, sendo isso o que se vai interpretar, desentranhar.
A encenação do enredo, do
drama humano, por mais que em geral contenha os mesmo elementos, é sempre
diversificada, singular. A análise vai tratar dessa singularidade, das
singularidades, confrontadas com os padrões teóricos, sem pretender amoldá-las
a eles, mas antes, pelo contrário, ressignificá-los a partir delas. Afinal de
contas, o campo de trabalho da psicanálise é o inconsciente, o qual é construído
singularmente em cada um de nós, com as marcas inscritas pelos pais, parentes e
todos os portadores da cultura, a partir das quais se estrutura um discurso, o
qual sempre se subjetiva diferentemente, assim como ocorre, diferentemente,
recorrentemente, a cada sessão.
Tanto no processo
analítico como no processo judicial a encenação, a interpretação, se dá por
oposições, por negação do dito, por contra-di(c)ções, buscando-se uma
de-finição, uma de-cisão, que é uma “des-finição”, uma “des-cisão”, por restabelecer
limites, vínculos partidos. Ambos os processos, é interessante notar, começam
com uma demanda, uma queixa, formulada, no caso do processo judicial, ao juiz,
e no caso do processo analítico, ao analista. Do juiz se espera que nos dê
razão, em nossa demanda, nossa queixa, julgando-a em nosso favor. Do analista,
ao contrário, não se espera julgamento, e é fundamental que isso fique bem
claro, para que ocorra, na análise, um de seus requisitos, e que não está
presente no processo judicial: a transferência. De uma transferência no
processo judicial até se poderia falar, mas em um sentido oposto àquele da
análise, pois a transferência no processo judicial se daria por ocasião da fase
de execução, quando se transfere, manu militari, bens do patrimônio do
devedor para o do credor, ou ainda, em se tratando de processo penal, se
transfere o condenado para a prisão. Aliás, retomando a afirmação feita há
pouco, de que na análise não há julgamento, talvez seja melhor reformulá-la,
para dizer que na análise não há condenação,
sentença, mas julgamento, em se tratando de uma atividade humana e sobre
o sujeito humano, certamente haverá na psicanálise, e pode mesmo ser
considerado um de seus objetivos, pois aí julgamento e análise seriam quase
como que sinônimos.
Uma categoria tipicamente
jurídico-processual, que foi apropriada pela psicanálise, por influência de sua
vertente francesa, lacaniana, é aquela de “preclusão” (forclution), que
no processo judicial significa a clausura da possibilidade da prática de um ato,
por ter passado o momento adequado, ou porque ele já foi praticado, donde se
considerar preclusa esta prática, levando a que o processo avance, sendo
praticado um outro ato. Em psicanálise, ao contrário, a “preclusão” - ou
“foraclusão”, como às vezes ela aparece grafada, utilizando-se um neologismo
que é mais fiel ao sentido dado ao termo por Lacan – não impulsiona o sujeito a
um desenvolvimento “normal”, mas antes o paralisaria, ou desviaria, na prática
de ato cuja motivação lhe escapa, por ter ficado pedido um elo na cadeia de
significantes por entre os quais se constitui o sujeito e seu(s)
significado(s), seu desejo, o que nos cabe em análise investigar, fazer
aflorar. E aqui, novamente, outro ponto de divergência com o direito, pois em
face dele do sujeito não importará os desejos, mas apenas os “interesses
juridicamente protegidos”, conforme uma definição clássica de seus direitos, os
direitos subjetivos (isto é, dos sujeitos). Para ficar nos limites que se
pensou para o presente texto, encerraremos com essa analogia entre processos
jurídicos e de psicanálise, que para mim resultou em um exercício bastante
frutífero e revelador, assim como vem sendo todo esse outro processo, em que
estamos envolvidos, de formação em psicanálise, apesar de nos ressentirmos da
ausência de uma prática, para podermos concretizar as impressões, sobretudo
teóricas e, por isso, abstratas, aqui reportadas.
V
UMA
CRIANÇA É BATIDA, OUTRA TORNA-SE MULHER.
(Ein Kind wird geschlagen, ein anderes wird zur
Frau).
“Ein Kind
wird geschlagen”. “Uma criança é batida” ou “bate-se numa criança”.
Essa é a fórmula de um fantasma (Phantasie) encontrado por FREUD nas
“confissões” que lhe fizeram um sem-número de histéricas e obsessivos,
identificando aí o seu “traço primário de perversão”. (FREUD, 1991: 26) A frase
é tida, portanto, como característica da versão do (nome- do-)pai, da
“pére-version”, perpassando os diversos tipos clínicos e passível de ser
encontrada mesmo “noutras pessoas que não foram forçadas a tomar esta decisão
(de dizê-lo em análise - WSGF) por motivo de doença manifesta” (: 23).
A hipótese, levantada por FREUD, é a de
que se trata de uma representação que aponta para uma experiência daquelas que
nos constituem, enquanto seres sexuados e, logo, com sexualidades diversas, às
vezes, perversas. No presente trabalho, então, parte-se da idéia de que é possível estabelecer uma associação
entre o bater na criança e o advento de sua feminilidade.
A representação desse fantasma da
criança batida, como se sabe, desenrola-se em três atos. Vejo aqui uma
indicação de que estamos diante de uma versão daquele drama originário e
constitutivo do sujeito que é o Édipo.
No primeiro ato, quem é batida é uma
outra criança, um irmão ou irmã do sujeito, e quem bate é um adulto, a quem
FREUD dá o nome de Pai (:30). A criança batida, como pontua LACAN, na lição de
12/02/58, é reduzida a um nada de nada, é de-negada, e, nesta denegação, ao
mesmo tempo em que há sua afirmação como sujeito, assujeitado à lei paterna, há
a confirmação, para a criança que a assiste ser batida, de que ela é o objeto
do amor incestuoso e exclusivo do pai e, também, do desejo da mãe: “a mensagem,
que em um momento quis dizer: ‘o rival não existe, ele é nada de nada’, é o
mesmo que dizer: tu existes e, inclusive, és amada”. (LACAN, ib. V. tb. FREUD: 32 ss.)
Passando ao segundo ato, quando a
própria criança, autora do fantasma, é
batida, temos que ele é, nas palavras de FREUD, o “mais importante e de mais
graves conseqüências”. Interessante, ainda, de se observar, nessa mesma
passagem, é que para ele, essa primeira surra não tem uma existência real, mas
que é uma “construção da análise”, uma formação do inconsciente, algo que, no
entanto, não deixa de ser “uma necessidade”. (:31) Na verdade, a “porrada” pode
ser de uma outra ordem, que não a física, pois há diversos modos como a pessoa
pode se esbarrar no Real, ser barrado, pelo corte que o faz um ser idêntico
apenas a si mesmo, diverso da mãe e do pai. De dois ou três sujeitos é
impossível fazer um. Daí haver esse corte ou traço unário, esse Ein einziger
Zug, do que resulta a unificação ou “unicidade” (Einzigkeit),
“unidade distintiva”, da qual nos fala LACAN em lições do Seminário IX, “A
Identificação” (de 21 e 28/02/62), como o que nos torna uma exceção, únicos.
Antes, o que havia era o Um enquanto “unidade unificante” (Einheit), o
qual se mostra já naquele primeiro momento, em que o sujeito presencia a
negação de um outro, o que o revela, porém, sua existência.
O terceiro e último ato é aquele em que,
tal como no primeiro, não é mais o sujeito que é batido, mas outro, ou melhor,
outros, sempre rapazes, por pessoa que não é o pai, mas um substituto seu, como
o professor. A posição masoquista e passiva assumida na situação anterior é
substituida por uma outra, sádica e ativa, fonte de “inequívoca excitação
sexual” (FREUD: 31).
Ao que parece, quem é batido, nos três
tempos, é sempre o sujeito do fantasma, que se apresentaria, primeiramente, com
sua identidade sexual indiferenciada, passando depois para uma posição feminina
e, finalmente, desempenha um papel masculino. Mesmo no primeiro tempo ele já se
sente batido, pois sabemos como nesse momento a criança ainda não distingue-se
das outras, chorando quando outra cai, por exemplo. Por isso que o segundo
tempo não precisa ter existência real, uma vez que já é antecipado no primeiro.
No terceiro, por fim, o próprio FREUD (: 37) destaca que mesmo para os sujeitos
do sexo feminino quem é batido são rapazes,
e isso se explica pelo fato de, havendo elas rompido com o amor genital
incestuoso pelo pai, “rompem facilmente com o seu papel feminino, dão vida ao
seu ‘complexo de virilidade’ (Van Ophuijsen) e, a partir daí, só querem ser
rapazes”.
Esse “complexo de virilidade” (Männlichkeitskomplex),
para o sujeito-mulher, precisa ser superado, para que advenha a feminilidade. A
escolha do objeto amado precisa recair sob o pai, para que se consume o drama
edípico. A hipótese que se quer levantar, então, é a de que esse fantasma da
criança batida atua, nas mulheres, já naquela fase dita pré-edipiana, sua
“protohistória”, estudada por FREUD no ensaio sobre a sexualidade feminina, de
1931. Daí a idéia de que se relaciona com isso de uma criança ser batida o tornar-se mulher,
quando não é mesmo o que marca o início desse processo, nunca completado: não
existe A mulher, ela é não-toda (submetida à castração). Concluindo, haveria
nessa “Phantasie” de ser batida um traço marcantemente feminino, constitutivo
da feminilidade – e, logo, do humano.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
FREUD,
S. - Uma criança é batida. Contribuição para o conhecimento da génese
das perversões. In: “Esquecimento e Fantasma”, J. MARTINHO (org.),
Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.
A letra comemora um legado da lei?
Resumos:
A
letra não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim,
filológico. Neste nível, ela é uma herança, na medida em que ela é o nome
próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai e sua lei, o
"nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à diferença da mãe,
que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir com ele um vínculo
filológico, ou melhor, "filialógico", sendo a letra que constitui
primariamente a subjetividade do ser de linguagem que somos nós. E se
biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de
mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito
geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser
falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas
que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão
definitiva com o natural - e o real.
La lettre n'a pas, au premier
lieu, un sens phylogénétique, mais philologique. A cette niveau, la lettre est
un héritage, dans la mesure où elle est le nom propre, transmit par nous
parents et, principalement, le père et sa loi, le "nom-du-père",
puisque c'est vis-à-vis de lui, le père, en contraste avec la mère, dont la
filiation n'est pas évident, d'où le besoin de constituer avec lui une liaison
philologique, ou mieux encore, "philialogique". Et si d'une point de
vue biologique il y a ci longtemps que cela se reproduit, à chaque naissance
d'un autre membre de l'espèce humaine, au point d'étre déjà pré-(in)scrit
génétiquement l'ordre qui permet/oblige au nouveau né de devenir un être
parlant, "parlêttre", est-que cette ordre a été produit d'abord par
des traces qui firent les premièr êtres humaines sur eux-même, instituant une
rupture définitive avec le naturel - et le réel.
A
palavra “letra” é utilizada aqui no sentido consagrado por Jacques Lacan em
seus “Escritos”, enquanto "la lettre". Embora a palavra aponte
para algo da ordem da escritura, filológico, o sentido que se lhe atribui aqui
é melhor captado situando-a ao nível da inscrição ou “inscritura”, o qual se
verifica mesmo em sociedades iletradas, pois, como se defende no presente
trabalho, é a letra, "la lettre", que constitui primariamente a
subjetividade do ser de linguagem que somos nós.
O
tema que aqui nos propomos a desenvolver, sobrescrito de forma interrogativa,
há de ser, em primeiro lugar, interrogado ele próprio. Primeiramente, em que
sentido poderia ser "la lettre" um legado, uma herança, que nos
permite comemorar e “co-memoriar” os mortos que nos deram a vida? E, por outro
lado, em que sentido ela pode não ser esta herança? Sim, porque se há
dúvida é porque há um dubio, dupla possibilidade, de que "la
lettre" seja tal herança e, também, que ela não seja - bem como que ela,
ao mesmo tempo, seja e não seja motivo de comemoração... Tudo vai depender dos
sentidos que atribuímos a "la lettre", a "herança" e
“comemoração”.
"Herança",
por exemplo, pode ter um sentido biológico, genético, que aponta para algo da
ordem do real. Herdaríamos, nesse sentido, "la lettre", quando nossos
pais nos transmitem a bagagem genética que nos constituiria, enquanto membro de
determinada espécie biológica. "La lettre" seria, então, uma das
letras de nosso código genético? Há pesquisas que apontam nesse sentido, em que
"la lettre" assume um caráter filogenético. A própria mídia já
anunciou tais desenvolvimentos, do que se poderia chamar
"psicobiolingüística". Esse seria um ramo da lingüística que teria
por fundador Noam Chomsky, enquanto seu colega de departamento - e,
portanto, seu êmulo - no M.I.T., Steven Pinker seria o principal
representante na atualidade. Suas descobertas, anunciadas no livro de 1994,
"O Instinto da Linguagem", de grande sucesso, conforme
veiculado em princípio de 1997 no "Libération" e na "Folha de
São Paulo" (caderno "Mais" de 5.1.97, p. 14), indicam ser inata
ao ser humano a capacidade de falar, i.e., de "dominar" uma (ou mais)
linguagem(ns), possuir o que Lacan chama, glamorosamente,
"lalangue" - como quando referimos a uma grande diva do cinema, em
italiano chamando-a “la Cardinale” -, ou, simplesmente, expressar-se. Isso
porque nós disporíamos de uma aquisição evolutiva filogenética, uma estrutura
mental que nos leva a procurar instintivamente as regras que dão sentido
à massa sonora a que estamos expostos desde sempre, no contato com nossos pais
e demais seres falantes que nos cercam. Nascemos, então, com um comando gerado
na luta da espécie para sobreviver, que nos permite - e obriga a - utilizar
"lalangue", como (mais) um artefato. Mas "lalangue" nem "la
lettre" - ou "lalettre"
-, que não são o mesmo, também não são apenas meio de satisfação de
necessidades, pois resultam já de - e em – uma abertura para uma dimensão além,
tão própria do humano – portanto, nada “sobre-humana” ou “sobrenatural” -, que
é aquela do desejo, insaciável, do gozo .
"La
lettre" não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim,
filológico. Ela é, desde sempre, como defende Derrida em sua “Gramatologia”,
escritura e, antes disso, inscrição, "inscritura", marcas como as que
nossos antepassados mais remotos deixaram em paredes de cavernas onde
co-habitaram, as quais lhes permite fixar acontecimentos do passado, comemorá-los,
projetando-se para além da dimensão natural, na dimensão temporal; marcas que
lhes re-(a)presentavam uns para os outros, às quais associaram certos sons,
fixando-os, e atribuindo, os sons e suas marcas, aos sujeitos falantes,
dando-lhes nomes, como às coisas (cf. Hobbes, "De natura humana",
cap. V). E esses nomes, se muitas vezes identificavam os sujeitos com as
coisas, os diferenciava entre si, ao mesmo tempo em que estabelecia ligações
entre eles, por sua "nomeação": a filiação, expressa em nomes e
sobre-nomes. Eis que assim, do filológico somos levados a pensar o
"filialógico", como o que há de mais fundamental: literalmente, a
origem.
Ao
nível "filialógico", "la lettre" é uma herança, na medida
em que ela é o nome próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai
e sua lei, o "nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à
diferença da mãe, que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir
com ele um vínculo filológico, ou melhor, "filialógico", e através
dele com a mãe, agora um outro vínculo, e assim por diante. Não é (da
constituição) desse tipo de vínculo que em geral se trata na clínica psicanalítica?
E não é para garanti-lo que se tem, por exemplo, algo como o direito e a Lei?
"Herança",
não esqueçamos, no plano simbólico é noção jurídica, e para o direito ela é o
patrimônio que recebemos após a morte de nossos pais ou parentes, por transmissão
legal, o legado, que a eles pertencia. "La lettre", nesse sentido,
não é herdada, pois a condição de a recebermos não é que aqueles que nos
geraram morram, mas sim, que nós vivamos. Ao mesmo tempo, como "la
lettre" foi transmitida aos que nos a transmitem por quem não vive mais,
ela pode ser, também, nesse sentido, uma herança, uma marca de mortos que
representa a morte aos que nascem para viver como seres temporais e
linguageiros.
E
se biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de
mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito
geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser
falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas
que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão
definitiva com o natural - e o real. Aí, desde a (nossa) origem já se tinham
produzido as estruturas que vão gerar a escrita, esta técnica contábil, surgida
com a passagem das comunidades arquetípicas, igualitárias, às sociedades
hierarquizadas, diferenciadoras.
O
caráter em si mesmo repressivo da escritura, especialmente aquela fonética, com
alfabeto, é discutido por Derrida em "Da Gramatologia",
contestando os “Tristes Trópicos” de Lévi-Strauss, na
esteira de J.-J. Rousseau: "Mais racional, mais exata, mais
precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma melhor polícia. Mas,
na medida em que ela se apaga melhor do que qualquer outra diante da presença
possível da voz, ela se representa melhor e lhe permite ausentar-se com o
mínimo de danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do canto,
isto é, da origem viva da linguagem.(...) Correspondendo a uma melhor
organização das instituições sociais, também dá o meio de dispensar mais
facilmente a presença soberana do povo reunido" (Derrida, "Gramatologia",
trad. Renato Janine Ribeiro e Míriam Schneiderman, São Paulo:
Perspectiva, 1973, pp. 368/369). A representação abstrata através da escrita é
empregada na elaboração de normas jurídicas na forma de decretos redigidos por
representantes políticos que "falam", i.e., escrevem, enquanto os
representados "emudecem", i.e., lêem. Nessas condições, "o corpo
político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento, e traz, em
si mesmo, as causas de sua destruição" (Rousseau, "Du contrat
social", Livro II, cap. XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363). É assim que podemos partir também de
uma idéia, colhida em Derrida, que a foi recolher em Rousseau, no
“Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a qual iremos em seguida
desenvolver, apresentando uma outra forma de situar a origem do que é mais
propriamente humano, isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. – em
uma palavra o cultural ou simbólico – nas paixões, nos afetos, no
corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo (humano) e
necessidade (animal), diferença instituída pela Lei, pela Letra.
A origem mais remota da
sociedade, segundo Rousseau, não é jurídica, com o contrato social, tal
como ele expõe em sua mais célebre obra – ou nos fez supor, com sua leitura. No
“Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação
musical”, publicado postumamente, em 1781, e escrito após o “Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1754) –
cuja leitura pode desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias
de Rousseau, a saber, que o homem no estado de natureza seria bom,
quando na verdade dele não se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não
possuía, a rigor, uma consciência moral, tal como os animais -, antecipa-se,
corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da espécie
humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
E
Rousseau chega a essa conclusão por considerar que a humanidade surgiu
em razão de contatos entre hominídeos onde mais escassa e necessária se tornou
a água. Não foi, portanto, o fogo que fez surgir os homens, quando o
domesticaram, nem o calor das fogueiras que nos forjou a consciência, mas sim o
frescor das águas de rios e lagoas, com as quais se saciava o corpo por dentro
e o acariciava por fora, fazendo acender um outro fogo, “um fogo sagrado que
conduz ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade”, e que depois
nos atrairá para o fogo que aos outros animais assusta. E também em torno do
fogo serão galvanizados os laços sociais que primeiro serão gerados na água,
como a própria vida o foi. Mas agora deixemos com o próprio Rousseau a
palavra:
“...nos
lugares áridos, onde só os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para
cavá-los, ou pelo menos entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a
origem das sociedades e das línguas, nas regiões quentes.
Aí
se formaram os primeiros laços entre as famílias, aí se deram os primeiros
encontros entre os dois sexos. (...) Olhos acostumados aos mesmos objetos desde
a infância aí começaram a ver outros, mais doces. (...) Atraíam-se
gradativamente uns e outros; esforçando-se por se fazerem entender, aprenderam
a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras festas: (...) o prazer e o desejo,
confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos
povos, e do puro cristal das fontes brotaram os primeiros fogos do amor” (cap.
IX).
Eis
que a origem de tudo o que nos diz respeito mais de perto, enquanto humanos, é
a festa, a comemoração. Note-se como foi no encontro com desconhecidos e
desconhecidas que a necessidade carnal se tornou paixão, a vontade se tornou
desejo, e nosso corpo adquiriu consciência, consciência de que não é apenas um
corpo, carne, mas um local de prazer, de onde se fala para obtê-lo. Seria a
partir desse encontro, então, que assim como a carne crua passou a ser
desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o sexo com os iguais e
conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um primeiro momento,
desinteressante, e, em seguida, proibido. Aqui estamos diante de uma
possibilidade de surgimento da “primeira Lei”, aquela que Lévi-Strauss considera,
a um só tempo, natural e social (cf. “Les structures élémentaires de la parenté”, Paris: P.U.F., 1949, p. 38 ss.), e
que para Freud nos constitui propriamente como humanos, isto é, a
proibição do incesto – especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido
por este último, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da
cultura, do propriamente humano, do simbólico, o mito do assassinato do pai
primevo, seguido do banquete totêmico – também uma festa -, que seria, no dizer
de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha sido
capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está morto” (cf. “A Ética da
Psicanálise”, trad. A. Quinet, 2a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1991,
p. 216 e s.) De se notar, portanto, é a alusão de Freud ao banquete no qual os
filhos comem a carne do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René
Girard, em “A Violência e o Sagrado” (trad. Martha C. Gambini,
São Paulo: Paz e Terra/EDUNESP, 1990), irá situar na origem da religião e de
toda sociedade – esta pressupondo a primeira -, enquanto excesso permitido e
violação ritualizada de proibições, exceções que garantem a persistência das
regras e da ordem social, da Lei.
Já o jurista francês Jean
Carbonnier (em “Derecho Flexible. Para una
sociología no rigurosa del Derecho”,
prólogo e trad. Luiz Diez-Picazo, Madri: Editorial Tecnos, 1974, p. 87 e
seg.), refere a tese lévi-straussiana, mas não entende que haja nas sociedades
ditas primitivas a consciência de um caráter especificamente jurídico da regra
que torna "tabu" o incesto. Para os membros dessas sociedades, a
coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se esse fosse
"uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da
palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física,
frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vivido, e não simplesmente uma
máxima pensada". Tal vivência se dá ao nível corporal.
O
corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder
social vigente, de “inscritura” da letra e da marca de que estamos aqui a tratar.
São clássicas já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em
"La société contre l'État", quando considera os rituais de
passagem e iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas"
(melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de mutilação ou
"investida" dolorosa sobre o corpo do seu paciente, tatuando-o,
queimando-o, cortando-o -, como uma forma de inscrição no corpo de cada um das
leis da comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam
dizer os pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas pela ação
disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez sofrida interiormente, marcas
indeléveis também na memória, que se prestam à identificação mútua dos que a
possuem como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente iguais entre
si, sem que um seja melhor ou pior do que o outro, donde não poder nenhum
pretender dominar o(s) outro(s).
Bem diferente, então, seriam as
coisas em sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais
igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros,
onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente,
papel. Seja como for, fica registrada a origem violenta de toda proibição,
tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada
pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por R. Caillois (“El
Hombre y lo Sagrado”, 2ª ed., México: Fondo de Cultura
Económica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.), condição da vida e porta para a
morte.
A eficácia de toda
prática mágica e a autoridade das idéias que a fundamentam repousa sobre uma
tradição sacramental (cf. Roger Caillois, ob. cit., p. 14), velada por
fortes sanções sociais, de que certas palavras apropriadas e gestos específicos
possuem um poder secreto sobre as coisas. Em obra bastante conhecida de
filosofia da linguagem, Ogden e Richards explicam que
"classificar as coisas é dar-lhes nomes e, para a magia, o nome de uma
coisa ou grupo de coisas é a sua alma; conhecer os seus nomes é dispor de poder
sobre as almas delas. Nada, seja humano ou sobre-humano, está acima do poder
das palavras. A própria linguagem é um duplicado, uma alma-sombra, de toda a
estrutura da realidade" (C. K. Ogden/I. A. Richards, “O
Significado de Significado”, Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 51 s.). Daí,
não é de estranhar o fato de o estudo da formação infantil do significado,
assim como o do significado selvagem ou iletrado se depararem como uma mesma
atitude mágica em relação às palavras e, por intermédio destas, em relação ao
mundo (v. tb. B. Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”,
col. Os Pensadores, Abril: São Paulo, 1979, p. 309 ss.).
A percepção da resistência do mundo em aceitar
o seu domínio mágico, pela conseqüente falibilidade de seus rituais, atestada
pelo malogro de experiências sucessivas, termina por acarretar a submissão às
forças misteriosas e sobrenaturais que não consegue controlar - como escreveu Marcel
Mauss, o homem então “après avoir été dieu, il a peuplé le monde de dieux”
(Mauss/Hubert, "Esquisse d'une théorie générale de la
magie", in: id., “Sociologie et Anthropologie”, C. Lévi-Strauss (ed.),
Paris: P.U.F., 1969 [1898], p. 11).
Vale assinalar o significado político dessa submissão a entes superiores, donde
resultaria a submissão também àqueles que se diziam capazes de entender e
tratar com eles, isto é, as castas sacerdotais. Estas, como se sabe, fornecem o
sustentáculo ideológico para a concentração do poder, inicialmente distribuído
entre os membros do grupo social. A noção do supra ou sobrenatural, que é
própria da religião, introduz a representação de forças que escapam ao poder
humano, a serem controladas através de um relacionamento amistoso,
proporcionado pelo culto com oferendas, sacrifícios e coisas do gênero. Assim,
enquanto a magia envolve operações que se revestem de um caráter coercitivo
para com os espíritos, forçados a agir no sentido indicado pelo praticante dos
atos mágicos, na religião é estabelecida uma espécie de aliança para impedir a
arbitrariedade na ação divina, revestindo o relacionamento entre homens e
divindade de um caráter, por assim dizer, jurídico (cf. Marcel
Mauss, "Pour une sociologie des religions archaïques", in:
id. ib., p. 112).
Em seus estudos pioneiros na
Polinésia, Malinowski chegou à conclusão de que toda a estrutura da sociedade
trobiandense repousa sobre o princípio do estatuto jurídico (status),
combinado com aquele outro princípio maior da organização jurídica dos povos
originários ou primevos, que é o princípio da reciprocidade (cf.,
v.g., Malinowski, “Moeurs et Coutumes des Mélanésiens”, Paris,
1933, p. 37). Pesquisas realizadas em épocas mais
recentes, por cientistas de diferentes países, efetivamente corroboram esta
tese, de que a organização social neste nível mais “primitivo'” se assenta
sobre as pilastras da posição ocupada por razões hereditárias pelos indivíduos (status)
e na forma econômico-jurídica dominada pela reciprocidade, o que
permite uma classificação de tais sociedades como 'sociedades igualitárias', em
oposição à nossa, que se poderia denominar ‘sociedade competitiva'. Aqueles
dois padrões estruturadores da vida social em estágio, por assim dizer,
selvagem, fornecem os critérios determinantes das obrigações mútuas dos membros
da comunidade, isto é, de suas 'relações jurídicas', e em ambos se pode
identificar a presença catalisadora da magia.
A
consideração deste mecanismo de troca recíproca conduz igualmente a
especulações extremamente elucidativas quanto à formação das sociedades
antípodas daquelas em que ele vigora — a sociedade competitiva -, onde a
submissão e a propriedade privada aparecem de forma marcante. Assim, é possível
imaginar que indivíduos com maior capacidade produtiva doassem uma quantidade
cada vez maior de excedente, criando para quem recebia os 'presentes' a
necessidade de praticamente trabalhar para os primeiros, no afã de conseguir
manter em equilíbrio as suas relações, tornando-os cada vez mais abastados e
poderosos. Até o ponto de que estes se sentiam capazes de desprezar as regras
da reciprocidade, escravizando as pessoas, que a partir de então deviam lhe
prestar reverência e obediência, pagando-lhe taxas e produzindo para satisfazer
sua sede de acumulação e entesouramento, sem retribuição equânime. Eis que a reciprocidade, levada ao extremo,
torna-se o seu contrário, ensejando a quebra da reciprocidade...
Um
momento particularmente propício para a doação de presentes, donde decorreria,
posteriormente, a “servidão” da maioria a uma minoria (inicialmente) mais
pródiga, é precisamente aquele das festas e ritos sacrificiais, em que se troca
presentes e faz oferendas, até a exaustão, como no potlach, num
desperdício anti-econômico, se considerarmos apenas a economia dos bens. Ainda
hoje, em nossas sociedades estatais, como nos evidencia o jurista, professor de
direito medieval e psicanalista francês Pierre Legendre, o poder dos
governantes se exerce sobre os governados seduzindo-os pela distribuição de
“presentes”, os cargos e serviços públicos em geral, pois tudo o que recebemos,
mesmo tendo pago impostos, como não há uma relação direta entre o pagamento e o
que é entregue em troca, será percebido (e recebido) como um presente: “Si
nous recevons quelque chose, ce ne peut être qu’un cadeau” (P.
Legendre, “Jouir du
Pouvoir”, Paris: Les
Éditions de Minuit, 1976, p. 189, grifos do A., que continua nos seguintes
termos: “Ce que l’Etat nous doit, ce sera donc toujours, malgré tout, une
sort de cadeau. Le sujet-objet de l’amour d’Etat peut en
chaque occasion se convaincre de ceci: je l’ai échappée belle, un peu de plus je n’avais rien,
finalement j’ai de la
chance, je reçois ma part d’amour”).
Encaminhado-se para
concluir, pode-se dizer que as
reflexões aqui desenvolvidas revelam uma matriz comum às diversas formas de
ordenação social da conduta humana, como são a política, o direito e a
religião. Esta matriz comum se constitui historicamente, como parte de nossa
filogênese, mas se reproduz também, com variações e regularidades, no processo
de formação de cada sujeito, individualmente. A partir da constatação da imensa
dificuldade do direito em regular, com as normas gerais e abstratas que são as
leis, o comportamento cada vez mais diversificado dos membros de sociedades que
se transformam com a velocidade das atuais, ditas “pós-modernas”, vale recordar
a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante
nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento
da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da
proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências
psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial, donde
se verificar uma re-sacralização crescente das relações fora das instituições
religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos” (cf. G. Balandier,
“Antropologia e crítica da modernidade”, in: id., “Antropo-lógicas”,
São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao, “Poder
e Secularização”, São Paulo: EDUNESP, 1995).
Em épocas passadas, a comunidade
se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por
mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências
filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato
processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber,
minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens
normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa
capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência,
ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse
empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos
precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações
desenvolvidas pelo engenho humano – artes, mitologias, ciências, religiões,
filosofias – e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto
de vista social, a conduta, a saber, o Direito. Cabe ao Direito solidificar
essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os
mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida
humana.
Afinal, somos uma ilusão de
ser, pois apenas estamos, existimos, não somos realmente, já que ser é ser para
sempre. Se somos, somos nada. É esse nada, esse vazio interior, que nos horroriza, por
mais que o evitemos, quando com ele nos deparamos, ao pensarmos com
radicalidade nossa existência e verificamos o que somos: não-ser, mera
existência.
Se
em ética nos ocupamos da determinação do que é bom e do que é mal na vida, já
dando como resolvida a questão do bem de viver e da própria necessidade da
ética, ela está colaborando para dificultar a vida do ser moral que somos nós,
ao invés de nos ajudar, pois se a vida é que é o bem e a morte é o mal, tudo o
mais só pode ser mal, já que vamos morrer - o que, a rigor, pode acontecer a
qualquer momento e, na verdade, estamos morrendo a cada dia, a cada segundo,
enquanto vivemos. Então, seria preferível não termos ética: a ética deve ser negativa,
por ser afirmativa do impossível, isto é, o dever de viver, o nosso bem maior.
Tudo
o que fazemos, especialmente o que nos dá prazer – desde as coisas tidas como
mais simples: comer e fazer amor, conversar e fazer amigos, até as mais
sofisticadas, como a arte e a ciência, passando por aquelas em geral
condenáveis moralmente, como a busca da glória, do poder, de dinheiro,
drogar-se, cometer crimes – não passam de tentativas vãs de ocultarmos de nós
mesmos nossa falta de ser, preencher ou ornamentar o vazio fundamental que
somos nós: eis o mal radical. A ética nos força a optar pelo ser, quando não
somos – ou somos não-ser -, e com isso, nos leva a sofrer ainda mais do que
sofreríamos, se não tivéssemos ética nenhuma (cf. Julio Cabrera, “Crítica de
la moral afirmativa”,. Barcelona: Gedisa, 1996).
O sofrimento de existir é
considerado melhor do que o nada de não existir. Será que é mesmo? Mas se
existindo já somos esse nada? O fato intransponível que a todo custo a ética
tenta escamotear, por não assumi-lo com todas as suas conseqüências, é que
nós não existimos sempre nem existiremos para sempre. Por que este que nos
parece o estado normal, o de não-existência, que é o estado de ser e, logo, do
ser supremo, é o estado considerado excepcional e associado ao mal? Em ética, o
bem não é a regra e o mal, a exceção? Estar vivo não é uma exceção? Então por
que esta consideração a priori de que estar vivo é que é bom e não estar
vivo, mau? Sofremos nessa vida e, em
grande parte por isso mesmo, também fazemos outros sofrerem, quando poderíamos
muito bem usufruí-la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe
adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de obediência rígida
a regras universal e eternamente válidas, que pressupõe um estado de ser que
nunca alcançaremos em vida, mas apenas, possivelmente, após a morte: o de ser
para sempre. Daí ter A. Badiou (em “L´éthique. Essai sur la
conscience du Mal”, Paris: Hatier, 1993, p. 33) afirmado que a ética é
niilista, por se basear na convicção de que “a única coisa que pode
verdadeiramente acontecer ao homem é a morte”, o que a remete à inefabilidade
do que é totalmente diverso, denominação ética de Deus, instância decisória da
morte, onde se gera o mal: ética, “nome último do religioso como tal” (ib.:
23). Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual silenciamos,
e em razão desse silêncio, de não se falar nisso, não nos conscientizamos,
propriamente, de nossa situação existencial em toda a sua precariedade – e
beleza.
É
preciso, portanto, que haja espaços privados para se falar disso, sendo isso
mais do que falar de si, como na clínica psicanalítica, em geral, pois é falar
do que somos todos nós, e nesse discurso moldarmo-nos, eticamente. A ética hoje
requerida, portanto, não se refere a uma moral já pronta, mas àquela que
efetivamente já temos e que confrontamos com a verdade fundamental de que toda
moral é invenção coletiva, geral, e também, em certa medida, particular,
individual, singular, feita para justificar nosso desejo de preservar-nos a
vida, a nossa e a dos outros, sem que saibamos porque. Essa é nossa herança, o
legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos
obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se
comemorar.
* Professor Titular do Centro de Ciências
Juridicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Professor de Filosofia do Direito dos Programas de Estudos
Pós-Graduados em Direito da PUC-Sp e Universidade Candido Mendes (RJ).
Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Professor Doutor de Filosofia do Direito nos cursos de Mestrado e Doutorado em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em
Direito (Bielefeld, Alemanha). Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação
em Filosofia – UFRJ/IFCS. Formação em Psicanalista no Centro de Estudos
Psicanalíticos (CEP), S. Paulo.
Ex-Professor Titular de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará
(UECE)
[1] Anna O.,
como é sabido, foi uma paciente de BREUER que adoeceu, com sintomas de histeria, enquanto servia de
enfermeira para o pai, moribundo, com quem tinham uma intensa relação
emocional.
[2] Cf. FREUD,
S. “Uma Breve descrição da Psicanálise”, O. C., vol. XIII, p.243.
[3] Cf. FREUD,
S. “Uma Breve descrição da Psicanálise”, cit. p.244.
[4] A
“interpretação particular do terapeuta” encontra-se diretamente vinculada à sua
postura frente ao conceito psicanalítico de inconsciente, o reconhecimento da
sexualidade infantil, a importância do fator sexual na vida mental, dentre
outros.
[6] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.244.
[7] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.247.
[8] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.249.
[9] Como
exemplo podemos citar: o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische
Forschungen (1909-1914); Zentralblatt für Psychoanalyse (1911), Psycho-Analitic
Review (1913).
[10] Não se pode,
no entanto negar o mérito de JUNG quando, em 1907, explicou os sintomas mais
excêntricos dos estágios finais da dementia praecox a partir das
histórias individuais de vida dos pacientes. Assim como o estudo da
esquizofrenia, realizado por BLEULER (1911) demonstrou a justificação da
esquizofrenia por um ângulo psicanalítico.
[11] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.255.
[12] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.256.
[13] Cf. FREUD,
S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p. 258.
[14] Cf. FREUD, S.
“Nova Série de Conferências Introdutórias à Psicanálise” (1933), Conferência n° 31: “A
dissecção da personalidade psíquica”. Obras Completas, Vol. XXII, p. 102. Neue
Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse,
Vorlesung XXXI: “Die Zerlegung der psychischen Persönlichkeit”, Frankfurt am
Main: Fischer, 1991, p. 81.
[15]
“Escritos”, trad. Inês Oseki-Depré, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 86,
nota 6.
[16]
"Existiria um sentido psicanalítico da ‘História’?", in:
Palavração. Revista de Psicanálise, n. 2. Curitiba: Biblioteca Freudiana de
Curitiba, 1992.
[17] Cf., v.g.,
J. Birman, “Psicanálise, Ciência e Cultura”, Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p.
63, 166/167.
[18] "Una
lectura freudiana de Hans Kelsen", in: id. et al.,
Materiales para una Teoria Critica del Derecho, Buenos Aires: Abeledo Perrot,
1991, p. 22 – o A. foi um querido amigo, recentemente falecido, a quem rendo
aqui minhas homenagens.
[19] “Massenpsychologie und Ich-Analyse”, in:
Gesammelte Werke, vol. XIII, 9a. ed., Frankfurt am Main: Fischer, 1987 [1921],
cap. III,
(última) nota, p. 94.
[20] “Dio e lo
Stato”, Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiani, 1988, p. 139 ss.
[21] Cf.
“Indeterminismo e incerteza do sujeito na ética da psicanálise”, in:
Ética, Psicanálise e sua Transmissão, Maria Inês França [org.], Petrópolis:
Vozes, 1996, p. 53 ss., passim.
[22] Cf. “O
Avesso da Psicanálise”, trad. Ari Roitman, Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 102.
[23] Lacan, “A
Ética da Psicanálise”, trad. A. Quinet, 2a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1991,
p. 22. Como diziam os juristas-teólogos medievais, “fictio figura veritatis”.
Cf.
Ernst H. Kantorowicz, 1998, p. 185 ss., passim.
[24] Id.,
“O Avesso da Psicanálise”, cit., 1992, p. 97.
[25] De se
notar, ainda, é a alusão de Freud ao banquete no qual os filhos comem a carne
do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René Girard, em “A Violência
e o Sagrado”, irá situar na origem da religião e de toda sociedade – esta
pressupondo a primeira -, enquanto excesso permitido e violação ritualizada de
proibições, exceções que garantem a persistência das regras e da ordem social.
[26] Cf. “Les
structures élémentaires de la parenté”, Paris: P.U.F., 1949, p. 38 ss., passim. A propósito, há o conhecido texto de Lacan sobre a
família, publicado em 1938 na “Encyclopédie française”, tomo VIII, onde
ao tratar do complexo de édipo, refere o "apoio sociológico" que as
teses de Freud sobre as fantasias do inconsciente receberiam dos estudos
enfeixados por Frazer em sua célebre obra "The Golden Bough",
onde se reconhece no tabu da mãe a "lei primordial da
humanidade". Em sua investigação não menos célebre sobre as
estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss sustenta ter a
proibição do incesto sua origem na natureza, embora seja consagrada em uma
regra, emanada do ambiente sócio-cultural, e que seria a primeira norma
jurídica.
[27] Lacan, “A
Ética da Psicanálise”, cit., 1991, p. 216 e s. O mesmo foi dito por ele no
Seminário "O Desejo e a sua Interpretação", na última das sete
lições sobre Hamlet, em 29 de abril de 1959, acrescentando: "Este mito
indica-nos uma ligação essencial - a ordem da lei apenas pode ser concebida na
base de algo mais primordial, um crime. É também o sentido freudiano do mito de
Édipo" (J. Lacan, “Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce”, J. MARTINHO (org.),
Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 104).
[28] Para J.
Hillman (em id./K. Kerényi, “Variazioni su Edipo”, Milão: Raffaello
Cortina, 1992, p. 113), "a análise é edípica no método: a pesquisa como
interrogação, a consciência como olhar, o diálogo para descobrir, a descoberta
de si através da rememoração dos primeiros anos de vida, a leitura oracular dos
sonhos...".
[29] Cf., nesse
sentido, Ricardo Goldenberg, “Ensaio sobre a moral de Freud”, Salvador: Ágalma,
1994, p. 30
[30] Cf. G.
Balandier, “Antropologia e crítica da modernidade”, in: id.,
Antropo-lógicas, S. Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao “Poder e
Secularização”, São Paulo: EDUNESP, 1995; S. Martelli, “A Religião na Sociedade
Pós-Moderna”, São Paulo: Paulinas, 1995.
[31] Para uma
apresentação particularmente esclarecedora sobre esse aspecto do pensamento
lacaniano consulte-se J. Dor, “Introdução à leitura de Lacan”, 2a. ed. revista,
Porto Alegre: Artes Médicas, 1991, esp. a segunda parte, pp. 69 ss., texto que
tomamos como ponto de partida para o presente estudo.
[32] Cf. J.
Lacan, “Ética da Psicanálise”, cit., 1991, p. 382 ss., bem como o comentário à
"Antígona", ib.: 295 ss.
[33] Cf., a
respeito, por exemplo, Francisco Ortega, “Intensidade: Para uma história
herética da filosofia”, Goiânia: Editora UFG, 1998, p. 62 ss.
[34] Nesse
sentido, M. Safoan, apud H. Yankelevich ("A morte de
Antígona, ou Do gozo trágico", trad. Ari Roitman, in: “Letra
Freudiana”, n. 7/8, Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, s/d, p. 47).
[35] Sobre a
lenda de Édipo cf. J.-P. Vernant, “O Universo, os Deuses, os Homens”, São
Paulo: Companhia Das Letras, 2000, p. 162 ss., esp. 177 ss., a respeito dos
filhos do herói grego.
[36] Cf. Lacan,
“Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce”, J. MARTINHO (org.), Lisboa: Assírio
& Alvim, 1989, P. 74 ss.
[37] Cf., a
propósito, Francisco J. Varela, “Sobre a Competência Ética”, Lisboa: Edições
70, 1995, p. 66.
[38] Martin
Heidegger, “Das Ding”, in: id. “Vorträge und Aufsätze”, II,
Pfullingen: Neske, 1954.
[39] Esta
conclusão sobre o pensamento rousseauniano resultou de seminário que freqüentei
em princípio da década de 1980, em Fortaleza (CE), ministrado pelo saudoso
professor da USP, Luiz Roberto Salinas Fortes.
[40] Cf., v.g.,
“Droits. Revue Française de Théorie Juridique, vol. 21: La Fiction, Paris: PUF,
1995. À “fiction opératoire aui
représente le discours juridique” se reportam Michel van de Kerchove e François
Ost, em “Le droit ou les paradoxes du jeu”, Paris, 1992, p. 160, na esteira da
filosofia jurídica da linguagem do oxfordiano Herbert Hart, bem como da
semiótica jurídica pragmático-narrativa greimasiana de Bernard Jackson,
situando-se em posição intermediária entre o realismo escandinavo, que denuncia
o caráter mágico do direito, e o “psicanalismo” de Pierre Légendre, para quem o
Direito é uma das formas utilizada pelo Poder para se fazer amar, camuflando-se
para melhor se exercer.
[41] Cf.
Kelsen, “Teoria Geral das Normas”, Porto Alegre: Fabris, 1986, no 6, let. a, p.
32.
[42] Veja-se,
por exemplo, o que escreveu Kelsen na obra publicada postumamente, ult. cit.,
p. 322: (que) “normas são o sentido de atos de vontade e não atos
de pensamento, é irrelevante do ponto de vista da Lógica. Mas se estes
conteúdos de sentido estão expressos em proposições normativas, e se estão não
são compreendidas como sentido de atos de vontade, positivamente não são normas
válidas. Elas são positivamente normas válidas apenas como conteúdo de
sentido de reais atos de vontade” (grifos do A.).
[43] V. tb.
Kelsen, ob. ult. cit., p. 328 e seg.
[44] Cf. S.
Freud, "Jenseits des Lustprinzips", II, in: Freud-Studienausgabe,
vol. III, 4a. ed., Fischer Verlag, Frankfurt a. M., 1981, p. 225.
[45] J. Lacan,
O Seminário, livro 7, "A ética da psicanálise", trad. A. Quinet, 2a.
ed., J.Z.E., Rio de Janeiro, 1991, cap. XVI, 3, p. 262.
[46] Aqui, pode-se
lembrar, a título ilustrativo, a distinção hegeliana entre o
"entendimento", próprio do senso comum, onde não há, por exemplo, a
distinção entre sujeito e objeto e todas as demais,
daí decorrentes - ou antecedentes, como "interioridade/exterioridade"
-; a "razão", analítica, própria da ciência, e o "saber",
sintético, pelo qual se "vai para fora" ("geht
hinaus"), escapa das oposições,
superando-as pela "Aufhebung",
o que significa suprimi-las/conservando-as, "com e fora" ("without") da contradição. Lacan
fala em "discurso histérico", "discurso universitário",
"discurso filosófico" - e "discurso analítico".
[47] Assim como
nos mostrou Lacan, n'O Seminário, livro 20, "mais, ainda", versão
brasileira da M. D. Magno, 2a. ed., J.Z.E., Rio de Janeiro, 1985, p. 170.
[48] J. Lacan,
"A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", in:
"Escritos", ed. Perspectiva, S.Paulo, 1978, p. 227.
[49] Cf. F. de
Saussure, "Curso de Linguística Geral", Cultrix, São Paulo, 1973, pp.
142 e segs.
[50] Cf. C. Nique,
"Iniciação Metódica à Gramática Gerativa", trad. E. Lopes, Cultrix,
São Paulo, 1977, pp. 62 e segs., expondo a formulação contida na obra
"Estruturas Sintáticas", de Chomsky.
[51] Cf. J.
Lacan, ob. ult. cit., p. 233.
[52] Cf., aqui,
e para o que segue, id. ib., p. 246. Observe-se que o registro
original foi alterado, numa tentativa de adequá-lo àquele do Seminário XVII.
[53] "O lugar que
eu ocupo como sujeito de significante será, em relação àquele que eu ocupo como
sujeito do significado, concêntrico ou excêntrico? Eis a questão." Id. ib., p. 247.
[54] Cf.
"Escritos", cit. pp. 275 ss.
[55] Id., p. 288.
[56] Ou também,
"aquele que é-segundo-o-significante". A. Juranville,
"Lacan e a Filosofia", trad. V. Ribeiro, rev. L. A. Garzia-Roza, J.Z.E, Rio de Janeiro, 1987, p. 76.
[57] A notação
original, francesa, corriqueira também na literatura nacional, é S(A'). A
vantagem da notação utilizada está em que (Ø) significa elemento nulo ou
ausência de elemento, coincidência, o que favorece a evocação de seu
significado. S(Ø), afinal, em outra
notação, é S1, o significante puro, que não é nada em si mesmo, só sendo um
significante por ser relacionado a uma
cadeia de significante, S2. Daí que S1 "é, entre todos os
significantes, esse significante do
qual não há significado, e que, quanto ao sentido, simboliza seu
fracasso". Lacan, Seminário XX,
cit., p. 107. Nesse contexto, ele se liga também ao phi, ao falo.
[58] Cf. Lacan,
loc. ult. cit., pp. 290, 301/302 e 306/307.
[59] Id. ib.,
p. 297.
[60] Cf. Id., O Seminário, livro 17, "O avesso da
psicanálise", trad. A. Roitman, cons. A. Quinet, J.Z.E., Rio de Janeiro, 1991, cap. IV, 2, p. 57; cap. VI, 2, p. 87; cap. VIII, 2, p. 117.
[61] A. Didier-Weil
utiliza a expressão para diferenciar do "pequeno mestre", que podemos
melhor designar por amo ou senhor. Cf. ob. cit., pp.
125/126.
[62] Cf.
Seminário XX, cit., p. 156. V. tb. A. Juranville, ob. cit., p. 307. Note-se como a postura de recusa do saber
comumente aceito, própria do "grande mestre", que "só sabe que
nada sabe", - no que, aliás, nada
há de modéstia, muito pelo contrário, pois os que pensam que sabem é que estão
enganados - leva a uma reinstituição do saber, partindo dessa mesma ignorância,
que logo se torna "douta" e, depois, objeto de docência, disciplina
universitária. Cf., a propósito, G. Lebrun, "O avesso da dialética",
trad. Renato Janine Ribeiro, Cia. das Letras,
S. Paulo, 1988, pp.12/13. Já a apropriação pelo discurso filosófico do
discurso ignorante de si próprio, de quem "não sabe o que diz", mas
que diz, como se há no discurso da histérica, encontra-se magnificamente
ilustrada em "O sobrinho de Rameau", quando a certa altura Diderot
exclama, após uma observação do "sobrinho": "Isto é
infinitamente mais verdadeiro do que percebeis", ao que ele contesta:
"Ah! Eis como sois, vós e os outros de vossa espécie! Se dizemos algo bom,
o fazemos como loucos ou como inspirados: por acaso. Só vós próprios vos
entendeis. Sim, senhor filósofo, eu me entendo assim como vós vos
entendeis". Cf. Col. "Os Pensadores", vol. "Diderot",
Abril Cultural, S. Paulo, 1979, p. 44.
[63] Cf. id. ib.,
cap. XII, 1, pp. 157/158 e 164/165.
[64] Seminário
XVII, cit., p. 15.
[65] Cf. id. ib.,
loc. cit.
[66] O tema da
dialética senhor/escravo é trabalhado por Lacan em diversas opostunidades.
Veja-se, por exemplo, seu debate com Jean Hyppolite, n'O Seminário, livro 2,
"O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise", trad. M. C. Laznik
Penot, col. A. Quinet, 2a. ed.,
J.Z.E, Rio de Janeiro, 1987, esp. p. 96. Depois, no Seminário VII, cit., p. 21;
nos "Escritos", cit., pp. 292 e segs.; no Seminário XI, pp. 240/241;
extensamente no Seminário XVII, passim; no
Seminário XX, esp. p. 45. Em Hegel, consulte-se a "Fenomenologia do
Espírito", Parte I, trad. Paulo Menezes, col. K.-H. Efken, Vozes,
Petrópolis, 1992, pp. 126 e segs.. Para um resumo, P. Menezes, "Para ler a
Fenomenologia do Espírito", Loyola, S. Paulo, 1985, pp. 60 e segs. A
leitura lacaniana, como é sabido, descende daquela de Kojève, a qual é resumida
em L. A. Garcia-Roza, "Freud e o inconsciente", J.Z.E., Rio de Janeiro,
7a. ed., 1988, pp. 140 e segs.. V., ainda, F. Costamoura, "A propósito de
uma referência a Hegel: verdade e saber", in
"Jacques Lacan: a psicanálise e suas conexões", A. Quinet (org.),
Imago, Rio de Janeiro, 1993, pp. 94 e segs..Amplamente, sobre a interface da
filosofia hegeliana com a teoria psicanalítica lacaniana, S. Zizek, "O
mais sublime dos histéricos - Hegel com Lacan", trad. V. Ribeiro, rev. O.
de Souza, J.Z.E, Rio, 1991.
[67] Cf.
Seminário XVII, cit., p. 161.
[68] Cf. A.
Juranville, ob. cit., pp. 298/299. V. tb. A. Quinet, "As 4 + 1 Condições
da Análise", J.Z.E., Rio, 1991, p. 92.
[69] Cf.
Seminário XVII, pp. 18 e segs..
[71] Cf. Hans Kelsen,
Teoria Geral das Normas, trad. J. F. Duarte, Fabris Ed., Porto Alegre, 1986,
pp. 71, 328/329; v. tb. "Derecho y Psicoanalisis: Teoria de las ficciones
y función dogmática", E. E. Marí (ed.), Hachette, Buenos Aires, 1987;
Lacan, Seminário VII, p. 22; id., Seminário XX, p. 80.
[72] Cf., mais amplamente,
W. S. Guerra Filho, Teoria política do Direito, Brasília jurídica, Brasília,
2000, pp. 49 ss.
[73] V. Hegel, ob.
cit., ns. 190 e segs., pp. 130 e segs., onde se lê, v.g.: "A verdade da
consciência independente é (...) a consciência escrava" (n. 193, p. 131).
V. tb. P. Menezes, ob. cit., p. 62: "Como o Senhor chega à certeza de si
através de uma consciência dependente, não adquire a verdade de si mesmo,
porque `seu objeto não corresponde a seu conceito', o qual requer uma consciência
independente. Sua verdade é a consciência escrava". Para J.
Hyppolite a exposição da dialética do senhor e escravo "consiste
essencialmente em mostrar que o senhor se revela ser em verdade como escravo do escravo e o escravo como o senhor do senhor". "Genèse
et structure de la Phénoménologie de l'Esprit de Hegel", vol. I,
Aubier, Paris, 1946, p. 166.
[74] Cf.
Seminário XVII, p. 21: "um verdadeiro senhor não deseja saber
absolutamente nada - ele deseja que as coisas andem".
[75] A
respeito, veja-se em apoio as reflexões instigantes de J. Cabrera em
"Projeto de ética negativa", Mandacaru/Graphbox, S. Paulo, 1990, pp.
58 e segs..
[76] Cf. J.
Lacan, "Escritos", cit., p. 232. Já no Seminário VI, p. 378, ele nos diz: "O testemunho da obrigação,
na medida em que ela nos impõe a necessidade de uma razão prática, é um Tu deves incondicional. Esse campo adquire,
precisamente, sua importância pelo vazio em que o deixa, ao se aplicar
rigorosamente a definição kantiana".
[77] O termo alemão Witz,
empregado por Freud, costuma ser traduzido, na literatura psicanalítica, tanto
em castelhano como português, por "chiste". Aqui, optamos em geral
pela palavra "piada", por ser mais usual no linguajar brasileiro. Por
outro lado, para cobrir melhor o espectro semântico do original alemão, há que
se referir pelo menos uma outra expressão, que bem poderia ser uma gíria,
infelizmente já em desuso, "tirada", pois é isso, também, o Witz,
tal como FREUD o refere: um dito espirituoso, de improviso, ocasionado por
determinada situação. Para esse caso, porém, empregamos a palavra
"trocadilho".
[78]
Literalmente, “ato teatral com três personagens”, como desde a época
medieval se caracteriza ao processo judicial, numa analogia que desenvolvemos
entre este último tipo de processo e o processo analítico, no texto que se
segue ao presente, “Processo e Inconsciente”.
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