“Prefácio” a “Filosofia do Direito:
Estudos em Homenagem a Willis Santiago Guerra Filho”. Org.: Marcelo Zovico. São
Paulo: Clássica Ed., 20012
WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO:
Caminhos potentes da filosofia brasileira
Belmiro Jorge Patto
Professor da Universidade Estadual
de Maringá, Paraná.
O
nome já desvela o que se poderia supor, nesta vontade guerreira, qual filho do
trovão, a justeza das idéias. E aí está o seu nome! Aí está o seu ethos; raro, dos poucos que sabem do
assombro do mundo. Nômade de uma trajetória brilhante, ilumina aquilo que está
aí, mas obnubilado aos olhos incautos. Sua obra agiganta a imagem do pensamento
sempre em busca da atualização, maquinando novos agenciamentos capazes de
devolver as potências da vida nesta atividade nobiliárquica, ainda tão
desprezada nestes sertões veredas.
Pensar
a vida que nos faz pensar, encontrar clareiras, ainda que não sejam. Uma
profícua ficção de sentidos, e tudo ganha novas cores e formas que brevemente
serão transformadas em outras expressões. Capaz da vertigem da memória nos
arquivos mais recônditos está sempre à velocidade da luz, atemporalizado,
devindo Ereigins. Mas não se para de
pensar nas dobras, neste dentro e fora do pensamento que suas intensões nos fazem agenciar, buscando
sempre novos sentidos na caminhada.
Esta
via – filosófica – é difícil de trilhar em muitos sentidos. Suas encruzilhadas
são constantes, é tudo muito mal sinalizado e pode-se perder facilmente o
referencial. De outro lado os transeuntes nem sempre deixaram de ser bárbaros.
Por isso é necessário mesmo ser guerreiro de tradição. Sua verve ancestral denuncia a gravidade e a leveza de seu pensamento.
Literato dos espaços e dos movimentos sua pena devém pássaro nas linhas de fuga
dos seus vôos acrobáticos. Nada escapa ao seu afeto apaixonado na hora de
pensar, e que cinco horas da tarde. Tem também as noites dessa via. Sua poética,
que vira de ponta cabeça a vida e o mundo; que chacoalha as malhas e os nós
lança os dados e investe o jogo de uma outra dimensão: aquela onde o humano é
mais e é também menos, quântico dos cânticos. E também pode ser música,
geometria, aritmética, astronomia, as quatro vias da liberdade, e as outras
três que iniciam. Tudo isso é dito e feito neste calor que se agita no fogo do
encontro. Caminhos que caminham. Alice no país das maravilhas, um tempo
absurdado que pula e não corre. Paradoxos de Zeno na via diferencial.
Parresiasta
total, assume o risco da verdade na filia das suas idéias. Comprometido com a
vida, sua arte é plena de positividade, criadora, constituinte de mundos
possíveis para o povo por vir. Já esteve do outro lado da via, no múltiplo
sentido da via que nos atravessa e arrasta. Sem medo ou delongas rasga as
fronteiras dos limites estabelecidos não por gosto ou ressentimento, mas por
necessidade de espaço para nomadizar, para desejar.
Ensinar
a aprender, talvez a missão impossível que acaba se efetivando no horizonte do
não sabido. Sonhar a vida que se quer, fazer a vida acontecer na potência dos
agenciamentos, experimentar os mundos. Para os incrédulos encarquilhados, a
Terra há de comer. Vieste mesmo do fogo, sem medo da morte: Fênix do pensamento.
Poderia
mesmo ser um manifesto antropofágico, seria merecido também. Neste palco também
se atua com desenvoltura, metamorfoseando a larva dos nossos pensamentos
larvares. Paredes que construímos sem qualquer ciência, entulhos que juntamos que
nos oprimem e deprimem. Romper os gases e os fluxos, sair para o passeio
esquizo do pensamento que não julga, acontece. Autofagia do pensamento que
complica a matéria para criar imagens e sentidos, vivências e temporalidades.
Outridade do pensamento filosófico que retorse o direito e devém justiça. Húmus
da terra de ninguém, veio de alguma riqueza desconhecida, o pensamento desliza
os platôs da certeza e nomadiza os desejos. Nem chefe nem juiz.
E
já não se tem qualquer dúvida de que existe uma filosofia brasileira, e não nos
interessa saber das grandezas de um pretenso primeiro lugar, somente as
potências do pensar criador de mundos melhores, amorais, porque construídos na
diferença e na intensidade dos afetos, dos perceptos, dos conceitos.
E
quantas problemáticas são capazes de fazer uma filosofia? São inúmeras, talvez
infinitas para o espaço/tempo de uma vida. Mas nem por isso se vai recusar a
tarefa de fazer filosofia. Seu dom e
sua vocação, sua voz. Mas não se trata de apologia nem elegia, somente a
constatação de uma força que nos atravessa e nos obriga a pensar.
Questionamentos que inquietam nossa alma em direção ao movimento constante.
Nomadizar o pensamento para agenciar novos encontros: acontecimento!
Vem
de longe sua peregrinação portentosa de uma coleção quase que inenarrável de
expressões inovadoras que agitam a cena do pensamento jurídico nacional.
Transversal em todas suas empreitadas, desde logo já anunciava não a novidade,
mas a criação. Autopoiético, sem dúvida; poético, com certeza. Filósofo pleno
de incertezas, erros e descaminhos que faz dessas características sua maior
arma em prol do pensamento. Humildade socrática, humor cínico, coragem
espartana, tudo isso se pode encontrar nos agenciamentos de sua filosofia que
não renega a tropicalidade do calor entrópico.
Quem
já presenciou suas intervenções fica marcado com o fogo do acontecimento
assombroso. Já se sabe no estar aí, no devir potente do eterno retorno, nas
dobras de um sistema autopoiético, na vertigem dos vapores da aurora de uma
grande aventura. Não se indicam caminhos nem soluções, isto seria mais a função
de um professor. O que se passa na indeterminação de um encontro que dá ensejo
ao pensamento, aí está seu milieu.
E
poderia até ser peripateticamente, se isto ainda fosse permitido neste mundo
que se construiu cheio de cercas e paredes. E na verdade é mesmo o passeio do
esquizo que faz com que suas aulas
sejam o que são: puro desejo fluindo e arrebatando o pensamento.
Multiplicidades que nunca se reduzem ao duplo falso mestre/aluno, não, nada
disso. Do que se trata é da delicadeza do que passa entre os corpos, seus
afetos, suas paixões que criam espaço/tempo e ancoram um ponto essencial no
pluriverso das idéias. Já não há pessoas, sujeitos, mas hecceidades.
E
tudo isso também pode incomodar. E que deliciosa incumbência para o filósofo,
não como um centro de agitação, mas como caixa de ressonâncias; porque como se
sabe, são elas as criadoras de mundos. Um demiurgo que converge as forças
divergentes da Natureza, e já não se sabe em que sentido se faz esta distinção
arbitrária entre passado/presente/futuro: a Grécia Antiga como um grande
acelerador de partículas. Dobras do espaço/tempo. E é nelas que se instala a
criação criadora, a retorsão.
Recusar
pensar na representação, agenciar movimentos díspares como o direito e as
funções biológicas, ou mesmo a quântica da proporcionalidade. Inserir a poética
na política como potência da vida, não se deixar cooptar pelas forças territorializadoras
do poder neurótico da substancialização, guerrear sempre, nomadizar os fluxos
para fazer surgir outras imagens do pensamento, atualizar as ficções.
Seria
apequenar as trajetórias citar títulos, produções, números quantitativos que interessam
às estatísticas do cálculo racional. Mais interessante nos parece buscar a
intensidade do que se passa enquanto passa. A passagem, seja aquela de
Whitehead ou de Don Juan, buscar na vida o que pode a filosofia, sair da
caverna e entrar nos túneis do espaço/tempo/pensamento das fitas de Möbius, dos
sons das Musas, dos mundos dos Deuses. Religar os pontos nos cortes de Dedekind
onde a reta se curva. Fazer paradoxos na matrix filosófica, dar testemunho da
própria vida para a(s)cender (a)o fogo da filosofia. Fricção ou ficção, já não
há grande diferença, pois é justamente nestas distinções menores que se começa
a pensar, a retorser, a dobrar, a deslocar este centro ilusório que nos
aprisiona em sujeitos, leis, hierarquias, cavernas.
E
também não se trata de luz, mas das cores do pensamento, suas freqüências, seus
graus de dissolubilidade que nunca tendem ao branco. Deixar borrar o pensamento
nas bordas das sombras que possibilitam os volumes que fazem erigir os blocos
de sensações: afetos. Desejar o outro do pensamento do outro, humanizar. Fazer direito ainda que por caminhos
tortos porque somos humanos, seres improváveis, anti-natureza da natureza,
autopoiésis.
É
na busca que se descobre o caminho que começa sempre pelo meio porque não há
começo ou fim, deserto profícuo de imensidões que somente o pensamento pode dar
conta. Não platonicamente, nomadicamente. Atravessar o deserto semeando os
manás da filosofia de uma vida inteira, constituir oásis não como paraísos, mas
como lugares provisórios onde se bebe a água da inquietude que ferve ao fogo do
conhecimento. Ebulir na caminhada e quem sabe fazer chover no deserto.
E
já aqui se dobra o pensamento em busca de pajés e tambores ancestrais, os logos
potentes da percussão dos sonhos tropicais. Atabaques e tacapes no horizonte do
guerreiro incansável que cruza terreiros e retoma as flechas de seus Orixás
qual um Zaratustra equatorial. Redescobrir o Brasil do lixo ocidental,
desmacunaimizar as brasas desse território inóspito, de tantas riquezas
naturais. Buscar na selva o pensamento que agencia outras naturezas, outros
devires. Encontrar os povos, democratizar.
Tudo
isso é sim inerente ao pensar filosófico. Por certo poderia parecer uma sandice
tropicalista, aos olhos de gélidos pensadores encarquilhados em seus
departamentos universitários. Mas, justamente, quem já viveu os múltiplos
caminhos da vida filosófica é que poderia avaliar à distância, quais as
retorsões mais potentes. Constatar a morte do centro já não é novidade, o que
se busca é a criação na repetição da diferença nas dobras do pensamento. O que
se busca não é interpretar, mas experienciar.
A
vida filosófica de Willis Santiago Guerra Filho é testemunho vivo das potências
do pensamento brasileiro.
O
pensamento ainda não morreu!
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