A Ameaça
Política da Autopoiese do Direito na Sociedade Mundial.
Willis
S. Guerra Filho
Professor
Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Livre-docente em Filosofia do Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universität
Bielefeld. Doutor e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP -, onde coordena o Núcleo de
Pesquisa em Direitos Humanos, e também do Curso de Mestrado em Direito da
Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro – UCAM. Pesquisador da
Universidade Paulista (UNIP).
Para investigar as bases biológicas
do conhecimento, segundo o neurofisiólogo mineiro Nelson Vaz,[1] na
esteira de Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e outros,
precisa-se incrementar o estudo de uma dimensão intermediária entre a
fisiologia e a filogênese. No caso da primeira, se tem um estudo em nível
celular e molecular, numa escala temporal extremamente rápida, variando de
milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias, na cicatrização,
passando por algumas horas, na digestão. Já os fenômenos da filogênese são
medidos em milhões ou centenas de milhões de anos, como a "explosão"
de vida do Período Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos,
metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre os Períodos
Permiano e Triássico. Entre esse dois extremos, muito lentos e muito rápidos,
encontra-se o nível que agora precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso
nível ou escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se tem os
fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a começar pela constituição do
zigoto, passando pelo desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a
reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o avanço
científico em biologia, especialmente em
genética, vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes, como os
mamíferos e os insetos, compartilham muitos mecanismos morfogênicos na formação
do embrião, valendo-se, muitas vezes, de células muito similares, sem falar na
similitude genética entre seres tão diversos como seres humanos e ratos: se
antes nos espantávamos e maravilhávamos com a aparente diversidade da vida,
hoje é a sua uniformidade em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim,
somos levados novamente à disposição que motivou os primeiros filósofos, bem como
impulsionados a pensar sobre o que já se encontra desde a origem escondido no
interior do código genético, e se revela em toda sua diversidade no contato com
o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente, enquanto puder.
Há, então, necessidade de que se
pratique de forma tão intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que
exige, então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva integradora
em epistemologia, capaz de articular explicações de natureza sociológica,
econômica, jurídica, biológica, filosófica e, até, teológica. Um paradigma com
essa característica “uni-totalizante” (Ein-
und Allheit, para empregar expressão que remonta a Schelling, filósofo
idealista alemão do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como
Edgar Morin, na esteira de Ilya
Prigogine, que defendem a superação do tradicional paradigma simplificador das
ciências clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade,
em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas, como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias holísticas, de aplicação
generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto naturais como
sociais, e que toma como distinção fundamental não mais aquela entre
sujeito-do-conhecimento-como-observador-objetivo e
objeto-do-conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras, como aquela
entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para explicar tudo a partir dessa
distinção, entre o que pertence a determinado sistema e o que está fora, no
ambiente circundante, embora circule dentro do sistema – que não é fechado
“para” e sim “com” o ambiente.
A
teoria social sistêmica, tal como desenvolvida, principalmente, por Luhmann,
assume, portanto, os seguintes pressupostos: (1º) substitui a contraposição
entre sujeito e objeto, enquanto princípio heurístico fundamental, pela
“diferenciação sistêmica”, no mundo (Welt),
entre o que é “sistema” e seu meio ambiente (Umwelt). Com isso, não apenas oferece uma abordagem
“desubstancializada”, pois o sistema não é um hypoukeimenon, como foram as coisas (rei) na Antigüidade e o sujeito na modernidade, mas também (2º)
“desumanizada”, não-antropocêntrica, já que os seres humanos, enquanto sistemas
biológicos, dotados de uma consciência, não fazem parte dos sistemas sociais
integrantes do sistema global que é a sociedade, e sim, do seu meio ambiente –
e o “antropocentrismo”, a visão que fundamenta um apartamento dos seres humanos
de seu ambiente natural, justificando a oposição a ele, conhecendo-o para nele
intervir e a ele se impor, pode ser considerado um dos motivos centrais de uma
crise que é “epistemo-ecológica”, a qual tanto e cada vez mais nos ameaça, como
sabe qualquer um minimamente informado, hoje em dia.
Trata-se
de uma teoria holística, de aplicação generalizada no âmbito de ciências
formais e empíricas, tanto naturais como sociais, e que toma como distinção
fundamental, justamente, aquela entre “sistema” e seu “meio-ambiente”, para
explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que pertence a determinado sistema
e o que está fora, no ambiente circundante, como elemento de outros sistemas -
ou não.
A
teoria em apreço pretende se desenvolver a partir de um conceito de sociedade
que não é nem “humanista” nem “regionalista”, adotando assim uma posição que, de
partida, evita dois dos maiores – se não forem mesmo os dois maiores –
pressupostos incitadores da crise “epistemo-ecológica” antes referida. Isso
significa que para a teoria ora em apreço a sociedade não é formada pelo
conjunto de seus integrantes, os seres humanos, assim como não há para ela uma
sociedade delimitada por critérios geo-políticos - a “sociedade brasileira”,
“latino-americana”, “européia” etc. Sociedade para a teoria de sistemas
luhmanniana é a “sociedade mundial” (Weltgesellschaft),
que se forma modernamente. O que a compõe não são os seres humanos que a ela
pertencem, mas sim a comunicação
entre eles, que nela circula de várias formas, nos diversos subsistemas
funcionais (direito, economia, política, ética, mídia, religião, arte. ciência,
educação etc.).
A
diferenciação sistêmica entre "sistema" e "meio ambiente",
então, é o artifício básico empregado pela teoria para se desenvolver em
simetria com aquilo que estuda, como seu “equivalente funcional”. Essa
diferenciação é dita sistêmica por ser trazida "para dentro" do
próprio sistema, de modo que o sistema total, a sociedade, aparece como meio
ambiente dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre si) se diferenciam
por reunirem certos elementos, ligados
por relações, nas operações do sistema, formando uma unidade.
Uma
"unidade", além de diferenciada no sistema do meio ambiente, também
pode aparecer como meio ambiente para outras unidades, permitindo, assim, que
por ela se aplique, recorrentemente, um número mais ou menos grande de vezes, a
diferença sistema/meio ambiente, sem com isso perder sua organização. A "organização" é o que qualifica um sistema
como complexo ou como uma simples unidade, com características próprias,
decorrentes das relações entre seus elementos, mas que não são características
desses elementos. A unidade de elementos de um sistema é mantida enquanto se
mantém sua organização, o que não significa que não variem os elementos
componentes do sistema e as relações entre eles. Essas mudanças, porém, se dão
na estrutura do sistema, que é
formada por elementos componentes do sistema relacionados entre si. Os
elementos da estrutura podem sempre ser outros; o sistema se mantém enquanto
permanecer invariante a sua organização, com uma complexidade compatível com
aquela do meio circundante e demais sistemas ali existentes. Note-se que para a
organização o que importa é o tipo peculiar de relação, circular e recorrente,
entre os elementos, enquanto para a estrutura o que conta é que há elementos em
interação, ação e reação mútua, elementos esses que podem ser fornecidos pelo
meio ambiente ao sistema, sem que por isso a ele não se possa atribuir o
atendimento de duas condições gerais, para que se tenha "sistemas
autopoiéticos", como Luhmann propõe que se considere os sistemas sociais:
a autonomia e a clausura do sistema.
Sistema autopoiético é aquele dotado de
organização autopoiética, onde há a (re)produção dos elementos de que se compõe
o sistema e que geram sua organização, pela relação reiterativa, circular
("recursiva") entre eles. Esse sistema é autônomo porque o que nele
se passa não é determinado por nenhum componente do ambiente mas sim por sua
própria organização, formada por seus elementos. Essa autonomia do sistema tem
por condição sua clausura, quer dizer, a circunstância de o sistema ser
"fechado", do ponto de vista de sua organização, não havendo
"entradas" (inputs) e
"saídas" (outputs) para o
ambiente, pois os elementos interagem no e através dele - não se trata,
portanto, de uma “autarquia” do sistema, pois ele depende dos elementos
fornecidos pelo ambiente.[2]
Só
a comunicação autoproduz-se, donde se qualificar como autopoiéticos os sistemas
de comunicação da sociedade. O sentido da comunicação varia de acordo com o
sistema no qual ela está sendo veiculada e as pessoas são meios (media) dessas comunicações, assim como
computadores, faxes, telefones, etc. Esses componentes , contudo, não pertencem
aos sistemas sociais e, sim ao seu meio ambiente. Os seres humanos, enquanto
seres biológicos, são sistemas biológicos autopoiéticos e enquanto seres
pensantes, são também sistemas psíquicos autopoiéticos. Sem a consciência
decorrente do aparato psíquico, é claro, não haveria comunicação e logo também
não haveria sistemas sociais. Sem a rede neuronal não haveriam pensamentos. O
que não há é uma relação causal entre imagens e pensamentos como os que temos,
enquanto seres humanos, como demonstra o fato de que os demais seres portadores
de redes neuronais não dispõem de uma elaboração simbólica como nós. É a
linguagem, então a primeira condição para que se dê o acoplamento (estrutural)
entre sistemas auto(conscientes) e sistemas sociais (autopoiéticos) de
comunicação.[3] Os
sistemas sociais, como todo sistema, se mantém sem dissipar-se no meio-ambiente
em que existem enquanto se mantém sua estrutura e enquanto for apto para
diferenciar-se nesse meio ambiente, com o qual “faz fronteira”. Sistemas
psíquicos (biológicos) e sistemas de comunicação (sociais), por mais que
estejam cognitivamente abertos para o meio ambiente, para dele se diferenciarem
, fecham-se em um operar, o que significa reagir ao (e no) ambiente por
auto-referência, sem contato direto com ele.
A
estrutura dos sistemas sociais fica no seu centro, sendo nele onde se determina
o tipo de comunicação produzida pelo sistema. Em volta do centro, protegendo-o,
tem-se a chamada periferia do sistema, através do qual ela entra em contato com
o meio ambiente e demais sistemas ali existentes. Desde as fronteiras de um
dado sistema até o seu centro, - em uma periferia, portanto, forma-se o que
Munch denominou “zona de interpenetração”,[4]
onde os sistemas, nos termos de Luhmann, “irritam-se” em decorrência de seu
“acoplamento estrutural” com outros sistemas.[5]
Esse
acoplamento necessita ser viabilizado por certos meios (media). O meio principal de acoplamento entre o sistema do direito
e o sistema da política, por exemplo, segundo Luhmann são as constituições.[6]
Para entendermos isso é necessário ter em mente que o judiciário é a
organização que ocupa o centro do sistema jurídico, pois é quem determina em
última instância o que é e o que não é direito. Da mesma forma os demais
poderes do Estado, legislativo e executivo, ocupam o centro do sistema
político, mas assim como o judiciário, têm na constituição as pautas mais
importantes de balizamento da ação de seus componentes.
Considerando
as características da fronteira dos sistemas, referidas por M. Bunge,[7]
tem-se que (1º) periférico em um sistema é o que ocorre em suas fronteiras;
(2º) uma função específica das fronteiras dos sistemas é proceder trocas entre
o sistema e o meio; (3º) na fronteira encontramos os elementos do sistema que
estão diretamente acoplados com componentes do meio-ambiente. Isso nos levou a
concluir que uma Corte Constitucional, por exemplo, situar-se-ia na fronteira
entre os sistemas jurídicos e políticos, sendo um dos componentes mais
importantes no acoplamento estrutural dos dois sistemas. Com isso, tem-se de
admitir que as Cortes Constitucionais, se estão na fronteira do sistema
jurídico, tendo saído de seu centro, migrou para lá, não sendo mais,
propriamente, parte integrante do judiciário, em um sistema jurídico
autopoiético, onde este ocupa o seu centro, ao dispor, em última instância (no
caso, literalmente), sobre o código característico (e caracterizador) do
sistema jurídico, pelo qual se define como jurídica ou não as comunicações.[8]
Uma conseqüência das mais relevantes dessa “migração”das cortes constitucionais
é que elas, quando passam a integrar o
sistema político, devem se submeter aos mesmos critérios de legitimação que os
demais componentes desse sistema, onde a comunicação se qualifica pelo código
do poder. Aliás, a doutrina é unânime em reconhecer, na esteira de Kelsen, que
tais cortes exercem um poder de legislação negativa, e também – agora já indo
além da formulação tradicional do positivismo - que podem apreciar o mérito de
decisões administrativas, quando as mesmas apresentam defeitos do ponto de
vista da manutenção da integridade dos princípios constitucionais e direitos
fundamentais. Ao mesmo tempo, ao pronunciarem a última palavra sobre o que é e
o que não é direito, situam-se no “centro do centro” do sistema jurídico. Este
“centro do centro”, então, é onde se daria o acoplamento estrutural do sistema
jurídico com outros, e não só com o sistema político. Também a educação, a
ciência, a arte, a religião, a economia, a mídia e todos os demais sistemas
sociais penetram no direito e são por ele penetrados (ou “irritados”),
principalmente, por via de interpretações a partir do que se acha disposto na
constituição, interpretações essas que são feitas por juristas, juizes e demais
operadores jurídicos e, mesmo, por jornalista, padres, cientistas, enfim, todos
os cidadãos, e essas interpretações todas influenciam (“irritam”) os membros
das Cortes Constitucionais, mas a interpretação que prevalece, em um sistema
jurídico autopoiético - e, logo, autônomo - é desses últimos. Tais
interpretações, no entanto, são construções (auto)po(i)éticas,[9]
pois o direito desenvolve-se reagindo apenas aos seus próprios impulsos,
estimulado por "irritações", provindas do ambiente social. A
propósito, vale referir a seguinte passagem, da lavra de Gunther Teubner:
"Mesmo as mais poderosas pressões só serão levadas em conta e elaboradas
juridicamente a partir da forma como aparecem nas 'telas' internas, onde se
projeta as construções jurídicas da realidade (rechtlichen Wirklichkeitskonstruktionen). Nesse sentido, as
grandes evoluções sociais 'modulam' a evolução do Direito, que, não obstante,
segue uma lógica própria de desenvolvimento".[10]
Por
ser o Judiciário a única unidade que opera apenas com elementos do próprio
sistema jurídico - o qual, ao prever a proibição do non liquet, o força a sempre dar um enquadramento jurídico a
quaisquer fatos e comportamentos que sejam levados perante ele -, postula-se
que essa unidade ocuparia o centro do sistema jurídico, ficando tudo o mais em
sua periferia, inclusive o Legislativo, em uma região fronteiriça com o sistema
político. Eis o "paradoxo da transformação da coerção em liberdade",
uma vez que o juiz se acha vinculado às leis, mas não à legislação, que é
sempre objeto de sua interpretação, inclusive a norma que o vincula à lei,
levando em conta textos com autoridade superior como aquele da Constituição.
"Quem se vê coagido à decisão e, adicionalmente, à fundamentação de
decisões, deve reivindicar para tal fim uma liberdade imprescindível para
construção do Direito".[11] É
uma tal unidade que garante a autonomia do sistema e a sua
"auto-reprodutibilidade", para o que recebem o apoio imprescindível
de uma "unidade cognitiva", a chamada "doutrina", que não
apenas é responsável pela sofisticação da hermenêutica jurídica, como fornece
interpretações passíveis de serem adotadas pelo Judiciário, e assim,
introduzidas no sistema jurídico normativo.[12]
Daí se poder falar, como Foucault, em uma "unidade de discurso" entre
as práticas discursivas da academia e do Judiciário.[13]
Conclui-se,
então, que a fronteira do sistema jurídico e, por simetria, também dos demais
sistemas sociais, não passa apenas por sua periferia, mas também por seu
centro. É por isso que, com H. v. Foerster, podemos dizer, tal como H. Willke,[14]
que o Estado de uma sociedade funcionalmente policêntrica é formada por
subsistemas sociais diferenciados (interdependentes) que se estruturam não de
forma hierárquica, mas sim “heterárquica”, pois nenhum subsistema goza, a priori, de primazia em relação aos
demais - nem o subsistema de economia, como é ainda hoje bastante divulgado e
como foi dito pelo próprio Luhmann, em uma versão mais antiga de sua teoria.[15]
Na última versão dessa teoria não se fala mais em primazia da função de nenhum
subsistema, a não ser em relação a si mesmo,[16]
já que “cada sistema funcional só pode cumprir com a própria função”.[17]
Postular
que a sociedade contemporânea, organizada em escala mundial, “globalizada”, é o
produto da diferenciação funcional de diversos (sub)sistemas, como os da
economia, ética, direito, mídia, política, ciência, religião, arte, ensino etc.
- sistemas autopoiéticos, que operam com autonomia e fechados uns em relação
aos outros, cada um com sua própria “lógica” -, postular isso não implica negar
que haja influência (ou “perturbações”) desses sistemas uns nos outros. Entre
eles dá-se o que a teoria de sistemas autopoiéticos denomina “acoplamento estrutural”.[18]
Assim, o sistema da política acopla-se estruturalmente ao do direito através
das constituições dos Estados, enquanto o direito se acopla à economia através
dos contratos e títulos de propriedade, e a economia, através do direito, com a
política, por meio dos impostos e tributos, e todos esses com a ciência,
através de publicações, diplomas e certificados, cabendo a uma corte
constitucional, em última instância, deliberar sobre a “justeza” desses
acoplamentos, em caso de dúvidas ou contestações, que os ameace, ameaçando,
assim, a autopoiese do sistema global e, logo, sua permanência, sua “vida”.
Está em causa a manutenção da
autopoiese no sistema global, se nós considerarmos o sistema jurídico como
proposto por Luhmann em “O Direito da Sociedade”,[19] ou seja, como um tipo de sistema imunológico
da sociedade, com a tarefa de vaciná-la contra as doenças sociais que seriam os
conflitos, através da representação desses conflitos em prescrições a serem
seguidas pelas cortes, concebidas de maneira idealizada como imunes contra a
política. E o principal risco aqui mostra-se, então, como sendo o da
auto-imunidade, no sentido trabalhado por Derrida. [20]
A questão que se coloca, então, é de
como sobreviveria um tal sistema, o sistema social global, que é a sociedade
mundial, diante de um ataque por componentes dele mesmo, como para alguns
ocorreria no setor financeiro do sistema econômico, diante do excesso de
especulação, ou de cidadãos que ao invés de participarem politicamente por meio
do voto optam por protestos cada vez mais violentos, ou quando pessoas se
tornam suspeitas e, mesmo, praticantes do que se vem qualificando como
terrorismo, sendo destratados como portadores de direito, na situação descrita
por Giorgio Agamben com uma figura do antigo direito penal romano do homo sacer, que é a de uma vida
puramente biológica e, enquanto tal, matável sem mais. Eis como o sistema
(jurídico) imunológico da sociedade pode ser confrontado com um problema
similar ao de um organismo que sofre de uma disfunção auto-imune. A
auto-imunidade é uma aporia: aquilo que tem por objetivo nos proteger é o que
nos destrói. O paradoxo da autopoiese do direito terminando em autoimunidade
revela o paradoxo da inevitável circularidade do Direito e suas raízes
políticas nas constituições.
Como nós aprendemos de uma recente
contribuição para o pensamento social de um estudioso de Luhmann e Baudrillard,
conjuntamente: “A persistência da forma-binária somente pode ser assegurada
pela produção dosada de algum ‘outro’-simulado, não mais disponível em sua
forma ‘natural’”.[21] Se é assim, tenhamos esperança na vinda no
sistema societário mundial de um vírus como o da AIDS, i.e., que desenvolva uma
doença auto-imune para acometer o sistema imunológico e assim impedindo que
continue atacando partes do próprio organismo que deveria proteger: um vírus
que realmente ajude a dar fim à sociedade desumana e ao nosso vínculo ambíguo
(o double bind de Bateson) de
amor/ódio com a natureza e o radicalmente outro, diverso,[22] operando uma espécie de auto-imune
apocatástase. [23] De outro modo, o sistema jurídico em escala
global irá crescentemente reagir contra a diversidade e em fazendo isso irá
minando os fundamentos mesmos da ambiência natural e cultural, humana. E isso é
o pior a que o recrudescimento da presente crise pode nos levar. Havemos,
então, de superar as doenças auto-imunes que nos acometem enquanto corpo social
mundial, nos termos de Roberto Esposito,[24] das quais a atual “crise alérgica” da União
Europeia é um exemplo claro e menos grave do que aquele da Alemanha nazista,
analisada por este autor, em que a enfermidade decorre da tentativa de
isolamento dos contatos que põem a política a serviço da vida e não a vida a
serviço de uma política mortífera, ou seja, a biopolítica transformada em
tanatopolítica.
[1] Cf. "Autopoiese: a criação
do que vive", in: Um novo
paradigma em ciências humanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.],
Belo Horizonte, 1987.
[2] Cf. WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, Autopoiese do direito na
sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria
social sistêmica, Porto
Alegre: Livraria do Advogado,1997, p. 69
e seg., p. 82 e seg.
[3] Cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der
Gesellschaft, vol. II, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 101.
[4] Cf. “The Dynamics of Societal
Communication”, in: The Dynamics of Social Systems, P.
COLOMY (ed.), Sage, London, 1992, p. 65.
[5] Cf. LUHMANN, Soziale
Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, 3a. ed., Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1987, p. 291 e seg.
[6] "Verfassung als evolutionäre
Errungenschaft", in: Rechtshistorisches
Journal, n. 9, Frankfurt am Main, 1990, p. 204 e segs.
[7] "System Boundary", in: International Journal of General
Systems, n. 20, London, 1990, p. 219.
[8] Cf. LUHMANN, "Die Stellung
der Gerichte im Rechtssystem", in:
RECHTSTHEORIE, n. 21, Berlin, 1990; W. GUERRA FILHO, ob. cit., p. 75 e segs.
[9] Nesse passo, vale
recordar a já mencionada proposta de Freud, de que se substitui-se, em
psicanálise, a interpretação pela (re)construção “arqueológica”. Cf. FREUD, Konstruktionen in der
Analyse [1937], ob. loc. ult. cit.
[10] TEUBNER, "Reflexives Recht: Entwicklungsmodelle des
Rechts in vergleichender Perspektive", in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 68, Stuttgart,
1982, p. 21. V. tb., Id. , "Substantive and reflexive elements in modern
Law", in: Law & Society
Review, vol. 17, n. 2, Denver, 1983, p. 249.
[11] Cf. LUHMANN, "Die Stellung
der Gerichte im Rechtssystem", cit., p.163.
[12] A doutrina ou
dogmática jurídica, como sustenta LUHMANN em trabalho já clássico, “Sistema
Jurídico e Dogmática Jurídica”, caracteriza-se, igualmente, por constituir uma
liberdade de pensamento sob a aparência de vinculação a conceitos dogmatizados,
inquestionáveis, mas que, na verdade, tanto podem oferecer respostas como
tornarem-se instrumento de questionamentos, enquanto formas cujo conteúdo e,
logo, também o seu sentido podem sempre ser atualizados, para atender às
exigências sociais de segurança ou, ao menos, da “insegurança suportável” de um
problema para o qual se pode oferecer uma solução, encerrando-o com uma decisão.
Cf. LUHMANN, Sistema Juridico y Dogmatica
Juridica, trad. IGNACIO DE OTTO PRADO, Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1983, p. 29 e seg., 40 e 102.
[13] Cf. EDWARD L. RUBIN, "The
practice and discourse of legal scholarship", in: Michigan Law Review, vol. 86, nº 6, Lincoln, 1988.
[14] Cf. Ironie des Staates,
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 65.
[15] LUHMANN, "Positivität des
Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft", in: Id.,
Ausdifferenzierung des
Rechts: Beiträge zur Rechtssoziologie und Rechtstheorie, Frankfurt
a. M.: Suhrkamp,1981, p. 149.
[18] Cf. LUHMANN, Die Gesellschaft der
Gesellschaft, loc. ult. cit., p. 776 ss.
[19] Cf. LUHMANN, Das Recht der
Gesellschaft, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, pp. 161 e 565 ss.
[20] Cf., mais
extensamente, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Potência crítica da ideia de direito como um sistema social
autopoiético na sociedade mundial contemporânea”, in: GERMANO SCHWARTZ (org.) Jurisdicização
das Esferas Sociais e Fragmentação do
Direito na Sociedade Contemporânea, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, pp. 59 – 69;
ARNALDO BASTOS SANTOS NETO,”Derrida,
Luhmann e a questão da justiça”, ib.,
pp. 71 – 83.
[21] Cf. RENÉ CAPOVIN, “Baudrillard as
a Smooth Iconoclast: The Parasite And The Reader”, in: International Journal of Baudrillard Studies, vol. 5, # 1,
2008.
[22] Cf. CARLA PINHEIRO, Responsabilidade Ambiental por Ato Lícito,
Tese de doutoramento, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
[23] Apocatástase é o
termo criado por Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.), também conhecido como
Orígenes cristão, para designar a restauração final de todas as coisas em sua
unidade absoluta com Deus. A apocatástase representa a redenção e salvação
final de todos os seres, inclusive os que habitam o inferno. É, assim, um
evento posterior ao próprio apocalipse. A apocatástase sintetizaria o poder do
Logos ou Verbo encarnado, ou seja, o próprio Cristo como poder redentor e salvador
que não conheceria limite algum. A proposta da apocatástase leva a supor que
não há um único mundo criado - o que principia no Gênesis e finda no Apocalipse
- como sugerido pela Bíblia cristã. Ao contrário, em sua atividade criadora,
Deus cria infinitamente, uma sucessão de mundos, que só se esgotaria na
apocatástase, quando todos os seres n’Ele repousassem definitivamente. Essa
ideia de uma sucessão infinita de mundos lembra muito uma hipótese agora
bastante aceita em física quântica, originária da à época muito controvertida
tese de doutoramento sobre a função da onda, de HUGH EVERETT III, The Many-Worlds Interpratation of Quantum
Mechanics: the theory of the universal wave function, PhD Thesis, Princeton
University, 1956.
[24] Cf. “Filosofia e Biopolítica” in ethic@, vol. 9, n. 2, Florianópolis, p. 369 – 382.
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