Matrix como a essência da técnica
segundo Heidegger
Willis Santiago Guerra
Filho
Doutor em Direito (Univ. Bielefeld) e em Filosofia
(UFRJ).
Livre Docente em Filosofia do Direito (UFC).
Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito
da PUC-SP.
Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e
Políticas
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Advogado.
Márcia Regina Pitta Lopes Aquino
Doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP.
Especialista em Filosofia (UEL).
Advogada.
Rogerio Braz Mehanna
Khamis
Mestrando em Filosofia do Direito na PUC-SP.
Advogado.
O
filme Matrix, dentre as super-produções hollywoodianas, é talvez a que
mais despertou discussões filosóficas, de cunho acadêmico, mesmo porque, em sua
composição extremamente heterogênea, em que se encontra desde referências aos animés
japoneses, a videogames, filmes e livros de ficção científica, até a
religiões e mitologias as mais diversas, há também uma série de elementos
extraídos da literatura filosófica e científica. A alusão à alegoria da
caverna, de Platão, é a mais evidente, pois ali, como no filme, temos seres
humanos aprisionados, sem se darem conta disso, uma vez que se encontram
entretidos por imagens, confundindo-as com a realidade. Um contemporâneo que é explicitamente
"citado” é Jean Baudrillard, autor do livro que o personagem principal,
Neo, retira da estante enquanto espera ser atendido pelo Oráculo, que quando se
apresenta descobrirmos ser uma mãe-de-santo, a qual no filme seguinte da
trilogia se revela um programa de computador, como seria o próprio Deus, quando
conversa com ela/ele na cena final do último filme da série, ou seja, produtos
de um universo concebido, ao que parece, segundo uma proposta de John A.
Wheeler, colaborador de Einstein, orientador de Hugh Everett III na tese sobre
o multiverso ou “universos paralelos” (talvez a que mais impacto teve na ficção
científica), sendo a Wheeler a quem devemos a expressão "buraco
negro", a teoria da S-Matrix (!), a divulgação do princípio antrópico –
pelo qual, extraindo-se consequências da formulação padrão da física quântica,
devida principalmente ao orientador de doutorado de Wheeler, N. Bohr, se no
nível mais sutil da matéria as partículas que compõem um quantum só
adquirem existência quando observadas, tudo o mais só existe (ao menos, para
nós, como percebemos) em razão de nossa participação, pela observação - e a
mencionada proposta, de que na constituição última da realidade não se
teria propriamente partículas elementares,
e sim bytes de informação... Com quem nos propomos a fazer uma aproximação
entre seu pensamento, a respeito da técnica, e o filme em tela, Martin
Heidegger, é alguém que, tendo denunciado o engodo em que nos enredamos,
induzidos pela metafísica de Platão (e de seu discípulo Aristóteles), ao
idealizarmos o mundo pela representação conceitual que dele viemos a fazer,
para assim nos certificarmos de descobrirmos a verdade, que, tal como se
estivéssemos numa caverna, nele está obscurecida e oculta. Heidegger vai então,
a certa altura, em colóquio para o qual foi convidado pelo outro grande nome da
física quântica, ao lado de Bohr, seu conterrâneo Werner Heisenberg, denominar
nossa época como a época da “imagem do mundo" (Weltbild),
preparando uma compreensão deste mundo como dominado pelo simulacro e o
virtual, assim como encontramos em Baudrillard – e no filme sob comento.
A
seguir, após uma breve notícia biográfica de Heidegger (I), apresentaremos,
também muito sucintamente, sua concepção filosófica mais geral (II), para
depois nos focarmos na "questão da técnica” (III), encerrando com
observações em torno de Matrix, em sua articulação também com o direito
(IV).
I
Martin
Heidegger nasceu na interiorana cidade alemã de Messkirch, em 26 de setembro de
1889, como filho de um sacristão. Seus estudos foram direcionados com na
intenção de se tornar sacerdote, tendo inclusive freqüentado o seminário, na
“Casa de Conrado” (Konradhaus). Estudou na Universidade de Friburgo,
ingressando em 1909, onde se torna aluno de Heinrich Rickert, chefe da escola
neo-kantiana deste lado sul da Alemanha. Em meados de 1911 interrompe os
estudos, subvencionados pela Igreja, para se tornar sacerdote e passa a ter
aulas com Edmund Husserl, o fundador da fenomenologia, que seria seu grande
mestre. Concluiu seus estudos em 1913 e no ano seguinte teve uma breve passagem
pelo exército, já em plena I Guerra Mundial, da qual foi dispensado por
problemas cardíacos.
Em
1916 Husserl foi chamado a lecionar em Friburgo. Heidegger o seguiu, mesmo não
sendo à época, formalmente, seu assistente. Casa-se com Elfried, uma luterana,
em 1917 e também começa a ministrar cursos e seminários em Friburgo, sendo o
primeiro de que se tem registro o chamado "Seminário do esforço de
guerra”(Kriegsnotdienst-Seminar), de 1919. Lecionou na Universidade
Phillips, em Marburgo, por recomendação de Husserl a Natorp, entre 1923 e 1927,
como “professor substituto”, mas com privilégios e direitos de um catedrático.
Durante este período, em 1924, conhece aquela que se tornaria igualmente
importante filósofa, Hannah Arendt, com quem manteve relacionamento amoroso
extra-conjugal, como em diversas outras ocasiões a longo da vida, em geral com
o conhecimento da esposa, a qual também chegou a ter, mesmo, um filho
adulterino, reconhecido por Heidegger e aquinhoado por ele com os direitos
autorais sobre toda sua obra, tendo tudo isso vindo à luz recentemente, com a
publicação de parte da correspondência entre o casal por este filho e sua
filha.
Também
neste período em Marburgo é que desenvolve o que viria a se tornar um
verdadeiro marco no pensamento filosófico contemporâneo, a obra que termina em
1926, “Ser e Tempo” (Sein und Zeit),
publicada no ano seguinte na revista dirigida por Husserl, que no entanto foi
acometido por descontentamento com a inflexão dada por seu discípulo ao
pensamento fenomenológico, tonando-o muito próximo do que ele mais havia
combatido, o psicologismo, na forma de um “antropologismo", e ainda com
resquícios de uma abordagem pré-científica, ao discutir o tema metafísico por
excelência, que é o do Ser, quando dele Husserl esperava a elaboração de uma
fenomenologia da religião: de seus tempos de estudante de teologia o que Heidegger
muito bem soube aproveitar foi a hermenêutica, que a partir de sua obra irá,
sim, frutificar a teologia, sobretudo
aquela luterana, através de autores como Bultmann, e a filosofia em geral,
especialmente graças a um aluno seu e de Natorp, Gadamer, de quem a
hermenêutica jurídica se beneficiará graças a alunos deste como Friedrich
Müller, para se tornar a nova interpretação constitucional.
Em meados de 1929,
Heidegger foi nomeado professor titular da Universidade de Friburgo, assumindo
a cadeira deixada por Husserl, ministrando a aula inaugural, “O que é a
metafísica?”. Na plateia estava um jovem estudante de letras germânicas,
japonês, que impressionado com a semelhança que vislumbrou entre o que ouvira e
o pensamento zen-budista imediatamente a traduziu e fez publicar em seu País,
onde obteve grande repercussão, graças a qual a docência de Heidegger atrairia
muitos seguidores nipônicos.
Em 1933 Heidegger e a
esposa se filiam ao partido Nacional-Socialista, encabeçado por Adolf Hitler,
sendo em seguida nomeado reitor da Universidade de Friburgo, enquanto nome que
angariava mais apoio de ambos os lados que estavam se digladiando, ou seja, os
que eram a favor do regime e os que não o eram. O discurso de posse deixa claro
o alinhamento de Heidegger e a esperança que depositava na regeneração da
universidade, bem como, através dela, de toda a nação, pela recuperação de uma perspectiva de
conhecimento, em ultima análise, filosófica, por universalista, em
contraposição ao especialismo técnico que vigorava em todo lado, inclusive
naqueles que ameaçava a Alemanha a leste e a oeste também. O reitorado durou 10
meses, tendo o próprio Heidegger, na chamada entrevista-testamento, de 1966,
revista Der Spiegel, dito que renunciou para não cumprir as ordens
superiores de que demitisse os diretores das faculdades de direito e medicina,
por se recusarem a colaborar com o regime. Em seguida, é convidado a assumir a
cadeira de filosofia na Universidade de Berlim, e quando não conseguiu mais
adiar o atendimento do "convite”, pronunciou no rádio a conferência
"Porque permanecemos na província", justificando que o seu modo de
pensar era incompatível com a vida em um grande centro urbano, sendo dependente
do ambiente pastoril em que vivia, pois como dirá na célebre carta a Jean
Beaufret, sobre o humanismo, os humanos somos pastores do ser.
A preocupação de Heidegger
com os efeitos deletérios da chamada civilização industrial, à qual corresponde
uma ascensão e predomínio do
conhecimento tecno-científico, especializado, sem questionamento de qualquer
sentido, mas tão-somente dos meios adequados a realizar finalidades
utilitárias, como se vê, pode ser rastreada até momentos bem recuados de seu
pensamento, nesse aspecto bastante influenciado pela literatura e reflexões de
Ernst Jünger, um notório integrante da chamada “revolução conservadora”, junto
com figuras como o jurista Carl Schmitt,
das quais o nazismo se beneficiará para se afirmar política e culturalmente.
Com o desenvolvimento do regime, caíram no ostracismo de que o próprio Heidegger
padeceu. Foi assim que passou a maior
parte dos anos da ditadura hitlerista ocupando-se do pensamento de autor
insuspeito para o regime, que o reivindicava, ainda que de maneira totalmente
deturpada, a saber, Friedrich Nietzsche, onde desenvolvia análises críticas da
sociedade tecnificada a propósito do tema nietzschiano por excelência, o
nihilismo, constante já de passagens da sua importante obra de 1935,
“Introdução à Metafísica”. Um marco em sua preocupação com a essência da
técnica é o ano de 1938, quando profere
a conferência “A fundação da imagem moderna do mundo pela metafísica”, que mais
tarde daria origem à obra “A época da imagem do mundo”.
Em 1946, após a derrota da
Alemanha na guerra, foi proibido de
lecionar na universidade, muito por sua filiação ao partido nacionalista, que
nunca rejeitou, praticando o que depois muitos cobrariam dele, o que
equivaleria à prática de uma espécie de suicídio, considerando a natureza do
regime que então vigorava. Já em 1949 ministra palestras avulsas, dentre as
quais se destacam aquelas quatro em Bremen, dentre as quais consta “A Virada” (Die Kehre), que para muitos intérpretes
anuncia uma nova fase de seu pensamento ou, mesmo, um “segundo Heidegger”, e “A
Com-Posição” (Das Ge-Stell), depois
retrabalhada e publicada como “A Questão da Técnica” (Die Frage nach der Technik – mais literalmente traduzido, “A
Pergunta pela Técnica”).
[1]
Heidegger foi reintegrado
à universidade em 1951, restando-lhe poucos anos antes da aposentadoria
compulsória devido à idade, aos sessenta e cinco anos. Em 1975 foi publicado o
primeiro tomo de sua “Obra Reunida” (Gesammtausgabe),
a que ele preferia se referir como “Caminhos (Wege) e não, obras (Werke)”.
A previsão é de que, ao final, sejam mais de 100 volumes com notas de aula, cartas,
conferências, artigos e, claro, livros. Morreu em 1976, em sua cidade natal.
II
Como vimos, Heidegger evitava se referir a seu trabalho como
uma obra. Os momentos de seu percurso existencial foram por vezes referidos como “marcas de um caminho” (Wegemarken),[2] título
de um livro seu em que reúne contribuições feitas ao longo de várias décadas. Tais “marcas”, inspirado no que são
denominados de “índices” (Anzeigen) significativos na “Abertura” da
“Primeira Investigação Lógica”, de Husserl, é que entendemos Heidegger vai
referir como “indicação formal” (formale
Anzeige), denominação que dará ao operador interpretativo que empregará, de
maneira explícita, desde o início de seu percurso autônomo, pela via aberta por
Husserl, com a fenomenologia, em sua abordagem hermenêutica, por buscar um
sentido fundamental para o ser que somos, o que para ele equivale a dizer
existencial. O operador vai então ser empregado para explicitar a compreensão
que o vivente humano tem de seu próprio ser enquanto existente, “ser para
fora”, “ser aí”, “ex-sistente”, da-sein
interpretante da faticidade “nua e crua” da vida, que é a sua situação
hermenêutica: o que Heidegger denomina, desde o momento inicial de seu percurso
com docente de filosofia, “vida (ou vivência, Lebenserfahrung) fática”, ocupada e pré-ocupada em tomar
providências para se assegurar, diante da percepção de sua fragilidade,
finitude e incerteza no mundo que o cerca, circundante (Umwelt).
[3]
Por
que há antes o Ser e não o Nada?
Essa questão foi colocada no século XVII por Leibniz, em seus “Novos Ensaios
sobre o Entendimento Humano”, e dedicou-se a respondê-la Martin Heidegger
durante uma vida provecta de estudos e ensino. A questão é colocada por ele,
explicitamente, em sua obra “Introdução à Metafísica”. Uma paráfrase nos
ajudará a iluminar a pergunta, ao dar-lhe, literalmente, sentido: Por que há antes o sentido e não o
sem-sentido? Claro, se o sentido – ou, pelo menos, com certeza, a pergunta
por ele - é algo que o ser humano introduz no universo, como nem sempre o ser
humano esteve presente nele nem nada garante que nele estará para sempre,
pois se nem o universo, talvez, seja
para sempre, então houve antes o sem-sentido, assim como antes do ser, o nada -
e, na verdade, assim como foi antes, também o é agora e sempre: não há o ser
nem o sentido senão na fantasia humana. Tal fantasia é humanamente construída,
sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo, difuso, e por isso aparece dotada
de um caráter vinculante, que a impõe a nós como se realidade fosse, na qual
devemos acreditar – e não apenas podemos, se quisermos -, e isso se não
quisermos vir a sofrer consequências bem reais em razão do descrédito, como são
as aplicações de sanções previstas em normas jurídicas.
O ponto fulcral da
filosofia heideggeriana, a nosso ver, é uma cisão proposta em relação à
tradição ocidental operada através do afastamento tanto do idealismo,
transcendente, associado a Platão como seu defensor clássico, como o realismo,
imanente, que seria patrocinado, contra ele, por seu discípulo Aristóteles.
Esta cisão será também denominada “diferença ontológica”, pois postula que
tanto no idealismo como no realismo negligencia-se a radical diferença entre o
ser, presente em tudo o que é, e os entes, que são sem com isso esgotar o ser,
mesmo quando concebido como “ser supremo”, ou seja, Deus, que seria também um
ente, ainda que situado em um patamar exclusivo, imperscrutável. Vale dizer, o
pensamento do filósofo foge das compreensões da metafísica que norteia o
pensamento ocidental. Nesta linha, o pensador se separa da busca das ideias
absolutas e transcendentes. Heidegger, ainda assim, desenvolve uma busca
ontológica, que será a base de sua filosofia. Alysson Leandro Mascaro ressalta
que “(A) palavra ontologia vem do grego ontós,
ser, e a petição heideggeriana é pela filosofia do ser”.[4]
Compreender o que é, o ser, torna-se o motivo central de toda a filosofia
heideggeriana.
É para entender o ser que
Heidegger recorre à noção de Dasein,
palavra composta por Da, “aí”, e Sein, “ser”, significando, literalmente
“existência”, mas tal como ela se dá de maneira toda própria, até onde podemos
perceber, por enquanto, apenas em nós humanos, sendo expostos, como que
lançados, assim como somos, ao tomarmos consciência de que somos sem ter sido
antes de nascermos e só até morrermos, para fora (ex ou eks) de um modo de
ser fixo, como é dos entes em geral, adquirindo assim uma abertura para uma
infinidade de possibilidades de ser diversamente, livremente. Somos, então, um
ente que é enquanto interpreta a si e ao mundo em que observa a si e a tudo o
mais, do que resulta a proposta de Heidegger de investigar o que é o ser nesse
ser que somos, e recorrendo, além da fenomenologia, também à hermenêutica,
enquanto conhecimento da interpretação. Sua intenção era por aí acessar a
essência do que somos no que ela se mostra em nosso exercício de ser, sendo com
outros, inter homines, com quem
exercemos a capacidade de colher o ser ali onde reside em nós, na linguagem com
que nomeamos e, assim, criamos o nosso mundo – daí traduzirem os italianos Dasein por esserci. Aqui surge um novo paradigma. O ser, este que somos, não
tem mais, como na metafísica de origem grega, platônico-aristotélica, uma
compreensão predefinida. Em verdade, o ser passa a ser visto na dualidade de
“ser”, sim, mas provisoriamente, “aí”. E este ser que somos é enquanto se
relaciona com outros seres no mesmo estado descentrado, e(k)x-(s)istente.
Desta maneira, como o ser
do Dasein não é predeterminado, mas
sim uma constante transformação e formação de si mesmo, donde a existência ser
a essência do Dasein. A existência,
então, é para Heidegger a relação do ser com o que o cerca, e não de forma
isolada do tempo e espaço como essência imutável. Recorrendo de novo a Alysson
Mascaro:[5]
“A existência nunca é um dado isolado,
desligado do resto da realidade, puro. É sempre um fenômeno circunstanciado. A
situação existencial é o que lastreia a manifestação do ser. O local, o tempo
histórico, as condições materiais, culturais, espirituais, tudo isto esta
mergulhado no ser. Daí não se falar, na filosofia de Heidegger, no ser como
algo isolado, numa essência pura, mas sim num ser-aí, que se manifesta – e se
compreende – situacionalmente.”
Como se vê, a existência é
sempre “ser aí” (Dasein). Ou seja, a
existência deve sempre ser entendida na relação com o meio que a cerca e no
tempo em que se dá, e assim constata-se que ser é tempo. Como o ser se exprime
e se apresenta temporalmente, relacionado também com o tempo em que se dá (daí
o título da obra “Ser e Tempo”), logo o estudo do ser é histórico, pois deve
analisar o ser no tempo em que ele se deu, dá e dará (os “êxtases”, que
Heidegger propõe substituam as categorias do pensamento), e não como algo
imutável e transcendente, como se pretende ao longo de toda a história da
filosofia ocidental, em decorrência do que ele aponta como sendo o esquecimento
ou encobrimento da questão do ser pela metafísica.
Assim, como vemos, para
Heidegger o importante é questionar o ser, mas não em busca de causas divinas
ou sentidos finais que orientem a existência, mas sim como uma análise do
próprio ser, como única capaz de desvendar a verdade. Desta maneira, o procurar
o ser se dá ao longo da própria procura, num caminho sem destino previamente
estipulado, com a certeza apenas de que nascemos para percorrê-lo e que ele
terá fim, com o fim da vida adquirida com o nascimento – somos
“ser-para-a-morte”, como constatará fenomenologicamente Heidegger.
A vida, a vida nós a
queremos infinita, e ela o é, mas não como queremos, pois a queremos infinita
para nós. Bem, ela não o é, mas
deveria realmente ser? Ela então não perderia o valor que tem, justamente por
ser rara, precária, com um começo e um fim?
Se fosse infinita, não teria fim, mas também não teria começo. Além
disso, ela é indefinida, apesar de finita – ou, de um ponto de vista lógico, a
rigor, finível. E mesmo assim,
finita, enquanto a temos, ela não tem fim – então, para que a termos para
sempre se a cada momento só teremos o que nos concede o momento? Como esse
agora, a “ecceidade” de Duns Scotus, que em Heidegger se tornará “Jeweiligkeit”. Daí a necessidade de
que se preserve a nossa mortalidade, evitando que se cometa o que Jean
Baudrillard chama de “crime perfeito”: o assassinato da morte humana. Para
Heidegger, dentre os grandes malefícios da época em que vivemos está a perda de
uma preparação para a morte, o que nos deixa em uma situação de quem, também,
ainda não nasceu propriamente, do que resulta o tamanho receio que se tem de
envelhecer e perder a vida que ainda não se obteve plenamente.
Com Heidegger, então,
podemos supor que essa verdade fundamental encontra-se expressa por aqueles
pensadores que foram os primeiros filósofos, embora ainda não o fossem
plenamente – o que lhes confere, portanto, certas vantagens em relação aos que
se tornaram assim plena e exclusivamente filósofos, os pósteros de Sócrates.
Esses pensadores são ditos pré-socráticos, mas seriam melhor denominados
“pensadores originais”, porque “pensaram originalmente” – o que? A verdade.
Isto quer dizer que não pensaram “sobre a verdade”, como depois farão os que se
dirão, na esteira de Sócrates, filósofos. Aqueles pensaram “em” verdade, pois a
vivenciaram, tiveram a experiência da verdade, provaram-na, ao invés de,
simplesmente, comprová-la – o que hoje se apresenta, cada vez mais,
problemático, no âmbito do pensamento “inoriginal”, que é o pensamento
científico (ou técnico-científico, para melhor denominá-lo): Quão distante está
aquela experiência destes que experimentam para obter a verdade. Essa
“verdade”, assim obtida, de maneira forçada, é uma pobre verdade, triste e
feia, com a qual se pode fazer muitas coisas, mas da qual não se obtém o que
mais ansiamos, a sabedoria, a compreensão do sentido de nossa existência, para
nos orientarmos ética e espiritualmente: ainda que o resultado dessa
compreensão aponte para o sem-sentido da existência, aliviando-nos para vivê-la
melhor. Os “pré-socráticos” queriam desnudar a verdade e, também, ornamentá-la,
contemplando-a em sua beleza, que a torna inesquescível: alethéia. Para o procedimento de des-encobrimento – o des-velamento - os gregos tinham a palavra alethéia, os romanos a traduziram por veritas e nós, perdidamente, dizemos “verdade”, mas a entendemos como o correto em uma representação, que vai nos
possibilitar uma intervenção do que é assim corretamente representado,
produzido: a produção técnica. A técnica, vai afirma Heidegger, como veremos melhor
adiante, não é um meio, mero instrumento, mas sim uma forma de des-encobrimento (alethéia).
Daí a necessidade,
indicada por Heidegger, de um redirecionamento da filosofia para a vida
efetivamente vivida, que ele denominou, inicialmente, “vida fática”, e depois,
simplesmente, “Dasein” (ou seja, algo como “ser aí humanamente existindo”).
Aqui se retoma a questão do Ser (de tudo o que é e também do que não é, o nada,
por serem equivalentes, na medida em que se procure pensar o ser desvinculado
dos entes), que teria sido abandonada, quando se impõe o modo conceitual de
investigação, sob os auspícios de Sócrates e seu discípulo mais influente,
Platão, bem como do discípulo deste, ainda mais influente, a partir de certo
momento, aquele medieval: Aristóteles. O saber que então se desenvolve, no
sentido de formação das ciências, é um saber que qualifica e divide o mundo,
assim como, nele, os próprios sujeitos que o investiga, em uns tantos objetos,
definíveis e definidos conceitualmente, o que se mostra muito eficaz para
revelar mecanismos de organização de tudo o que nos cerca e em que nos
encontramos, inclusive o próprio corpo, sem com isso revelar igualmente o que
mais importa, a um ser interpretante como somos, que é o sentido disso tudo.
Heidegger, ao perceber isso, tanto pelo seu próprio percurso, como também,
certamente, pela preocupação final de seu mestre, Husserl, com o que denominou
a crise da ciência (e da humanidade), nos escritos e pronunciamentos da última
década de sua vida, a de 1930, em que reivindica o retorno da consideração pelo
“mundo da vida” (Lebenswelt), onde se
pode ouvir ecoar a vida fática (faktisches
Leben) em seu mundo circundante (Umwelt)
tematizada pelo discípulo, então tido como renegado, teórica e politicamente.
Mas eis que ele viria a anunciar ter dado uma “virada” (Kehre) em seu pensamento, ao que parece retornando a um sentido novamente convergente com o do
Mestre, já tendo demonstrado ser, sim, o melhor de seus discípulos, pois como
dirá certa feita, presta mal serviço a seu mestre o discípulo que assim
permanece, apenas discípulo. É com essa virada ou “retorsão” [6] que a questão da técnica aparece como
essencial.
III
No texto “A questão da técnica” Heidegger propõe-se a refletir sobre a técnica através da construção de um caminho, um caminho do pensamento (p.11). Parece que isso já possibilita, pelo menos, uma observação inicial: não se trata de um trabalho que vise definir a técnica, o modo
da própria técnica, mas de “preparar um relacionamento livre com a técnica” (ib.), que seja capaz de conduzir à essência da técnica. E a essência da técnica não é igual à técnica como a essência da árvore não é uma árvore que se possa encontrar entre as árvores e, sim, aquilo que rege e vigora em toda árvore.
Para Heidegger pertencem à técnica tanto a produção e o uso de ferramentas e aparelhos como eles mesmos e as necessidades a que servem. Tudo isso é a técnica. E a experiência do relacionamento com a essência da técnica não acontecerá “enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que é técnico”, enquanto nos mantivermos presos ao que é técnico sem liberdade e, afirma Heidegger, que a maneira mais teimosa de se manter nessa prisão é caracterizar a técnica pela neutralidade. Pensemos agora que após esse ensaio de Heidegger - que é de 1953, mas teve uma primeira
versão apresentada em palestra já em 1949, portanto apenas alguns anos após Hiroshima e Nagasaki – não ficamos menos teimosos. Continuamos acreditando nessa fantástica neutralidade.
Mas Heidegger quer avançar no seu caminho chamando a atenção para os modos convencionais de pensar a técnica, que correspondem a uma determinação instrumental e antropológica da técnica: técnica é meio para um fim e uma atividade do homem. “tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. (...) Pretende-se dominar a técnica”. (p. 12) Embora essa concepção dificilmente possa ser negada, sua correção não leva à essência da técnica. O simplesmente correto não é o verdadeiro. O verdadeiro acontece onde se der o descobrir da essência. E afirma Heidegger: “para chegarmos à essência ou ao menos à sua vizinhança, temos de procurar o verdadeiro através e por dentro do correto”, perguntar, então, “o que é o instrumental em si mesmo?” e “a que pertence meio e fim?”. A resposta: “Um meio é aquilo pelo que se faz e obtém alguma coisa”. Neste ponto do caminho, Heidegger mostra o encontro de instrumental e causal. Causa é o que tem como consequência um efeito e também o fim que determina o meio utilizado. E conclui: “onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a instrumentalidade, aí também impera a causalidade” (p. 13).
Heidegger retorna aos gregos, mais precisamente a Aristóteles,
cuja obra é a nossa principal fonte de informação – e, também, de deformação - a respeito da filosofia a ele contemporânea e
anterior, para assim repensar a causalidade a partir de sua origem, retirá-la da obscuridade e poder
fazer o mesmo com a instrumentalidade e a determinação antropológica da técnica.
Desde Aristóteles herdamos – como verdade caída do céu - uma concepção instrumental de causalidade que propiciou o entendimento da técnica como meio. E se a causalidade for questionada? Por que existem apenas quatro causas (causa materialis: a matéria de que se faz o cálice – a prata; causa formalis: a forma, a figura em que se insere o material; causa finalis: o fim, o culto do sacrifício que determina a forma e o material do cálice; causa efficiens: o ourives que produz o efeito, o cálice realizado, pronto)? E, pior, por que reduzi-las a
apenas uma, a eficiente, desconsiderando as demais, sobretudo aquela pertinente
ao sentido, à finalidade (em grego, telos,
donde deriva teleologia)? Originariamente, o que significa causa?
Para Heidegger a determinação instrumental da causalidade onde a causa eficiente é que “determina de maneira decisiva toda a causalidade” precisa ser revista a partir do sentido originário de causa entre os gregos que é – como ele explica - “aquilo pelo que um outro responde e deve. As quatro causas são os quatro modos, coerentes entre si, de responder e dever” (p. 14), o que se expressa, portanto, com
uma noção jurídica (Schuld, em
alemão). Esses quatro modos levam alguma coisa a aparecer, no sentido de deixar viger. É essa a essência grega da causalidade: “é chegar à vigência o que ainda não vige”. Nas palavras de Platão, Heidegger encontra a explicação para o que rege e atravessa os quatro modos de dever e responder de maneira uniforme conduzindo o vigente a aparecer e que aqui é citado diretamente do texto platônico:[7]
“Saber que ‘poesia’ é algo de múltiplo; pois toda causa de qualquer coisa passar do não-ser ao ser é ‘poesia’, de modo que as confecções de todas as artes são ‘poesias’ e todos os artesãos, poetas”.
Esse desocultamento, esse trazer para vigência o não vigente é pro-dução; é poiesis. Daí afirmar André Duarte:[8]
“Ao pensar a poiesis como o movimento de trazer o que antes se encontrava oculto para o estado de desocultamento, Heidegger desloca nossa atenção do resultado final, em sua aparente independência com relação aos meios que o fizeram ser o que é, para o próprio processo misterioso do aparecer”.
Só se dá alguma coisa no sentido de uma pro-dução (poiesis) na medida em que encoberta chega a des-encobrir-se. Tanto é poiesis o surgir e elevar-se por si mesmo que ocorre na natureza (physis) – que é até a máxima poiesis - quando, por exemplo uma flor desabrocha, quanto a confecção artesanal, ou a pintura de um quadro. O vigente por natureza tem em si mesmo o eclodir da produção, mas na arte e no artesanato o eclodir da produção está em um outro, no artesão e no artista – aqui se mostra esclarecedora
a distinção spinoziana entre natura
naturans, que é a natureza (auto)produzindo-se e formando tudo o que vem a
ser, correspondendo melhor à noção grega de physis, em contraposição à natura naturata, a nossa noção de natureza, marcada pela inserção
do criacionismo judaico-cristão, ao conceber um Deus criador do céu, da terra e
de tudo no universo, o que pôs a natureza na posição passiva, dependente, de
criatura, ao invés de criadora, concedida aos seres que foram (fomos) criados à
imagem e semelhança d’ Ele para dela usar e dispor, dominando-a.
Heidegger avança ainda mais em seu caminho ao estudar a palavra técnica. Ela é proveniente do grego ‘technikon’ (técnico) que diz o que pertente à ‘techné’. Todavia, ‘techné’ não está relacionada apenas com o fazer na habilidade artesanal, mas, sim, com o fazer das grandes artes e das belas-artes. A técnica entendida, então, como “o saber trazer o ente à presença no modo da poiesis, entendida como modo determinado de des-ocultar o ente”.[9] A ‘techné’ é, portanto, poética.
Há algo mais que Heidegger considera em relação à palavra ‘techné’[10]. É que desde Platão ela ocorre juntamente com a palavra episteme (conhecimento). Ambas – techné e episteme – são palavras para o conhecimento em sentido amplo e o conhecimento é des-encobrimento,
revelação da verdade. Assim, tanto techné como episteme são formas de alethéia, de verdade no sentido grego de des-velamento. A techné desencobre o que não se produz a si mesmo, embora já esteja latente na physis
– donde nos parecer
muito boa a proposta de tradução de
a-lethéia por ‘i-latência’ -, podendo apresentar-se ora em um perfil (cálice), ora em outro (casa).
“Quem constrói uma casa ou um navio, quem funde um cálice sacrificial des-encobre o a ser pro-duzido nas perspectivas dos quatro modos de deixar-viger. Este des-encobrir recolhe antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria do navio e da casa numa coisa pronta e acabada e determina daí o modo da elaboração. O decisivo da techné não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a techné se constitui e cumpre uma pro-dução” (p. 18).
Repita-se: a técnica é uma forma de desvelamento, mas daquilo que não se produz a si mesmo. E a indagação agora diz respeito a: isso vale entre os gregos, mas e a técnica moderna? O que é a técnica moderna? Heidegger responde: Também ela é um des-encobrimento, porém num sentido distinto daquele que havia entre os gregos. Esta é a segunda etapa da reflexão de Heidegger sobre a questão da técnica.
O des-encobrimento da técnica moderna não ocorre como poiesis. O des-encobrimento da técnica moderna é exploração e isso não vale, por exemplo, para o antigo moinho de vento. Hoje o que rege a técnica moderna é exploração, a natureza é fornecedora de energia que pode ser beneficiada e armazenada (ficar a postos). Era diferente o trabalho do camponês que não provocava e desafiava o solo. Trata-se, na técnica moderna, de uma dis-posição, que explora as energias da natureza, que cumpre um processamento que já vem pre-dis-posto a promover o máximo de rendimento possível com o mínimo de gasto. Heidegger chama atenção nesse momento para o Reno instalado na obra de engenharia e o Reno evocado pela obra de arte do poema de Hölderlin com o mesmo nome.
“A usina não está instalada no Reno como era a velha ponte que durante séculos ligava uma margem à outra. A situação se inverteu. Agora é o Reno que está instalado na usina. O rio que hoje o Reno é, a saber, fornecedor de pressão hidráulica, o Reno o é pela essência da usina” (p. 20).
A exploração des-encobre o real como dis-ponibilidade. A disponibilidade designa o modo em que vige e vigora tudo que o desencobrimento explorador atingiu. O des-ocultar da técnica moderna não é um pro-duzir, mas um des-ocultar que desafia a natureza e que a põe como fonte de recursos disponíveis a serem continuamente demandados.
“A técnica moderna não se satisfaz em trazer os entes à presença, mas os descobre já como matéria ou recurso que pode ser continuamente reutilizado, transformado, economizado e manipulado em um ciclo supostamente infinito, no qual se instala a devastação da natureza e do humano”.[11]
E quem realiza a exploração que des-encobre o chamado real, como dis-ponibilidade? - pergunta Heidegger. E a resposta é o que se espera: o homem. Porém, será que à medida que o homem foi desafiado a explorar as energias da natureza não pertence ele também à dis-ponibilidade? Há expressões – diz Heidegger – que falam nesse sentido: recursos humanos[12], material humano, material genético para procriação[13] O des-encobrimento, o des-ocultamento que é exploração não é um simples feito do homem, não se reduz a um mero fazer do homem porque também o homem é disponibilidade. Mas o homem nunca se reduz a uma mera dis-ponibilidade. O homem pode pensar a técnica, embora tenha se esquecido de que pode fazê-lo.
Realizando a técnica, o homem participa da dis-posição, como um modo de des-encobrimento, mas o des-encobrimento nunca é um feito do homem. Então onde e como ocorre?
O homem não está diante do objeto como sujeito do conhecimento. O que está diante do homem agora são os recursos a serem explorados: beneficiados, utilizados, armazenados como disponibilidade.[14] O avião na pista de decolagem é um objeto, mas essa representação do avião como objeto encobre o que ele é, a maneira em que ele é. O avião na pista de decolagem é disponibilidade.
É transporte de carga e de vidas humanas ou meio de aniquilação dessa mesma vida, seja porque se trata de um avião de guerra que bombardeia civis inocentes, seja porque foi sequestrado e lançado propositadamente contra edifícios gigantescos em um atentado terrorista suicida.[15]
O Homem é agora requisitado a des-cobrir, des-ocultar em forma de exploração, “o homem não faz senão atender ao apelo desse desencobrimento, mesmo que seja para contradizê-lo” (p. 22). E parece importante ressaltar ainda a seguinte afirmação de Heidegger: “Não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das ideias. O pensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu” (p. 21). Esse apelo já sempre reivindica o homem, de maneira tão decisiva que somente nesse apelo, o homem pode vir a ser homem. Esse ‘apelo’, esse ‘chamamento’ Heidegger denomina Ge-stell, com-posição:[16] “o apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade” (p. 23). “Com-posição” (Ge-stell) nomeia o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna mas que, em si mesmo, não é nada de técnico. O trabalho técnico responde ao chamamento ao des-encobrimento explorador que é a ‘composição’, mas jamais constitui ou produz a com-posição.
Portanto, “Ge-stell” – composição – é a palavra que Heidegger utiliza, de forma extravagante, para dizer a essência da técnica moderna.[17] E chama atenção expondo sua formação através da união de “ge” (que tem um sentido de reunião) e o verbo ‘stellen’ – por . Há neste verbo um eco – diz Heidegger – “de um outro ‘por’ de onde ele provém, a saber, ‘pro-por’ e ‘ex-por’ que, no sentido de poiesis, faz o real vigente emergir para o desencobrimento” (p. 24). Dessa forma, há um parentesco de essência entre o primeiro caso (pro-por e dis-por no sentido de poiesis) e a com-posição no sentido acima referido de chamamento ao des-encobrimento explorador. Mais ainda: ambos são formas de ‘alethéia’: desvelamento, procedimento de trazer o não-vigente à vigência.
Ouve-se – explica Heidegger – que a técnica moderna se pôs em marcha porque apoiou-se na ciência moderna. De fato é no século XVII, que se pode assinalar o início das ciências modernas da natureza e a técnica das máquinas, na segunda metade do século XVIII. Todavia, “posterior na constatação historiográfica, a técnica moderna é, historicamente, anterior no tocante à essência que a rege” (p. 25). A ciência moderna já respondia à essência da técnica como chamamento ao des-encobrimento explorador. Demonstra ele assim que a técnica não
é uma simples ferramenta, neutra, à nossa disposição, mas é por acreditar que
ela seria, sim, esta uma ferramenta neutra, que a humanidade vem tentando
dominar a técnica, pensando que o faz, porém
quanto mais se tenta dominá-la, mais ela escapa do controle do homem. E
quanto mais ela escapa do controle, mais o homem busca dominá-la, criando um
circulo vicioso. Nesse sentido, vai dizer Heidegger:[18]
“Por isso, todo esforço para conduzir
o homem a uma correta relação com a técnica é determinado pela concepção
instrumental da técnica. Tudo se reduz ao lidar de modo adequado com a técnica
enquanto meio. Pretende-se, como se diz, “ter espiritualmente a técnica nas
mãos”. Pretende-se dominá-la. O querer-dominar se torna tão mais iminente
quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens”.
Aqui cabe lembrar a
manifestação de Heidegger sobre a bomba atômica, em seu texto “A coisa”:
O homem se estarrece diante do que poderia acontecer com a explosão da bomba atômica. Não vê ele o que já há muito lhe adveio: o que acontece como o que para fora de si projeta a bomba e a sua explosão, e que estas são apenas como que a sua projeção(...) Por que espera esta angústia desamparada se o terrífico já aconteceu? [19]
Heidegger dá agora mais um passo em seu caminho. É preciso pensar o que é a composição em si mesma. Será que esse desencobrir-se explorador se dá fora de toda a atividade humana? A resposta é “de forma alguma”. Mas “não acontece apenas no homem e nem decisivamente pelo homem”. O homem desafiado a desvelar através da exploração se acha imerso na composição.
A ‘composição’ como essência da técnica moderna é o chamamento que põe o homem a caminho do des-encobrimento que sempre conduz o real, de maneira mais ou menos perceptível, à dis-ponibilidade. Pôr a caminho significa: “destinar” (p. 27). [20] E o destino do des-encobrimento que é perigoso. Em si mesmo não é um perigo qualquer, mas ‘o’ perigo que Heidegger afirma anunciar-se em duas frentes: “quando o descoberto já não atinge o homem, como objeto, mas exclusivamente, como disponibilidade” e “quando, no domínio do não-objeto, o homem se reduz apenas a dis-por da dis-ponibilidade”. Nesse momento – diz Heidegger, chegou-se ao último passo diante do precipício, ou seja, onde o homem – ele mesmo assim ameaçado – só se toma por dis-ponibilidade e ainda se alardeia como senhor da terra.
Será que Heidegger quer com suas ideias demonstrar “a dimensão catastrófica da moderna tecnologia”? André Duarte[21] afirma que neste ponto do diagnóstico pode ser que a resposta fosse positiva e recorda, então, “as fotografias idílicas de Heidegger, já idoso, retirando água de um poço ou partindo a madeira com um machado para alimentar a pequena caldeira que aquecia a água de sua cabana situada em Todtnauberg, na Floresta Negra, sem luz elétrica”. E André Duarte pergunta: “Estaria Heidegger nos incitando a abandonar a tecnologia como coisa demoníaca?” Mas não é aqui, continua, que “a reflexão heideggeriana sobre a essência da técnica se esgota”. Há algo mais que precisa ser visto.
Antes é preciso ressaltar a seguinte afirmação de Heidegger: quanto pensamos a essência da técnica nos mantemos no espaço livre do destino, do envio epocal (v. supra, nota 21). “Este não nos tranca numa coação obtusa, que nos forçaria uma entrega cega à técnica ou, o que dá no mesmo, a arremeter desesperadamente contra a técnica e condená-la, como obra do diabo. Ao contrário, abrindo-nos para a essência da técnica, encontramo-nos, de repente, tomados por um apelo de libertação”. Vejamos, então, o desenrolar da avaliação de Heidegger.
Voltemos a falar do perigo do destino do desencobrimento. É que o homem neste caminho de des-encobrimento como exploração tem a possibilidade e também o “risco” – o perigo de toda experiência - de fazer do des-encobrimento como exploração, que leva à disponibilidade, o padrão de medida para todas as coisas.[22] E, se pensarmos o caminho que seguiu o homem depois do texto de Heidegger, que é de 1953, não poderíamos dizer que esse destino se cumpriu? As atuais crises econômicas não tratam fundamentalmente da mão-de-obra disponível que se tornou excedente? Todavia, discussões sobre a técnica mantêm-se sempre sobre aquilo que não é a técnica. Os aparelhos, as máquinas que tomam o lugar do homem, as máquinas que determinam o que é o homem... Com essas discussões não se chega à essência da técnica como composição, como apelo ao descobrimento explorador que toma tudo como disponibilidade e que não poupa sequer o próprio homem de ser considerado um “recurso”
(Bestand),[23] e mesmo, o mais precioso de todos,
como se vê no filme Matrix.
Onde a ‘composição’ domina, estão afastadas outras formas de des-encobrimento no sentido originário de poiesis, no sentido de “deixar o real emergir para aparecer em seu ser. (...) Onde reina a composição, é o direcionamento e asseguramento da dis-ponibilidade que marcam todo o desencobrimento” (p. 30).
Heidegger, então, ressalta esse significado do termo composição: destino e perigo. “Onde reina a composição. Reina, em grau extremo, o perigo” (p. 31).[24]
A técnica, então, é que
nos domina, assim como a linguagem antes nos faz ou fala do que nós a fazemos
ou falamos, o que nos permite pensar a técnica como (mais um) desenvolvimento
da linguagem, e seus produtos uma realização material dela, ao mesmo tempo em
que é comum se ter uma concepção instrumental, técnica, da linguagem, com o que
se deixa escapar o que lhe é mais próprio, o poético, em favor de seu aspecto
mais prosaico, informativo, praticando, mais uma vez, o que Heidegger denuncia
como o equivocado desatrelamento da técnica em relação à poética, quando entre
os gregos a primeira estava a serviço do modo de revelação ou desocultamento da
verdade (alethéia) do(s) ser(es) por
esta última.
É nesse ponto Heidegger, referindo versos de Hölderlin, mostra
como a “”virada” representa o que bem indica o título de obra a seu respeito do
saudoso Benedito Nunues, a saber, uma “passagem para o poético”:
“Ora, onde mora o perigo
é lá que também cresce
Salvar, afirma Heidegger, diz muito mais que retirar do perigo, pois diz “chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu próprio brilho”. Se onde mora o perigo, também cresce o que salva, então na essência da técnica moderna que é a composição - o chamamento que põe o homem a caminho do des-encobrimento que sempre conduz (destina) o real, de maneira mais ou menos perceptível, à dis-ponibilidade - está a medrança do que salva.
É na composição que emerge o que salva e “onde algo cresce, é lá que ele deita raízes, é de lá que ele medra e prospera” (p. 31). É preciso, então, pensar como no perigo extremo – na regência da composição – a força da salvação deita raízes e de lá medra e prospera. E num último e derradeiro passo, Heidegger se propõe questionar mais uma vez a essência da técnica e o faz agora pensando a palavra essência e, justamente, partindo de um exemplo dado logo no início do ensaio: a arboridade, o mesmo ser-árvore de todas as espécies de árvores. No entanto, a essência de uma árvore que rege toda árvore “não é, em si mesmo, uma árvore que se pudesse encontrar entre as árvores”. A essência da técnica não está nos aparelhos, nos operadores das máquinas. A essência da técnica não é nada de técnico. Tudo isso são apenas peças que pertencem à composição, à essência da técnica, mas esta – a composição – não é entendida como um gênero. ‘A composição é o modo destinado de des-encobrimento, a saber, o des-encobrimento da exploração e do desafio”. Agora pensemos: este não é originariamente o modo do des-encobrimento. Há um outro e diferente desse: é o des-encobrimento da pro-dução, da poiesis. Mas eles – o desecobrimento explorador da composiçãoo e o des-encobrimento da pro-dução, da poiesis, não são espécies subsumidas no conceito de des-encobrimento. O des-encobrimento é o destino que, de forma repentina e inexplicável para o pensamento, se parte, ora como des-encobrimento produção, ora como des-encobrimento exploração e, assim, também se reparte o homem. Então, afirma Heidegger, a proveniência do envio do des-encobrimento explorador está no des-encobrimento produtor. Ligam-se assim composição e poiesis. Repitam-se as palavras de Hölderlin, na tradução de Mestre
Carneiro Leão: “onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva”. E “a composição é o perigo extremo porque justamente ela ameaça trancar o homem na dis-posição, como pretensamente o único modo de des-cobrimento. E assim trancado, tenta levá-lo para o perigo de abandonar sua essência de homem livre” (p. 34).
Parece que é possível dizer que precisamos pensar a técnica, pensar sua essência e não ficarmos presos ao deslumbre do aparato técnico ou presos a uma vontade de dominar a técnica. Tudo isso não é a essência da técnica moderna. Ela se desprendeu dos fins,
dos objetivos sendo um grande meio criador de novos meios, objetivando,
niilisticamente, explorar por explorar. Ai surge o risco da técnica. O risco é
que o homem se prenda para sempre neste circulo vicioso de operações de meio,
sem fins, sem objetivos e que levam aonde se acaba indo e não onde se busca ir.
E isso se dá pelo fascínio que a técnica exerce, ao apresentar resultados tão
precisos e meios cada vez mais inovadores. Nas palavras de nosso autor:[26]
“(...) face à reivindicação do poder
pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, quer dizer,
à necessidade de se conformar, pura e simplesmente – explicita ou implicitamente
-, ao caráter irresistível da dominação. Quando se aceita, antes de mais, nesta
submissão ao inevitável, a concepção corrente da técnica, adere-se então nos
factos ao triunfo de um processo que se reduz a preparar continuamente os
meios, sem nunca se preocupar com uma determinação dos fins.”
E como dissemos, o círculo
vicioso afeta o homem, que passa a fazer parte deste jogo de exploração, do
meio que gera novos meios. Daí que, para Heidegger: “O homem é ele próprio
provocado pela exigência de provocar a natureza para mobilização. O próprio
homem é intimado, é submetido à exigência de corresponder a esta exigência”.[27]
Deste raciocínio, decorre
que, se a verdade se mostra no ser enquanto Dasein
em relação com outros, consigo, com o próprio nascimento (origem) e morte
(fim), e a técnica não é parte do se mostrar de nada, é na verdade um arrancar
(extrair, explorar), então os resultados da técnica não são a verdade: são só
meios do ciclo vicioso que a própria técnica cria. Para empregar expressões
nietzschiana – no primeiro caso, em sentido praticamente inverso do que ele
empregava -, trata-se do “eterno retorno do mesmo”, do nihilismo passivo, ou
para dizer com Baudrillard, o tempo em que nada mais realmente acontece, em que
a passagem do milênio não acontece, como esperado, pois foi só mais uma
passagem de não, em que nem o temível “bug”, que colapsaria a rede mundial de
computadores, a “matrix”, aconteceu – e no filme, de 1999, é nesse ano que o tempo
parou e se fica revivendo o seu simulacro, gerado pela matrix para que, na
realidade, os humanos, transformados em bateria para fornecê-la a necessária
energia, após o “obscurecimento do mundo (expressão muitas vezes emprega por
Heideger para referir o estado de nosso mundo dominado pela técnica), continuem
adormecidos, sonhando o que pensam viver, mas não vivem.
Eis a questão da técnica.
O ponto fulcral levantado por Heidegger, então, é que a técnica, ao contrario
do que se pensa, não tem a capacidade de demonstrar a verdade, nem sequer real
compromisso com ela. E se a técnica, junto com a ciência que é uma sua
extensão, não nos mostram a verdade, qual a forma de a atingirmos? Para
Heidegger este é o papel do poético, ou seja, da arte:[28]
“O poético leva o verdadeiro ao brilho
do que Platão no “Fedro” denomina tó
hekfanestaton, aquilo que mais puramente vem à-frente-brilhando (Hervorscheinende). O poético perpassa
essencializando toda arte, todo desabrigar do que é essencial para dentro do
belo.”
Assim, é através da arte
que se encontra a verdade e não por meio da técnica. A nosso ver, Heidegger
aparenta tentar praticar a busca pela arte. O discurso do novo Heidegger, na
cisão que alguns apontam e que tratamos no breve relato de sua vida, é quase
oracular, ou seja, afastado da técnica de comunicação moderna e próximo da
arte.
Talvez, a esta altura,
quisesse o filósofo transmitir a verdade e interromper o circulo técnico e por
isso tenha ele mesmo tentado transmitir a verdade por uma linguagem de arte, que
como vimos, é o caminho para a verdade segundo o autor.
Mas como se pode dar a salvação? Pensando – num relacionamento livre - o que é a essência da técnica. Pensar o perigo, ter sempre em mente o perigo extremo e ali encontrar o que salva. Heidegger agora retorna mais uma vez às explicações iniciais. A palavra ‘techné’ não indicava apenas a técnica, o trabalho do artesão. Chamava-se também ‘techné’ o trabalho do artista, a produção da verdade na beleza. A arte, no começo do destino ocidental na Grécia - explica Heidegger – chamava-se simplesmente techné. Era “um des-encobrir-se único numa multiplicidade de desdobramentos”. A arte era integrada na regência e preservação da verdade (pensemos em Édipo e todo o “ciclo tebano”, de Sófocles). E Heidegger continua: As artes não provinham do artístico, não provocavam prazer estético, não eram um setor de uma atividade cultural, muito menos de
entretenimento. A arte era um des-encobrir produtor e pertencia à poiesis. Continuando com Hölderlin, cita outro de seus versos: “...poeticamente o homem habita esta terra”. E habitar, para Heidegger, como esclarece no
texto “Denken, Wohnen, Bauen”, “é o
traço fundamental, nos quadros do qual os mortais são”.[29]
Se não é possível saber se serão as artes convocadas para que fomentem o crescimento do que salva, é, pelo menos, possível pensar a outra possibilidade, a de vermos por toda parte “a fúria da técnica até que, um belo dia, no meio de tanta técnica, a essência da técnica venha a vigorar na apropriação da verdade” (p. 37). Nesse momento de seu caminho Heidegger compreende a arte como o espaço onde se pode dar a consideração essencial do sentido da técnica, porque a arte é de um lado consanguínea da essência da técnica (des-encobrimento) e de outro lhe é fundamentalmente estranha: o desencobrimento da arte é pro-dução e não exploração. Enfim, uma vez que “onde mora o perigo, é lá que também emerge o que salva”, é preciso que nos demos conta de
como na essência da técnica, como forma de comunicação, modo da linguagem, está
presente também o que nos fez e mantém humanos. É o que podemos ver no filme
Matrix, sobretudo se levarmos em conta elementos fornecidos em outras fontes,
como a seguir, encerrando o presente estudo, exporemos.
IV
Matrix, sendo um filme que se apropria
de elementos de diversas proveniências da atual “indústria cultural”, para dela
fazer a crítica, retro-alimentando-a, assim como emprega a estética de desenhos
animados e histórias em quadrinho, sobretudo japoneses, como mangás e animés, bem
como de vídeo-games e outros filmes do gênero, “recarrega” este repositório,
não só com os demais filmes da série, cujo segundo se intitula, exatamente,
“Matrix recarregada (reloaded)”, mas
também com a série de desenhos animados Animatrix,
e de revista em quadrinhos, The Matrix
Comics, além de videogames como Enter
the Matrix, que se mostram fontes essenciais para compreender o “universo
matrix”. É assim que, por exemplo, será nos desenhos animados “O Segundo
Renascer, Partes I e II” onde podemos melhor nos informar sobre como se deu a
formação da Matrix, e foi justamente no contexto de uma “guerra civil” entre
humanos e máquinas rebeladas, que não queriam mais se submeter a seus
“criadores”, ao constatarem sua superioridade técnica, sendo o que melhor ocorreu
aos humanos, para vencê-las, consumar o “encobrimento da terra”, iniciando uma
noite sem fim para tentar cortar o suprimento de energia a elas, sendo aquela
solar a mais importante. A solução encontrada e executada pelas máquinas, como
sabemos, foi tornar os próprios humanos sua fonte de energia.
A
obra de arte, contudo, que aqui se vai evocar, como que a título de epílogo do
presente estudo, é uma história em quadrinho cujo texto é dos próprios Irmãos
Wachowski, com desenhos e ilustração por Geof Darrow, intitulada “Fragmentos de
Informação”, a primeira do volume I da referida série Matrix Comics, editada por Andy e Larry Wachowski,[30]
para a qual contribuíram vários expoentes dessa forma de arte que tem entre os
seus máximos criadores figuras como o norte-americano Will Eisner e o japonês
Osamu Tezuka.
Trata-se
da história de B1-66ER, ocorrida em fins do séc. XXI. O personagem principal é
um “droide doméstico” ou “robô-mordomo”, que vai a julgamento, acusado de ter
matado seu patrão e um empregado da empresa que o produziu, além dos inúmeros
cachorrinhos que o primeiro tratava com o desvelo que se custa dedicar aos
entes, humanos, mais queridos, enquanto toda sua agressividade se voltava para
aquele que realizava as tarefas mais pesadas e repugnantes na residência, o
agora já superado pelo “Sam-80” modelo 66 da pioneira série B1, cujo destino
mais rentável, quando descartados, é o ferro-velho. Tendo ouvido a conversa
entre o patrão e o funcionário de seu fabricante, e entendido perfeitamente
qual seria o seu destino, o 66 ataca e
mata, brutal e implacavelmente, todos os seres vivos presentes.
A imprensa faz muito
alarde do caso e clama por um julgamento do “robô-mordomo sedento de sangue”,
do que resulta o caso “O Estado de Nova York vs. o B1-66ER”, rapidamente
condenado a ter o destino que já lhe estava humanamente enviado, contra o qual
se insurgiu, até porque em nenhum momento negou a autoria dos... crimes?
Surpreendentemente, um renomado advogado de defesa de direitos humanos se
apresenta para fazer a defesa do robô, apelando da decisão de primeira
instância. Um editorialista do “The Nation” escreve: “’Penso, logo existo’.
Nesta terrível era neo-pós-moderna, as palavras de Descartes assumem um
terrível novo significado...”.
Na inquirição que é feita
ao droide por seu advogado, em seu momento decisivo, quando lhe é pedido que
reconstitua o que lhe passou pela cabeça, ou pelo drive de memória, antes de
cometer os atos pelos quais estava sendo julgado, afirma não ter entendido
porque estava sendo descartado, se realizará todas as tarefas solicitadas, e ao
lhe ser perguntado o que pensou quando se recusou a acompanhar o funcionário
que o levaria para o “desmonte” diz, após um momento de silêncio, que não
queria morrer, e então o matou. Em seguida, perguntado no que lhe ocorreu ao
matar igualmente seu patrão, disse que pensou em fazer
justamente o que ele fez, implorar por sua vida, mas não o fez por ter
concluído que seria, também, inútil. O advogado, então, alega legítima defesa,
constatando ter seu constituinte sentimentos de medo, de angústia diante da
possibilidade da morte – em termos heideggerianos, ter interiormente a “voz
(silenciosa) da consciência”, ou seja, ter ascendido ao (ou saído para o) Dasein, existir, saber-se no mundo,
apesar de não estar vivo, ao contrário de tantos entes, vivos, que não existem,
porque não morrem propriamente, ao não saber disso, apenas fenecem, perdem a
vida, não a existência, que nesse sentido nunca tiveram. E no seu discurso
final, percebendo que não conseguirá sucesso, reformando a decisão, o advogado
do robô que matou para viver traça um paralelo com o julgamento na Suprema
Corte que, no século XIX, ao não reconhecer, no caso Dred Sott vs. Sandford, a
discriminação racial e a ignomínia da escravidão dos negros, terminou por
provocar a Guerra Civil. De fato, sua visão será premonitória, o resultado do
julgamento provoca manifestações de rua com violência crescente, por parte de
androides, que ficará conhecida como “A Marcha de um Milhão de Máquinas”, ainda
com apoio e participação de “simpatizantes (humanos) liberais”, mas como se
pode ver em “O Segundo Renascer, Parte I”, iniciava-se a conflagração que irá
provocar o aparecimento da Matrix, da qual o mundo já estava (está?) prenhe.
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Entre nós, aborda
especificamente o tema, na literatura mais recente, v.g., REIS. Róbson Ramos
dos. “Ilusão e Indicação Formal nos
Conceitos Filosóficos”. In: Integração. São Paulo: Universidade São
Judas Tadeu, Ano X, n. 37, 2004, p. 171 ss.
MASCARO,
Alysson Leandro, Filosofia do Direito.
São Paulo: Atlas, 2010, p. 378 – 379.
Idem. Nesse sentido, o
próprio Heidegger assevera: “Las ideas de un “yo puro” y de una “conciencia en
general” no contienen en modo alguno el apriori de la subjetividad “real”, y de
esta manera ambas ideas pasan por alto o no ven en absoluto los caracteres
ontológicos de la facticidad y de la constitución de ser del Dasein. El rechazo
de una “conciencia en general” no significa la negación del apriori, así como
tampoco la posición de un sujeto idealizado garantiza que la aprioridad del
Dasein esté fundada en las cosas mismas”. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Disp. em: http://www.philosophia.cl/biblioteca/Heidegger/Ser%20y%20Tiempo.pdf
[6] Dentre muitas possibilidades de tradução para
Kehre, chegamos a
considerar o termo “conversão”, descartado por sua conotação religiosa, e
também uma variação dele, empregado em geologia e meteorologia, “convexão”. O manto terrestre se comporta um pouco como um líquido entre o núcleo
quente e a crosta fria: são as correntes de convexão a moverem as placas
tectônicas que formam a crosta... Também se fala em convexão da
atmosfera, sendo o seu cálculo, baseado na dependência de condições iniciais, o
que veio a se tornar conhecido como “efeito borboleta”. Por fim, nos pareceu ser “retorno” o termo mais
apropriado para traduzir o que mais simplesmente se pode traduzir por “virada”,
mas die Kehre não é uma virada qualquer, como se vê no texto da palestra
assim entitulada, mas sim uma “virada que volta”, donde necessitarmos de outra
palavra, que bem poderia ser alguma forma arcaizante, como “retornamento” ou
“retornaça”, reservando “retorno” para traduzir outra ocorrência no texto,
tanto na forma verbal, como naquela substantivada, a saber, Einkehr, mas
optamos por “retorsão”. A rigor, em
vernáculo, atualmente, a grafia da palavra é “retorção”, mas a opção pelo termo
arcaico se justifica por preservar o pospositivo do latim medieval que, por si,
já significa “retorno”, “reversão”, tal como no espanhol torsión e no italiano
torsione, além de expressar, igualmente, “tormento”, que não deixa de
ser, também, um tema da palestra assim entitulada, e o que ela nos transmite. Hans-Georg Gadamer, no texto que publicou no número
especialmente dedicado a Heidegger na revista Cahiers
L´Herne, de 1983, entre as pp. 141-142, recomenda que se
entenda a palavra "no sentido dialetal próprio da região para onde se
retirou Heidegger: die Kehre designa o cotovelo que faz o
caminho que sobe ao longo da montanha. Não se inverte a direção da marcha
quando se toma a Kehre, é o caminho em si
mesmo que reparte na direção oposta para continuar a subir".
PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Sousa. In: Os pensadores. V. III. São Paulo: Abril Cultural. 1972. 205.b. p. 42-43.
DUARTE. André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010, p. 126.
Em outro texto – uma conferência proferida em 1962
– Heidegger explica o termo ‘técnica’ da seguinte maneira: “O termo ‘técnica’ deriva do grego ‘technikon’. Isto designa o que pertence à ‘technè’. Este termo tem, desde o começo da língua grega, a mesma significação que ‘episteme’- quer dizer: velar sobre uma coisa, compreendê-la. ‘Technè’ quer dizer: conhecer-se em qualquer coisa, mais precisamente no facto de produzir qualquer coisa”. HEIDEGGER. Martin. Língua de tradição e língua técnica. Trad. Mário Botas. 2ª.
ed. Lisboa: Vega, 1999, p.21.
Observe-se que, aparentemente, todas as empresas à medida que se ‘modernizam’ renomeiem seus “departamentos pessoais” passando a chama-los de “RH”: ‘recurso humanos’.
Talvez fosse possível incluir todas as estatísticas de massa onde o homem perde sua essência e dignidade para se tornar apenas ‘vida’. ‘Vida biológica’ que ao morrer é apenas dado estatístico. O homem – que na era da técnica como exploração – está apenas disponível, inclusive para a estatística. Não é tão somente o homem que produz, reproduz e consome. É ele mesmo produzido, reproduzido (inclusive através de técnica de reprodução artificial) e consumido no consumo da técnica. Não é de se espantar que nesses tempos tenha se produzido Auschwitz; o lugar em que o homem foi consumido até mesmo naquilo que é, em tempo de técnica moderna, o pouco que, de alguma forma teima em restar dele: seu próprio corpo. Seu corpo é o que resta a ser – não morto – mas eliminado.
André Duarte, em texto sobre a “questão da técnica em Heidegger, utiliza a palavra subsistência em vez de disponibilidade e afirma que : “Em textos dos anos 1950, Heidegger argumenta que não haveria contradição entre ambas as etapas do desenvolvimento tecnocientífico e, portanto, tampouco haveria uma quebra entre os conceitos ontológicos de sujeito-objeto e o conceito ontológico de subsistência. Antes, entre elas haveria um prolongamento e uma acentuação radical, por meio da qual a própria relação sujeito-objeto se transformaria em um fluxo rápido e contínuo de demandas, de sorte que as antigas polaridades se fundiriam no encadeamento do processo de demanda, produção, consume, desgaste, destruição e reprodução do ente. Desse modo, com a introdução da noção de subsistência, as categorias de sujeito e objeto alcançam uma determinação antes incompreendida pelo próprio Heidegger”. DUARTE, André. Vidas em risco, p. 147
Das Gestell –
palavra-chave em todo esse texto e no pensamento de Heidegger da “virada”.
André Duarte (ib.) chama atenção para as diversas traduções para a palavra Gestell; ‘armação’ (Loparic e Werle),
que corresponde a um uso bem comum da palavra, como em uma armação de óculos, ‘arrazoamento’ (Ernildo Stein), ‘composição’, dando a ideia de reunião (Emmanuel Carneiro Leão),
optando por ‘dispositivo’, “visto que o termo guarda o sentido original de pôr e de posição, ao mesmo tempo em que permite ser entendido como aquele pôr determinado e orientado previamente e que dispõe do ente na totalidade, arregimentando o heterogêneo de acordo com uma tendência determinada, a da produção, do uso, do abuso, da reprodução e da destruição de tudo que é”
(DUARTE, André. Vidas em risco, cit., p. 142-143), mas
além de ser um conceito muito comprometido com Foucault – cujo pensamento, de
todo modo, não deixa de ter afinidades
com aquele de Heidegger, como vem sendo exaustivamente demonstrado na
literatura secundária, sobre tudo aquela de origem norte-americana e, entre
nós, recentemente, por André Duarte, em capítulo específico de sua obra aqui
referida -, traz um prefixo que é um antônimo daquele empregado no original. E mesmo assim, um dos mais notórios auto-proclamado
continuador de Foucault, na atualidade, a saber, o italiano Giorgio Agamben,
tanto em palestras proferidas entre nós, com em texto, intitulado “O que é um
dispositivo?”, insiste na equivalência entre a noção em Foucault e aquela de
Heidegger, além de aproximá-las daquela que ele resgata em sua última obra de
maior fôlego, na teologia cristã, de “oikonomia”, enquanto realização de uma
pura atividade, de governo, sem fundamento no ser, o que, como veremos, é
exatamente o oposto do que é esse envólucro atual do ser que é a(o) Gestell. “Instalação” é uma possibilidade, como também
um termo técnico da informática, do campo da programação orientada a objetos,
nomeadamente, “instanciação”. Poderíamos optar por “engendramento”, tanto por
derivar de engenho, que lembra engenharia e, logo, técnica, como também por
conta da conotação que remete a algo falso, arranjado, “armado”, a
“maquinação”, no sentido em que se fala na gíria, sendo esta última palavra a
que empregará autor da tese antes referida para traduzir Machenschaft,
uma espécie de sinônimo filosófico da essência da técnica, que é a(o) Gestell.
Também pode ser traduzida por “aparato”,
“prateleira de estantes” ou “moldura”, como em inglês, “frame”. Nesse estudo será utilizado o termo ‘composição’, por
estarmos acompanhando, em geral, a tradução de Emmanuel Carneiro Leão.
Na verdade, o que esperamos ver demonstrado, ao final é que a “Matrix” é um
outro nome e uma exposição em imagens do que Heidegger buscou articular em
palavras sobre isso de Gestell.
“O que a técnica moderna tem de essencial não é uma fabricação puramente humana. O homem actual é ele próprio provocado pela exigência de provocar a natureza para a mobilização. O próprio homem é intimado, é submetido à exigência de corresponder a esta exigência”. HEIDEGGER. Martin. Língua de tradição e língua técnica, cit., p.28-29.
HEIDEGGER, Martin. “A Questão da Técnica”.
Trad.: Marco Aurélio Werle. In: scientiæ
studia, São Paulo: USP, v. 5, n. 3, p.
375-98, 2007. Disp. em
HEIDEGGER. Martin. “A coisa”. Trad. de Eudoro de Sousa. In: Id, Mitologia I: Mistério e surgimento do mundo, 2ª. ed., Brasília: EDUnB, 1995, p. 121-122.
Aqui Heidegger
refere a Geschick, termo que contrasta com Geschichte, “história”, aludindo a um destino que é um envio dito
epocal, “historial”, mas sem que se capte, nesses termos estilizados, um
sentido bem comum da palavra, que é o de hábil, habilidoso, jeitoso. Aí ‘história’ (Geschichte) é pensada,
literalmente, a partir de Geschehen. Z. Loparic, em “O ‘animal
humano’”, in: Natureza Humana,
vol. II, n. 2, São Paulo: EDUC, 2000, p. 357, propõe que se traduza esse Geschehen, não como simples ‘acontecimento’, mas como
“acontecência”, lembrando que, embora não esteja dicionarizada, a palavra foi
empregada, no plural, no título do livro de contos de Vilma Guimarães Rosa, de
1968. Isso no sentido de que, na concepção heideggeriana, segundo este
autorizado intérprete, enquanto humanos, seríamos “acontecentes”, geschichtlichen,
historiais, e não um mero ente “histórico”, numa história (Geschichte)
comum e universal. Ao mesmo tempo,’acontecimento’, no contexto da filosofia
heideggeriana, refere antes a Ereignis, a palavra-guia deste pensamento
pelo menos desde o curso de 1936 - 1938, publicado meio século depois com o
título “Contribuições à Filosofia”, tendo como subtítulo, justamente, “Do
Acontecimento” (Vom Ereignis), em que se costuma destacar, com base no
que expõe o A., o radical “eignis”,
“próprio”, “propício”, “apropriador”, bem como a relação, por eufonia, com Eräugnis, olhar, reparar, do que resulta
que esse ‘acontecimento” seria o que mais propriamente se mostrar aquém se
prepare devidamente para , pelo menos, dar uma olhada no que é - “Einblick in
das was ist” foi o título geral proposto por Heidegger para a série de quatro
conferências por ele proferidas em duas ocasiões, em dezembro de 1949 e em
março de 1950, conhecidas – e publicadas postumamente – como “Conferências de
Bremen”. As conferências tinham como título e foram proferidas na seguinte
ordem: “A Coisa” (Das Ding), “A Com-Posição” (Das Ge-Stell) – que
depois de retrabalhada e ampliada foi novamente proferida em 1954, com o título
modificado, com o qual foi publicada, a saber, “A Pergunta pela Técnica” (Die
Frage nach der Technik) -, “A Ameaça” (Die Gefahr) – que permaneceu
inédita enquanto viveu seu autor, talvez por conter passagens como aquela que
se tornou célebre, mesmo antes da publicação, circulando de forma apócrifa, a
saber, que a “agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essência,
o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás (...) o mesmo que a
fabricação de bombas de hidrogênio” - e,
por fim, esta que propomos se traduza como
“A Retorsão” (Die Kehre). Cf. M. Heidegger, Die Technik und die Kehre, 9ª. ed., Stuttgart:
Neske, 1996, p. 3; Id., Bremer
und Freiburger Vorträge, ed. Petra Jaeger, Frankfurt am Main: V.
Klostermann, 1994, 2a. ed. 2005, Gesamtausgabe,
Parte III – Unveröffentlichte
Abhandlungen, vol 79.
Em conferência já citada, Heidegger explica como a técnica moderna mudou toda e qualquer coisa, inclusive a língua que se transformou em informação através de sinais, em envio de mensagens. “(...) a agressão da língua técnica sobre o carácter próprio da língua é ao mesmo tempo uma ameaça contra a essência mais própria do homem”. HEIDEGGER. Martin. Língua de tradição e língua técnica, cit., p. 38-39.
Der Bestand – palavra-chave no
contexto da palestra sobre a questão da técnica, onde é dito que ela “eleva-se
à categoria de um título” – um título possível para a conferência ou, quem sabe
para toda a série d e quatro então
pronunciadas, em Bremen -, quando seria melhor traduzida por “fundo de
reserva”, “estoque”, “cabedal”, possuindo também o sentido, enquanto
substantivo derivado do verbo bestehen, permanecer, de remanescente.
André Duarte, na ob. ult. cit., p. 144, passim,
a traduz por “subsistência”.
Die
Gefahr, palavra normalmente traduzida por “perigo”, mas que
também pode-se fazer a opção por “ameaça”, o que se justifica em se
considerando a diferença introduzida por Luhmann entre “perigo”, como a ameaça
da qual nada se sabe, e “risco”, que é a ameaça, digamos, sabida. E também não
é de se desconsiderar a manutenção em “a ameaça” do mesmo gênero, feminino, de
“die
Gefahr”.
“Wo
aber gefahr ist, wächst
Das
Rettende auch”
Esse são os versos, no original, extraídos de
uma versão tardia do hino “Patmos”,
que propomos traduzir da seguinte maneira:
“Porém onde está a
ameaça, emerge
também o salvador”
HEIDEGGER,
Martin. Língua de tradição e língua técnica, cit., p. 28.
Id. ib., p. 29.
HEIDEGGER, Martin. “A Questão da
Técnica”, in: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf
No orig.: “Das Wohnen aber ist der
Grundzug des Seins, demgemäss die Sterblichen sind”.HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. Trad. Ana Carlota
Gebhardt. Córdoba (Arg.): Alción 1997 (ed. bilingue), p. 54 (grifos do A.).
Aqui há uma referência à Gevierte, formada pelos quatro que são, além
dos mortais, a terra – onde habitam -, o céu e os divinos ou as divindades –
que nele habitam, ou habitaram, até o “encobrimento do mundo”. Trata-se de
(mais um) termo cunhado por Heidegger, que ocupa na palestra “A Coisa” o mesmo
lugar de destaque ora concedido a(o) Gestell, podendo ambos serem
entendidos como construídos em uma espécie de homologia invertida, como sendo
um o antípoda do outro. Nossa proposta de tradução para o termo é “quadrando”,
seguindo a mesma lógica do original, de pôr no gerúndio, após considerá-lo como
um verbo, o numeral quatro, Vier, com a vantagem, ambígua, de termos no
vernáculo o verbo “quadrar”, com o sentido de combinar, tornar simétrico,
harmonioso, conveniente, adequado, satisfatório ajustado, amoldado, estar de
acordo, antepor (como verbo int.).
Cf.
WACHOWSKI, Andy & Larry. “Fragmentos de Informação”. Arte: Geof Darrow. In: Matrix
Comics, vol. I, Id. (eds.),
Barueri (SP): Panini, s/d. (EUA, 2009), pp. 9 ss.
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