DIREITO E RELIGIÃO
WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
Livre Docente em
Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.
Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. Doutor
em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade
Farias Brito (CE). Professor dos Programas de Pós-Graduação “stricto sensu” em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade
Candido Mendes, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisador da Universidade Paulista (UNIP)
Pensar o Direito
filosoficamente é pensá-lo a partir do fundamento que, oculto, o gera e gere,
sua arkhé, como diziam os gregos antigos, já no período dito
pré-socrático. E isso seria como arte uma de composição de idéias e
conhecimentos das mais diversas origens, inclusive – e, talvez, principalmente
- sobre nossas origens, sobre o que é originário em nós e de nós, como é o
Direito. Em diversos de seus muitos sentidos literais, originais, então,
pode-se dizer que é, em primeiro lugar, de algo entre o mito e a religião que
assim se pratica. O saber daí decorrente é de se entender, portanto, como
produtivo do que dá a conhecer, tal como uma forma de arte. Assim, tanto nos
interessou re-colher, re-ligar, re-articular campos diversos do saber e
instâncias diferenciadas da vida, como também nos ocuparmos com re-leituras, ou
de leituras pouco usuais, no esforço de filosofia do direito apresentado.
Segundo autores clássicos
latinos, como LACTÂNCIO o “religar” da religião quer dizer “vincular-se a
Deus(es), enquanto para CÍCERO e VIRGÍLIO vem de “reler”, ou seja, “observar
conscienciosamente”, respeitar a “palavra de(os) Deus(es)” Outros mais antigos,
como Sérvio SULPÍCIO, à palavra religio faziam derivar de relinquere,
isto é, deixar, abandonar, relegar. Para SANTO AGOSTINHO religião vem de
“re-eleger”, isto é, “converter-se a um novo discernimento”. Da mesma forma, em
SÃO TOMÁS DE AQUINO, religio será entendida em um sentido mais próximo a
este, mas com uma conotação menos
intelectual e mais emocional, de adoração. O que teria originado esta prática,
tão propriamente humano, de se pôr em adoração, de se submeter, respeitar algo
como sagrado, obedecer a ditames, como aqueles que formam a própria linguagem e
tudo o mais que a pressupõe, como o direito?
Lembremos, a esse respeito,
do mito concebido por FREUD, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da
ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico. Na origem de tudo, para
FREUD, estaria um crime, o primeiro, o assassinato de um pai, que só depois de
assassinado os assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos, como
filhos – e parricidas. Esse pai teria sido
morto por não partilhar nem limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava,
fruía e ab-usava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que
viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, que é um parricídio, uma
conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que seria justificável,
e de fato veio a ser até por padres da Igreja Católica, teólogos-juristas
medievais, os “regicidas”. Só que o tirano, depois de morto, revelou-se como
pai.
Na situação que podemos
imaginar como sendo aquela dos "filhos" nessa horda primitiva, eles,
à medida que cresciam, eram expulsos pelo "pai", para que
conseguissem por seus próprios meios o sustento e as suas mulheres. Ora, essas
criaturas - de acordo com a explicação dada em teoria recente sobre o
surgimento do humano, devida ao biólogo chileno de renome internacional,
HUMBERTO MATURANA -, se eram seres "proto-humanos", então já
conheciam o amor e eram cooperativos
numa escala jamais atingida por seus "primos" não-humanos, os
chimpanzés, que por serem tão agressivos não evoluíram no sentido de uma
hominização. A meu ver, isso torna ainda mais consistente o mito-fundador da
sociabilidade humana, concebido por FREUD, mito em que encontramos, como
veremos em seguida, as características próprias da tragédia, o seu telos, tal como se acha definido por
ARISTÓTELES, nos capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a
poética: provocar piedade e temor.
Retomando a narrativa do
mito freudiano, tem-se que os filhos expulsos ficam inconformados com a perda
do convívio na horda, onde aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir
o que sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia que os levou a
pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os expulsaria, e que, morto,
ausente, se revelará como o pai. Eis que, porém, esse primeiro contrato, um
pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito
benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer
modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além disso, ao invés da
aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí
também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de
verdade", donde terem instaurado o
matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi
organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que LÉVI-STRAUSS considera a
lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira, a
que proíbe o incesto... com a mãe.
Na situação em que se
encontraram nossos antepassados parricidas, é fácil imaginar que tenham
experimentado os sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o
instrumento de purgação e apaziguamento de semelhantes paixões, pela catarse
provocada com a encenação das tragédias: o temor – a primeira obra de Deus:
"prius in terram deus facit terror"
- e a piedade (inclusive, auto-piedade).
Assim
é que, como para complementar o mito do assassinato do pai primevo, a outra
grande invenção de FREUD, para estabelecer o estatuto da fantasia inconsciente
que nos constitui, inspirou-se na tragédia de SÓFOCLES, "Édipo-Rei",
apontada por ARISTÓTELES, no capítulo décimo quarto de sua obra por último
citada, como exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer
"tremer de temor" e apiedarmo-nos. Ali, também um filho assassina,
inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio familiar. Só que Édipo,
ao contrário dos filhos da horda primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ou
seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos
primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual
com a mãe, acompanhado de um gozo letal. Em ambas as hipóteses, contudo, o
resultado da transgressão, quando dela se toma consciência, é o reforço da
interdição, com a invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto,
revela-se como condição do gozo, ao acenar para a sua possibilidade, anunciada
no além
dela, isto é, na
sua trans-gressão.
Em
uma outra narração do que teria ocorrido
naquele tempo mítico, o que é conceituado por LÉVI-STRAUSS, em sua "Antropologia Estrutural", como
abrangente do passado, presente e futuro, aquele em que se deu (dá e dará) o
assassinato do pai primevo, pode se ver os filhos como "expulsos do
paraíso". A mesma coisa, portanto, pode-se considerar como articulada no
livro do Gênesis, no mito do paraíso perdido, onde a transgressão da Lei de
Deus-Pai, Todo-Poderoso, aparece como condição para que o primeiro homem e a
primeira mulher conheçam o sexo, pois só assim percebem que estão nus; conheçam
a morte, ao tornarem-se mortais; conheçam a limitação à sua possibilidade de
conhecer, por não poderem conhecer a
Deus ou à realidade única, numênica (devo ao saudoso amigo LUIS
ALBERTO WARAT, em conversa no dia 16/12/2007, no Rio de Janeiro, a compreensão
disso); e conheçam as leis, que
lhes permitirá estabelecer a diferença entre o bem e o mal. Portanto, graças ao
desejo de transgredir a ordem divina, dada para que eles conhecessem o desejo,
é que se tornaram sujeitos, separados de Deus e, ao mesmo tempo, mais próximos
d'Ele, de ser como Ele. A mesma idéia é detectada por LACAN em uma epístola de
S. PAULO, quando em determinada passagem afirma que não teria conhecimento do
pecado, antes de conhecer a lei que o proíbe.
Na
Bíblia, portanto, também podemos
encontrar apoio para nossa hipótese mítica de que o primeiro pai foi
assassinado: imaginem por qual pecado ou crime original se exigiria o
sacrifício de JESUS, do "filho do homem" e “filho d'Ele”, se não
fosse, de acordo com aquela lei que rege o direito penal primitivo, a "lei
de Talião", o assassinato do pai, o assassinato de Deus, o mesmo Deus que
exigiu o sacrifício do filho de ABRAÃO apenas para comprovar sua fé n’Ele,
dispensando-o, ao final, do cumprimento da promessa. Como NIETZSCHE fará seu personagem perguntar,
em seu diálogo com o “último Papa”, na quarta e última parte de "Assim falou Zarathustra", para
saber como Deus morreu: “É verdade, como se fala, que a compaixão O sufocou,
que Ele viu, como o Homem foi pregado na cruz, e não suportou, que Seu amor
pelo Homem foi Seu inferno e, por fim, Sua morte?” - ao que
o “último Papa” reagiu com mutismo, com uma expressão envergonhada e
dolorosa....
Com
Deus morto, para LACAN, dá-se o contrário do que SARTRE supõe, em seu manifesto
existencialista "O Existencialismo -
É um Humanismo?", retomando a fórmula dostoiévskiana: "Se Deus
está morto, tudo é permitido". LACAN entende que, ao contrário, com Deus
morto, nada é permitido. Quando Ele estava vivo, presente, existente, nos
edênicos tempos adâmicos, é que tudo era permitido, ou melhor, tudo menos uma
coisa: comer o fruto da árvore do conhecimento. Agora que ele foi comido, assim
como o Deus-Pai do banquete totêmico, Ele morreu para nós, ausentou-se, não
existe, mas “ek-siste”, “está fora”; nos tornamos seres desejantes, sexuados e
mortais; nada mais na vida é permitido, só uma coisa é permitida: morrer. Daí
que entre os existencialistas penso que LACAN daria mais razão a CAMUS, quando inicia seu ensaio
"O Mito de Sísifo"
colocando o suicídio como a questão filosófica fundamental.
Nesse contexto, é inevitável lembrarmos
Antígona, filha (e meia-irmã) de Édipo, o símbolo da firmeza ética, para todas
as éticas possíveis, inclusive a ética da psicanálise, de LACAN, cujo
imperativo categórico é: "não ceda de seu desejo". Disso resulta a
negação de toda ética universalista, tal como aquelas propugnadas na
modernidade, em prol da ética de cada um, a ética individual e situacional, a
ética da amizade e do cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu por último
FOUCAULT.
Dependendo
do ponto de vista, ANTÍGONA pode aparecer como santa ou criminosa. Criminosa,
na perspectiva do direito positivo; santa, para o direito meta-positivo, de
origem religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem santa, nem
criminosa, duas ilusões provocadas por duas ficções diferentes: a religião e o
direito.
Para a
psicanálise, ANTÍGONA apenas agiu conforme o seu desejo, inconsciente. Desse
ponto de vista, só lhe era permitido escolher a morte que teve, como condição
de seu gozo. Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu corpo para
ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria em paz, na paz que não teve um
outro seu irmão, seu pai, ÉDIPO. Eis aí representada a origem violenta de toda
proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade,
sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por ROGER
CAILLOIS, condição da vida e porta para a morte. O incremento da violência na
sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da proibição
jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e
sociais da secularização defendida pela ideologia oficial e a re-sacralização
estetizante crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja,
em seitas ou “tribos” (MAFFESOLI).
Na base de toda essa ilusão
(ou ficção) coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do
direito e das religiões, está a ilusão individual de que somos um ser, fixo,
acobertando com isso o vazio que realmente somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar
esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta “aquilo” – o objeto “a” de
Lacan - que julgávamos ser (por exemplo, nossa mãe, “onde” “éramos” antes de
nascer), nos leva a falar. Adquirindo a linguagem, nos vem a ilusão
fundamental: a do Eu. Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido
de atingir “(a)lgo” que preencha-nos o vazio de ser, terminamos nos fixando
mais em alguma prática, como a religião, a arte ou a ciência. Com a arte,
ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o
evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós
mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade
destruidora que é a nossa. Se não nos voltarmos para a arte em alguma de suas
mais diversas formas, onde se inclui a arte da política e mesmo a religião –
uma forma de religião artística, criativa, prazeirosa, festiva, à qual OSWALD
DE ANDRADE, "A Marcha das Utopias", qualificava como “órfica”, em tudo diversa
daquelas religiões cultuais, repressoras e subordinadoras -, para daí fazermos
o fundamento do mundo em que vivemos e que vive conosco: do contrário, não
haverá salvação possível para ele – e,
conseqüentemente, para nós também.
Nas
primitivas comunidades, a diferenciação social incipiente, agregada a outros
fatores, tais como a natureza do poder social, acarreta o conhecido fenômeno
que se pode denominar de "sincretismo normativo", pois as normas que
regulam a vida social acham-se condensadas num agregado indiviso, onde é
impossível discriminar quais teriam natureza moral, jurídica, religiosa ou de
mero trato social. Neste sentido, costuma-se apontar para o caráter religioso
de que se revestem as primeiras manifestações jurídicas no seio social, por
serem as instituições religiosas aquelas dotadas de maior autoridade, em grupos
sociais onde a especialização de funções e divisão do trabalho ainda não
ensejou o aparecimento de algo como o Estado. Assim, em obra hoje clássica, já
sustentava FUSTEL DE COULANGES, em "A Cidade Antiga", que "entre os gregos e romanos, como
entre os hindus, a lei surgiu, a princípio, como uma parte da religião. Os
antigos códigos eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações
e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas". Adiante, explica que a
razão pela qual "os mesmos homens eram, ao mesmo tempo, pontífices e
jurisconsultos, resulta do fato de direito e religião se confundirem, formando
um todo”. Daí que o Direito podia ser concebido como estudo ao mesmo tempo de
coisas divinas e humanas - “Jurisprudentia
est rerum divinarum atque humanorum notitia”, rezava uma definição antiga,
de ULPIANO, conservada no corpo legislativo justinianeu.
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