ENTREVISTA COM WILLIS
SANTIAGO GUERRA FILHO
EFETUADA
SANTOS, SP, EM 21 DE JUNHO DE 2001, FEITA POR VALÉRIA ÁLVAREZ CRUZ (falecida em
2005) E PUBLICADA IN:
“A
Expansão do Direito: Estudos em homenagem a Willis Santiago Guerra Filho”. Haradja
Torrens et al. (org.). Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002.
NO SEU MODO DE ENTENDER, O QUE SERIA
A FILOSOFIA?
A Filosofia, no geral, pode ser
reconhecida, basicamente, por três características principais: a reflexividade,
a circularidade e a dogmaticidade.
A reflexividade significa que ela se
coloca como objeto a ser conhecido por si mesma, implicando em auto-reflexão e
em uma filosofia da filosofia.
Todo filósofo precisa firmar uma
posição sobre o conceito da filosofia, sobre o que ele vai fazer, enfim,
filosofar sobre a filosofia, antes de filosofar propriamente, sobre o que for.
Tornar-se objeto de si mesma é uma
característica que a filosofia compartilha com outros saberes, mas não com o
saber científico tradicional. Apenas ciências com um modelo mais recente, como
a Teoria dos Sistemas, tem também como peculiar essa reflexividade – tomar a si
própria como objeto –, o que termina superando a distinção clássica entre
sujeito e objeto do conhecimento.
A filosofia como objeto de si mesma
envolve como conseqüência uma segunda característica, que podemos denominar
“circularidade”, isto é, a espiral da reflexão, porque esta se volta sobre si
mesma. Porém, deve-se evitar que a mesma se estiole em um círculo vicioso.
Com referir a circularidade da
filosofia também pretendemos indicar o fato de que não há nela o que se entende
que há na ciência, um progresso do conhecimento, pois sempre se volta às mesmas
questões, que, em tempos e lugares diversos, requerem respostas diversas, sem
que por isso se perca o interesse pelas respostas dadas anteriormente. Tal
contraste foi apontado, inclusive, por Karl Jaspers, em obra de introdução à
filosofia.
A filosofia também busca totalidade
nas explicações, ao contrário da ciência, com sua marcada tendência à
especialização e ao reducionismo, enquanto que se pode dizer, ainda, que a
primeira possuí um caráter aporético, decorrente de sua circularidade e
reflexividade, pois coloca a si mesma como uma questão para ela própria resolver.
Daí a termos de postular sua
dogmaticidade, que implica em uma tomada de posição, para iniciar o filosofar,
lembrando que essa natureza dogmática distingue-se do dogmatismo, do qual
devemos nos prevenir. Aliás, um passo importante para nos acautelarmos no
tocante a esse dogmatismo seria justamente essa assunção do caráter dogmático
da filosofia.
Essa característica da dogmaticidade
a filosofia compartilha com o saber jurídico, o qual também “circula” para o
lado do seu objeto. Afinal de contas, o
que é o direito enquanto objeto de estudos, senão aquilo que percebemos como
tal? O Direito muda de acordo com a forma de conhecimento que adotamos para
compreendê-lo, e aplicá-lo. Então, é indissociável do Direito enquanto objeto e
do modo como ele é conhecido, a forma de encará-lo - por exemplo, aquela de um
jusnaturalista para um positivista. Dependendo da posição filosófica ou
epistemológica que tenhamos, ela influenciará o entendimento do Direito, ainda
que este seja o mesmo objetivamente.
No Direito nós aceitamos com maior
tranqüilidade a dogmaticidade, que causa certo escândalo dentre os filósofos,
quando apontada em sua disciplina, que surge justamente se afirmando contra a
opinião comum, que é a doxa, em
grego, donde o “dogma”. Não há, no entanto, sem a dogmaticidade, como se
escapar do ceticismo, da dúvida total a respeito de tudo, pois isso também é um
dogma: o de que nada é verdade. O dogmatismo, contudo, deve sempre ser
superado. A dogmaticidade, enquanto necessidade de se firmar uma posição, a
partir da qual se desenvolve todo um pensamento, deve englobar o estar disposto
também a rever essa posição, para evitar o mencionado dogmatismo.
Sem firmar alguma posição, não se
tem como desenvolver qualquer pensamento, que evite aquele círculo vicioso que
em filosofia é representado pelo ceticismo, e que pode redundar na afirmação de
que a verdade não existe, e em um relativismo cognitivo, e também ético, moral,
que é ameaçador, pois envolve uma espécie de vale tudo, tendência e risco do
pensamento contemporâneo.
Precisamos repensar, e ousar, como dizia o velho Kant, ousar saber –
“sapere aude”, era sua divisa -, o que hoje em dia é cada vez mais ousar firmar
uma posição, aberta a uma revisão. Mas,
se não se firma nada, se não há uma posição, não há também a possibilidade de
revisão, ficando-se ao sabor dos acontecimentos, e com isso não há pensamento
filosófico – nem pensamento algum, digno desse nome, mas apenas reações
intelectuais a estímulos do ambiente, por mais complexas que sejam tais reações,
por igualmente complexo ser o ambiente, em grande parte já resultante delas
mesmas...
Portanto, a filosofia pressupõe não
só indagações, mas também posições, apresentando características que, como
asseveramos, a distinguem da ciência e de outras formas de saber, com a arte, a
religião e o direito, embora também compartilhe com elas algumas
características.
E COM RELAÇÃO À FILOSOFIA E À
CIÊNCIA DO DIREITO?
Em certo texto eu falei que o
Direito é filosofia aplicada, porque ele tem as características da filosofia, e
outras, como aquele sentido mais prático, voltado para a solução necessária de
casos, de problemas, que é um aspecto da dogmaticidade de que falamos, bem mais
clara no Direito do que na Filosofia.
O Direito tem que dar soluções. A
Filosofia também precisa avançar, e buscar soluções, especialmente onde não há
a possibilidade de respostas científicas, que são mais valorizadas e esperadas
na nossa sociedade.
Não podemos ficar inertes, temos que
oferecer soluções, até porque a ciência tem colocado questões que não podem ser
respondidas por ela mesma, questões para além do limite da ciência, causadas
pela ciência, como as da bioética.
Em tal situação, o Direito tem que
dar as respostas, como por exemplo, no caso da clonagem. É preciso, assim, uma reflexão filosófica que
venha subsidiar aqueles profissionais do Direito, os quais por sua vez se
confrontam, concretamente, com essas questões.
O fato da dogmaticidade no Direito
ser bem mais presente decorre de nele não se exigir apenas um ponto de partida,
mas também um de chegada. Na busca de soluções, necessariamente, no âmbito do
Direito, haverá o oferecimento de respostas, para resolver os casos jurídicos
concretos. Já da filosofia, se exige mais um ponto de partida, se bem que uma
filosofia que parte de algum lugar e não chega a lugar nenhum, não é uma
filosofia muito satisfatória.
Uma outra preocupação para mim
sempre foi, desde os meus primeiros textos, a epistemologia, sobretudo a
jurídica, ou a reflexão sobre a ciência do Direito, sobre a possibilidade de se
ter um estudo científico do Direito e suas implicações.
Há toda uma discussão sobre o que é
ciência, e deve-se ter uma que seja adequada ao fenômeno jurídico, a partir de
um modelo para estudo científico dos fenômenos em geral. Este seria um modelo
diferente daquele em que se baseou a ciência inicialmente, e que vem se
desenvolvendo para dar conta de uma complexidade que a própria ciência permitiu
que se percebesse, e que abrange u’a malha intrincadíssima de interações entre
fenômenos. Isso vem, igualmente, forçando o estabelecimento de uma dimensão
interdisciplinar que seja intrínseca ao próprio saber científico – daí que eu
diria até, se me permitem o neologismo, ser um dimensão “intradisciplinar”,
pois não se trata apenas de se relacionar uma disciplina com a outra, mas hoje
em dia uma disciplina que não inclua
muitas outras vai acabar trabalhando mal em seu próprio campo de saber, e até
distorcendo bastante as coisas.
Então as exigências para um saber
jurídico que possa ser considerado científico dentro desse modelo atual de
ciência do Direito são muito grandes, mas precisam ser enfrentadas, para dar
lugar a uma ciência do Direito superior, com as características da ciência
contemporânea, mais ampla, e necessária também do ponto de vista político, no
sentido de que a política, a meu ver, não trata de algo como intrigas
palacianas, mas sim da nossa sobrevivência, donde terem filósofos como Foucault
e Sloterdejk referido, com muita propriedade, à “biopolítica”, a política da vida,
algo, portanto, de suprema importância para nós.
Que cientificidade se deve e se pode
pretender para o Direito? A questão da
ciência, ou da opção por ela, é uma questão ética. Qual o significado da
ciência? Devemos, ou podemos, abdicar da ciência? Em resumo, a ciência nos
levou a um abismo e é preciso construir uma ponte com o seu próprio auxílio
para cruzar esse obstáculo.
O Direito pode não ser adequado a um
certo modelo de ciência, mas não podemos abdicar da ciência, e haverá de se
construir um modelo, então, adequado ao Direito. Eu aposto nisso e venho me
empenhando nessa construção.
E NO TOCANTE À FILOSOFIA APLICADA AO
DIREITO PROCESSUAL E À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO?
Esse tema foi discutido em meu livro
“A Filosofia do Direito”. Há toda uma tradição processualística de negação da
filosofia, da axiologia, dos valores acreditando que o processo é um ramo
extremamente técnico, que prescinde de considerações dessa ordem, em uma visão
que apenas ao Direito material, eventualmente, caberiam os frutos do pensar filosófico. Porém, em direito
processual há uma temática muito propícia para uma reflexão filosófica, que não
é feita em geral, mas que pode trazer muitas contribuições, inclusive
demonstrando que ocorre a realização de valores através do processo. Não se
pode dissociar uma reflexão sobre o Direito, sobre os valores, de uma reflexão
a respeito de sua realização mediante o processo.
Assim, o processo fornece matéria
para reflexões filosóficas, como por exemplo, a natureza da coisa julgada, a
necessidade do contraditório, para constituir a estrutura dialética do
processo, a um só tempo maleável e voltada para a fixação de uma decisão, além
de outros temas. É assim que hoje em dia muitos filósofos tem se colocado em
busca de um conhecimento mais técnico no âmbito jurídico, de que são exemplos
Habermas e, dentre nós, Marcos Nobre, um colega da USP, que está fazendo o
curso de graduação em Direito, para melhor elaborar seu pensamento
jusfilosófico.
Com relação à Teoria da
Constituição, é um tanto diferente, pois esta não fornece apenas u’a matéria,
mas também reflexões muito sofisticadas, do ponto de vista filosófico,
desenvolvidas, inclusive, de um modo institucional, e não somente pessoal.
Lembrando um livro de Mary Douglas,
pode-se dizer que as instituições pensam. Então, que instituições tem dado uma
grande contribuição para as reflexões de valor filosófico, confrontando-se com
questões aquelas questões maiores, enquanto questões constitucionais? Os
Tribunais Constitucionais contemporâneos, sobretudo o alemão, que ocupa um
lugar de destaque nesse cenário.
Infelizmente, o nosso STF não tem
esse mesmo destaque. Não podemos considerar que ele tenha dado uma grande
contribuição institucional para a reflexão sobre o Direito e a Constituição em
nosso país, o que é uma grande perda para todos nós, tendo em vista o que o
Tribunal Constitucional alemão efetuou nestas últimas décadas, como o
verdadeiro condutor da transição desse país de uma ditadura para uma
democracia, que nós, na realidade, não passamos ainda. Se não plena, que talvez nunca exista, mas
uma democracia, sem dúvida alguma, bem melhor do que a que temos entre nós,
mais efetiva, por exemplo, no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais.
Novamente recordo Habermas e seu
livro sobre Direito, “Faticidade e Validade”, onde se nota claramente a grande
influência e até a admiração que esse autor tem pelos trabalhos desenvolvidos
pela instituição do Tribunal Constitucional alemão, trabalho prático, com uma
função social e política, de resolver conflitos sobre direitos fundamentais, e
de conflitos de competência entre os diversos poderes de Estado.
Ser um bom tribunal é estar aberto,
justamente, a um diálogo com a doutrina, assim como esta, vice-versa, também
deve estabelecer um diálogo com as instituições. De todos esses contatos, o
Direito só pode se beneficiar, pois tanto ele como as citadas instituições
serão tanto melhores, conforme os trabalhos de elaboração teórica que sejam
feitos, por elas, a partir delas e para elas.
QUAL O FUTURO DA FILOSOFIA?
É uma pergunta complicada, pois o
presente da filosofia já é tão delicado, que se torna difícil pensar no seu
futuro. Um saber tão combalido, tão ameaçado, dado por encerrado por filósofos
proeminentes contemporâneos, como Wittgenstein e Heidegger, poderá ainda se
pensar em algum futuro para ele?
Esse dois filósofos, considerados
por Rorty os maiores filósofos contemporâneos – enquanto este último, para
muitos, é o maior filósofo vivo -, pensaram sob o signo do fim da
filosofia. Wittgenstein achava que com o
seu “Tractatus” tinha resolvido todas as questões filosóficas – pelo menos,
aquelas que seriam passíveis de ter uma solução -, e que, portanto, acabava-se ali a filosofia. Já Heidegger, em
seu célebre texto sobre a questão do pensamento e o fim da filosofia, diz que
esta última acabou, ou seja, aquela filosofia que começou com os gregos, com
Platão, e que acabou com os alemães, mais precisamente com Hegel. No entanto, segundo ele, esse fim da
filosofia pode reverberar mais tempo até do que o tempo de duração que ela
teve.
De qualquer modo, para o filósofo da Floresta Negra, a filosofia
explodiu, acabou, e migrou para a ciência, completamente, e o término final
dessa anulação foi a Cibernética. A
Cibernética toma o lugar da velha filosofia, enquanto forma de conhecimento da
transmissão e controle da comunicação, em qualquer de suas formas.
Eu acho que o futuro da filosofia
está no passado. Precisa haver uma retomada de questões que ficaram esquecidas,
ocultas, um pouco como que disse o próprio Heidegger. Só que essa retomada, para ele, significa
retomar o pensamento inicial, sendo que foi bom a filosofia ter acabado, pois
como era (ou é, ainda) escondia a reflexão original, permitindo que uma outra
forma de conceber o mundo ficasse reprimida, recalcada. O fim da filosofia, em sua ótica, assim,
inclui a possibilidade de que se retorne a uma senda perdida, inclusive aquela
que se escondeu no tempo, com o aparecimento da filosofia conceitual,
metafísica, que predominou a partir de Sócrates, graças a seu discípulo, que
depois se tornou mais proeminente, isto é, Platão. Whitehead chegou a falar que
toda a filosofia posterior pode ser considerada como notas de rodapé ao
pensamento de Platão.
Portanto, se discute e se vislumbra
hoje a possibilidade de superação da filosofia platônica, em todas as suas
modalidades, inclusive aquelas que representam a sua inversão, como a de
Nietzsche. Platonismo invertido ainda é
platonismo - embora de cabeça para baixo se possa ver as coisas como não se veria
de cabeça para cima...
Voltando ao tema mais central da
pergunta, a filosofia há de ser pós-metafísica, pós-científica, forma de
pensamento que restará ainda quando a ciência deixe de ocupar o lugar
predominante que hoje ocupa, onde antes já esteve a Teologia, e a própria
Filosofia, dentre os diversos saberes da Civilização Ocidental – aquela que
agora se torna mundial, universal, como pretendem essas formas de saber, no que
lhes é mais peculiar.
Uma filosofia que será muito mais
como foi nos seus primórdios, do que tem se demonstrado até hoje, ao longo de
sua história. Uma filosofia como nostalgia de uma sabedoria perdida, como diz o
próprio termo “filosofia”, “amor à sabedoria”, que eu considero uma forma de
amor nostálgico pelo saber, apesar do fracasso em obtê-lo.
A filosofia, como já ressaltou
Farias Brito, ainda hoje o principal filósofo genuinamente brasileiro, é uma
atividade permanente do espírito humano, e existirá sempre, ainda que no
interior das pessoas, pois implica a capacidade de pensarmos, repensarmos e
revisarmos, com afinco, as questões que nos são essenciais, onde se incluem aquelas,
em um âmbito mais específico, que dizem respeito ao Direito e à sua
problemática.
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