Por
uma Poética do Direito:
Introdução
a uma Teoria Imaginária do Direito (e da Totalidade).*
Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular do Centro de
Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (FFB-CE). Professor Efetivo do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ). Pesquisador da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP). Doutor em Ciência Jurídica
pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). Pós-Doutor em Filosofia pelo
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará (UFC).
Resumo: O artigo propõe a retomada de estudos do direito
situados em um quadro mais amplo, tal como idealizado e, a seu tempo, em parte,
também realizado pelo italiano Giambattista Vico, no século XVIII, quando
contrapôs ao racionalismo de matriz cartesiana uma abordagem calcada no que se
pode denominar a utilização poética da linguagem, o que converge para os
estudos contemporâneos em filosofia, quando se vê na linguagem o que há de mais
fundamental a ser perquirido, bem como com propostas as mais diversas, oriundas
igualmente das ciências humanas, no sentido de apontar para o caráter fundante
que tem a imaginação no esforço humano de entender qualquer manifestação
mundana ou consciencial.
Palavras-Chave: Teoria do Direito – epistemologia –
imaginação – poética
Abstract: The
paper proposes a return to the legal studies located in a broader framework,
such as idealized and in his times also practiced by the Italian Giambattista
Vico in the 18th. Century, which opposes the Cartesian like
rationalism with an approach based on what we may call a poetic use of
language. To this converges also contemporary studies in the field of
philosophy, when language is envisaged as the ultimately reality to be reached,
as well as the efforts that can be found in humanities, in order to point out
to the founding nature of imagination in all the human features to comprehend
worldly and consciences manifestations.
Key-words:
Legal theory – epistemology - imagination – poetics
SUMÁRIO:
Introdução
1.
Natureza Ficcional do Direito
2. O
Direito como parte do mundo criado pelo desejo
3. O
Direito posto (positivo) poeticamente concebido como Direito possível
4.
Crítica fenomenológica do formalismo científico
5. Proposta de reordenação das formas de conhecimento
legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou “escatológicas”.
6. Interlúdio
Metafísico-Teológico
Conclusão
Introdução
A
expressão “Teoria Imaginária do Direito” apresenta uma postulação
epistemológica e uma outra, ontológica. A primeira, referente à natureza da
teoria do direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter
imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio direito, objeto de uma
tal teoria, também aponta para o seu caráter imaginário.
No que
tange à postulação epistemológica, ela se põe em confronto com uma tradição
racionalista, que tem na filosofia cartesiana sua mais conhecida representante,
a qual reverbera até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana
sobre o imaginário, quando ele trata o produto da atividade imaginativa, a
imagem,[1]
como um símbolo deficiente, ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo
conceito, correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer
racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o denomina Gilbert
Durand.[2]
Juntamente com este último, na esteira
de outros, anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o pensamento
lógico-racional, do encadeamento linear, como um caso particular e, enquanto
particularização, também uma limitação, da forma originária e fundamental de
pensamento, que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi o
próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais reconhecida como
científica, ou seja, na matemática e na ciência natural, sobretudo a física,
que trouxe uma tal compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das
possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre as propriedades
do traçado de figuras em um plano que não podemos esquecer ser imaginado, logo,
imaginário, assim como a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas
os valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas lógicas
possíveis. O avanço da matemática, que é de se considerar como o avanço da
própria imaginação humana criativa em um de seus setores, terminou
impulsionando o avanço da investigação da matéria e do espaço físicos,
permitindo que se forjasse a cosmologia relativística e a microfísica quântica.
Nesta última, por exemplo, já se sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração,
não havendo esta partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido
na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo cartesianismo da
(primeira ou mais recuada) modernidade. Imaginemos então que esse ponto na
verdade é um círculo, reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que
uma reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada ponto da reta se
pode conceber o cruzamento com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o
sistema de coordenadas cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um
corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.[3] A
imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e
ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode
obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração
redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações.
Com
relação à postulação ontológica, sobre o caráter imaginário do próprio direito,
enquanto objeto de estudos teóricos, para entendê-la, basta que se atente para
a circunstância de que o direito é também uma forma de conhecimento, sendo um
modo como numa sociedade se dá a conhecer aos seus membros o comportamento que
é esperado de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a
postulação epistemológica e aquela ontológica convergem, mostrando-se como “os
dois lados de uma mesma moeda”, “moeda” esta que o jurista e filósofo Miguel
Reale, por influência (neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O
que aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente “po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda
obra humana, aí incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz, a
seu respeito, e também em geral, a totalidade do que se conhece, enquanto
dependente de alguma forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a expressão alquímica de Paracelso,
amplamente empregada por Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben
-, para ser por nós percebida significativamente, numa articulação simbólica.
1. Natureza Ficcional do Direito
Partindo da consideração do Direito
como uma criação humana, coletiva, é que de último jusfilósofos dentre os mais
acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia do direito em
Oxford e em Nova Iorque ,
vêm propondo uma compreensão do universo jurídico em aproximação com aquele da
ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico do direito
contemporâneo, de expressão, que se pode referir, em sintonia com uma tal
concepção, é o também nova-iorquino Richard Posner, que assim como a professora
de filosofia do direito em Harvard, Martha Nusbaum, encontra-se na origem do
que veio a se chamar o movimento do direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não se faz necessário
recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de encontrar apoio para quanto aqui se
pretende sustentar a respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa
própria tradição, originária da matriz continental européia, houve quem fizesse
indicação nesse sentido, e com precedência, sendo autor de obra que se tornou
paradigmática, a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano
oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração teórica de seu autor
referencial, posterior à segunda edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida
para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à norma que seria o
próprio fundamento de validade e, logo, de existência positiva do Direito, por
isso mesmo dita norma fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma hipotética, quando o próprio
Kelsen, comprometido ao máximo como sempre esteve com a coerência do
pensamento, percebeu que não poderia entender como sendo uma hipótese uma norma
jurídica, pois hipóteses são assertivas feitas na forma de um juízo lógico, que
podem ser verdadeiras ou falsas, a depender da correspondência de quanto ali se
assevera com o que se comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso
significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (Sein), onde se situam os fatos reais (Tatsache), e aquele do dever ser (Sollen), onde se encontram os fatos possíveis (Sachverhalt) que forem (juridicamente) selecionados para fornecer a
base de uma imputação do Direito, a chamada fattispecie,
da doutrina italiana, que corresponde ao “suporte fático” (Tatbestand), da doutrina germânica. E tal limite, como é sabido,
foi rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria do direito
kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia naturalista”, denunciada já por
David Hume e, na esteira dele, por Immanuel Kant, principal referência
filosófica para Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se
pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é, minando assim a
autonomia da moral, do Direito, da estética e de tudo quanto estabelece o ser
humano como critério de avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer
depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o justo ou o belo a
possibilidade de se estabelecer parâmetros de julgamento do que quer que se
venha a fazer com a intenção de atingir tais ideais.
A
qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode ser a de que é
verdadeira ou falsa, ou seja, a de que corresponda ou não a fatos reais, do
mundo do ser, daí dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou
inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos de ocorrência
possível, do mundo do dever ser, instituído juridicamente. Na origem lógica – e
não, propriamente, histórica – do universo jurídico que temos posto,
positivado, diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira, esvaziada
de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica, como uma mera indicação da existência
de um mundo de normas a ser entendido como Direito, juridicamente vinculante,
mas sem uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta, positiva,
e ela é que seria o fundamento de validade, a justificativa (lógica) de
existência, de todas as normas efetivamente postas, positivas. Essa norma, na
2ª. ed. da Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma condição
transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, ou seja, algo como as
categorias de tempo e espaço, enquanto necessárias para o conhecimento do mundo
físico, mas depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma
categoria, ou seja, literalmente, um “modo de falar” (do grego kat’ gorein) – no caso, sobre o Direito
-, não poderia ser uma norma, jurídica, que na sua própria definição é o que
confere um sentido, jurídico-positivo, a um ato de vontade, criando Direito a
partir de Direito previamente estabelecido. A norma fundamental cumpriria a
função de evitar o regressum ad infinitum,
o círculo vicioso, do Direito que é criado a partir do Direito, mas
atribuindo-se a ela o caráter hipotético e a natureza de uma categoria, ela
restava descaracterizada como norma, não podendo assim ser a primeira de uma
série – é como, mal comparando, se considerasse que o primeiro dos números da
série de números naturais, o zero, não fosse um número, fosse um “não-número”,
por ser zero, o que restou definitivamente superado pelas investigações de
Frege sobre os fundamentos da aritmética, que demonstraram como a definição de
todos os demais números da série dos cardeais pressupunha a existência de um
primeiro número “n”, diverso do número 1 e diverso também de si mesmo, para
validar a fórmula definidora de todos os x-números dessa série numérica. Ocorre
que um tal objeto, contraditório (igual e diverso de si mesmo), não-existente,
mas dotado ainda assim de existência, pois dele depende a existência,
racionalmente justificada, de outros, “normais” (ou, no caso dos números,
“naturais”), em matemática, já adquire o estatuto do que aqui se entende como
“imaginário”, remetendo-nos à transcendência – só sobre a divindade é que se
produziu, em outros contextos, afirmações como esta, demarcando tão radical
diferença com o que habitualmente nos deparamos.
A solução encontrada por Kelsen, similar
à que se proporia em matemática, diante de um tal impasse, quando se criou os
números imaginários – mas esse não é o momento de adentrar em considerações
desse gênero, de resto expendidas em nossa “Teoria da Ciência Jurídica” e em
outras oportunidades -,[4] foi a de considerar sua norma fundamental como uma norma fictícia,
norma em sentido figurado (fingierte),
um “como se”, no sentido da filosofia do “como se” de Hans Vaihinger.[5] O propósito maior da obra,[6] como reconhece ao final seu A. - em sua auto-proclamada
teoria “idealístico(-crítica)-positivista”, de matriz, a um só tempo, kantiana
e nietzscheana -, é diferenciar ficções de hipóteses, enquanto recursos
heurísticos. No capítulo próprio, a respeito (Parte I, Cap. XXI, p. 87 ss. da
ed. cit.), as primeiras são apresentadas como conscientemente inventadas, sem
pretensão de serem verdadeiras, no sentido de corresponderem à realidade, tal
como as hipóteses, que devem ser prováveis (e comprováveis), enquanto as
ficções, por seu turno, devem ser úteis para fazer avançar o conhecimento,
dando como resolvidas questões que se apresentam como obstáculos para este
avanço. Daí que, ao final da obra, o A. apresente como exemplo típico de ficção
os dogmas da teologia – em passagem que será lembrada por Freud, em sua
apreciação psicanalítica da religião, no texto “O Futuro de uma Ilusão” - ,
assim como antes apontara o direito e a matemática como as disciplinas que mais
se valem do recurso para resolver seus problemas, por meio de uma formalização
que as tornaria muito similares, estruturalmente - Vaihinger se refere a um
“parentesco fundamental (prinzipielle
Verwandschaft)” -, na medida em que abstraem especificidades dos objetos
reais para subsumi-los a proposições generalizantes (abstrakte Verallgemeinerunge – id.
ib., Cap. XI, p. 56 ss.), a fim de equipará-los por analogia e realizar
cadeias dedutivas (ib., Cap. V, p. 32
s.). Tratar uma assertiva como do domínio da ficção, portanto, é vedar de
antemão a sua possibilidade de corresponder à realidade, enquanto a hipótese
implica a pretensão de, possivelmente, se confirmar.[7]
2. O Direito como parte do mundo criado pelo desejo
O mundo
da ficção é um mundo de possibilidades reduzidas, onde não se pode saber sobre
o que não nos é dado a conhecer pelos responsáveis por sua criação. Existir
como uma ficção é existir menos do que o que existe realmente, pois é nesta
última forma de existência, e não naquela, em que logicamente tudo pode
acontecer, desde que não implique em contradição com o que já existe, enquanto
a coerência narrativa, a consistência entre o ocorrido antes e depois - que
segundo Dworkin é o que se deve esperar encontrar e, logo, cobrar, no Direito -, seria a um só tempo, mais vaga
e mais constringente, para determinar o que pode acontecer. Daí se poder falar,
com o importante fenomenólogo polonês Roman Ingarden, de uma “incompletude
ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o que nos informa o
seu “demiurgo”, que no caso da literatura são os autores das obras ficcionais. [8] Assim,
os juízos realizados no âmbito deste universo ficcional diferem daqueles feitos
a respeito da realidade propriamente dita, a ponto de se poder denominá-los,
como o fez Roman Ingarden, “quase-juízos”, inaptos a serem considerados
“verdadeiros” ou “falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da
realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer dos juízos em
outros âmbitos, como em Direito, que se referem a um possível “estado de
coisas” (state of affairs, Sachverhalte). Este não é de se considerar
uma simulação da realidade, mas uma outra realidade, de uma outra natureza –
deontológica, no caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente
ontológica, do ser (ontos, em grego
antigo) -, humanamente construída, sim, tal como a ficção, mas de modo
coletivo, difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós COMO SE
realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não apenas podemos, se quisermos
-, e isso para evitar que, em razão do descrédito, se venha a sofrer
conseqüências, bem reais, como são as sanções jurídicas.
O
Direito, então, disponibiliza aos que a ele se encontram sujeitos, e que em
face dele se tornam sujeitos passíveis da aquisição de direitos e obrigações
correlatas, meios de produzir uma
história, vinculante para os que nela tomarem parte, e vinculando-os a
partir da obediência ao que se encontre previamente estabelecido pelo Direito,
enquanto apto a desempenhar a função no enredo que nele pretendam os envolvidos
adotar, a fim de atingirem suas finalidades e propósitos, com respaldo
jurídico. Aqui é elucidativa a analogia com o jogo, como o xadrez, com suas
possibilidades virtualmente infinitas de jogadas, a partir da estipulação de
como podem se mover no tabuleiro suas peças, sendo a definição prévia do que
pode fazer qual peça absolutamente essencial para que se possa avaliar, ao
longo de um jogo, se ainda se continua jogando xadrez ou se, por atribuir,
ainda que seja a uma só peça, funções outras, imprevistas, não se
descaracterizaria, com ela, o próprio jogo, restando apenas a aparência do jogo
original, pela permanência de figuras que não se pode mais considerar como,
efetivamente, aquelas de um verdadeiro jogo de xadrez, de acordo com suas
definições estipulatórias. Essa dependência do jogo em relação às suas regras
constitutivas foi mostrada em uma passagem bem conhecida de suas “Investigações
Filosóficas” por Ludwig Wittgenstein, sendo transposta para a reflexão
jusfilosófica por um seu discípulo, Herbert Hart, ao considerar a norma
jurídica uma prática social, em tudo e por tudo similar àquelas dos jogos.
Aliás, o jogo é também uma ficção, um combate fictício, engendrado para dar
vazão aos anseios lúdicos, agônicos, do ser humano, tão bem estudados por
Huizinga em seu clássico “Homo Ludens”.
Entende-se, assim, a proposta feita recentemente por Giorgio Agamben,[9] no
sentido de que aos filósofos, como às crianças – e, de nossa parte,
acrescentaríamos os poetas -, caberia a descoberta de novas dimensões para os
usos comuns dos meios que se encontram a disposição para atingir certos fins -
jurídicos, econômicos, políticos etc. -, tornando-os inúteis para tais
finalidades, no mesmo gesto em que os utilizam para outras finalidades, mais
diretamente prazerosas, como jogar.
O
direito é, portanto, parte desse universo lúdico, criação do desejo humano, um
modo de imaginar o real em descrições que façam sentido, como diria o
antropólogo Cliford Geertz.[10] Ora, em um mundo concebido
(nietzscheanamente) como sonho (de deidades que são o aspecto subjetivo do
cosmo, entendido como uma diacosmese,
uma epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu modo, de
múltiplas formas, expressa o cosmo em sua totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio
luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e com maior
facilidade do que na realidade fixada por nossos hábitos, pois ele não só varia
muito mais no tempo e no espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço
próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia, filosófica,
totalmente diversa daquela astronômica, que é como se pode conceber, por
exemplo, os esforços da psicanálise.[11] É
certo que nisso a filosofia, assim como a ficção e, com anterioridade, o mito,
seja na magia, seja na religião,[12] demonstra-se “constituinte de mundo” (weltbildend), mas se não é propriamente
ficcional o modo de existência originário do mundo, a ser captado pela
filosofia, e vazado nos moldes cunhados pelo Direito, qual seria o seu
estatuto? A proposta que aqui se avança é a de que ele é da ordem do desejo,
considerando-se a expressão como formulada utilizando o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja, como sendo o mundo
ao mesmo tempo causa e efeito, ou função, do desejo, do que é mais propriamente
humano, e não da vontade ou de necessidades, que geram interesses, como defende
o utilitarismo tecnicista hoje predominante.
Ao considerarmos o mundo, tal como o
concebemos, representamos, imaginamos, como um produto do desejo lhe conferimos
o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico, imaginário.
Tratar-se-ia, então, de algo como um sonho coletivo, construído a partir do que
já é dado como sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja,
objetivo, pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha posto, no
passado, visando uma previsão e controle do futuro, contingente, depende também
de sujeitos que o “re-ponha”, no presente, atualizando o que há de ser visto
como potencialidades, realizando possibilidades.[13]
Nesse contexto, é de um saber prático
que se trata, mas do tipo po(i)ético, “criador” de mundo, produtivo, ao invés
daquele seu outro tipo, o técnico, reprodutivo, “explorador” de mundo. Aquele
pode ser caracterizado como o que indica como algo pode ser feito, uma vez que
se decidiu fazê-lo, estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A
teologia, por exemplo, foi considerada um saber prático já por John Duns Scot
(1266 – 1308),[14] mesma época em que os Glosadores da escola de
Bolonha estarão abordando desta maneira o Direito. Também como ele - e antes
dele, influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ -,[15] pode-se defender que do Ser de Deus, o
criador, ser-em-si, deve-se falar como do ser dos entes, as criaturas, em um
sentido unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido
análogo, tal como demonstrou seu sucessor na cátedra dominicana de Paris, o
místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em Heidegger, com sua
afirmação da absoluta diferença (ontológica), estranheza,[16] do Ser
- logo, também de Deus, que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda
que supremo, e maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao contrário
de nós, não ex(ks)iste,[17] pois não “está (iste) fora (ex ou εζ)” e, sim, além, do mundo e de toda
conceitualização, por ser transcendente:[18]
como já afirmavam os medievais, na esteira de Duns Scot, e esse com base em
Avicena, n’Ele coincidem a essência e a existência, ser e realidade, enquanto
nossa essência de entes humanos é a possibilidade - de ser, e também de não
ser.[19]
3. O Direito posto (positivo) poeticamente concebido como
Direito possível
É a partir de tais colocações que
também se abre uma perspectiva para o desenvolvimento, em teoria da ciência
jurídica, em um sentido próprio e atual, isto é, falibilista, porque humana e,
logo, “possibilista”, imaginária. O direito, então, ao invés de positivo, positum, dado, objetivamente, há de ser
concebido antes como possível, imaginário, pois a ficção é a verdade do
direito, e o direito é a camuflagem do poder, apropriado e exercido pelos
“autores-intérpretes” desta grande montagem, que é a sociedade. Isso porque o
que é verdadeiro e falso, em direito, como na política e setores afins, se
determina pela “coerência da narrativa” (Dworkin, MacCormick), tendo toda
verdade a estrutura de uma ficção, de montagem teatral – fictio figura veritatis, conforme a máxima dos glosadores, lembrada
por Ernst H. Kantorowicz e, na esteira deste, Pierre Legendre.[20]
Daí ser o tipo de discurso que é
desenvolvido no âmbito da teoria jurídica de se considerar, em um sentido
amplo, um discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético” (do grego poiésis, “fazer”, “produzir”, “criar”),
já por podermos imaginar várias versões para a história da origem do humano,
permanecendo sempre o mesmo desfecho, a saber, o de sermos um ser produzido
pelas proibições que se nos impõem e, logo, também, nos impomos.
Na atual concepção epistemológica, em
lógica e matemática, assim como na física e ciências em geral, “encontra-se o
real como um caso particular do possível”.[21] É certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em
microfísica ou física quântica, como indicado acima, que instaurou a
possibilidade (ou a “indeterminação”) no próprio cerne dos fenômenos estudados
nesse nível, pois uma molécula ativada por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material, como pode
reemitir o seu ganho de energia sob a forma de radiação, ou ainda entrar em
reação química com outras moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em energia.[22]
Com isso, as ciências vão ao encontro
daquela antropologia fundamental, que a partir de poetas-filósofos como
Novalis, para quem o homem é o autor de sua realidade, ou teólogos-filósofos,
como Kiergegaard, para quem o homem é aquele ser que deve educar-se no
possível, podendo se remontar ainda a Ortega y Gasset e Heidegger, bem como,
antes deles, Nietzsche, para que chegue a nos caracterizar nosso Vicente
Ferreira da Silva - lamentavelmente falecido antes dos cinqüenta anos, em fins
da década de 1960 -, em confronto com as coisas (ta onta), da seguinte maneira: “Enquanto a coisa vive cerrada em si
mesma numa compressão infinita e limitante, o homem como subjetividade está
envolto num horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e somente
através deste possível pode ser profundamente compreendido”.[23]
Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar
para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O discurso, para ser
verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser construído tomando
elementos da realidade, do que compartilhamos de mais elementar, completando-os
e, por assim dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os que
temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos maiores desejos, os
desejos de saber. “Tampouco isto foi descoberto pela razão”, podemos dizer com
Kierkegaard,[24] “posto
que esta fala pela boca do paradoxo se diz a si mesma: as comédias, as novelas
e as mentiras têm de ser verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam
seus objetivos.
Daí
podermos postular a produção de um discurso puramente imaginativo, e bastante
revelador. Neste sentido, me parece que um dos objetivos seria o de realizar,
no campo do pensamento, o que no campo puramente ficcional certos autores realizam
quando fazem o que Deleuze/Guattari chamam de “literatura menor”,[25]
que é a literatura sempre política e necessariamente revolucionária daqueles
que estão à margem, “desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer
literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o domínio político e
lingüístico no território em que habita o povo dominado – lembremos, aqui, que
em sua origem romano, o territorium é
o local onde se demarca o dominium
pelo exercício do terror. Entende-se,
assim, porque aquilo de mais destaque que se tem produzido em nosso País , em termos
culturais, é de se considerar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não
estou pensando apenas na literatura em um sentido mais tradicional, mas também
em gêneros como a música popular e as telenovelas. Aqui pode-se falar em uma
“hermenêutica imaginativa”, tal como é preconizada por Márcia Sá Cavalcante
Schuback,[26] a fim
de termos melhor acesso a autores marcados pela uma visão teologia, com são os
medievais, dos quais também nos ocuparemos, ao longo do presente estudo, em que
se busca recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento desde suas
origens filosóficas até o presente – “tradição” aqui entendida como propõe
Husserl no manuscrito sobre a origem da geometria
escrito em 1936,[27]
nos seguintes termos: “A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir
da qual o inquérito regressivo começa, é uma tradição. Nossa existência humana
se move dentro de inumeráveis tradições. O mundo cultural todo, em todas as
suas formas, existe por meio da tradição. Estas formas surgiram como tal não
apenas casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente tradição,
tendo surgido dentro do nosso espaço humano através da atividade humana, isto
é, espiritualmente, mesmo embora geralmente nada saibamos, ou quase nada, da
proveniência particular e da origem espiritual que as trouxeram. E ainda lá jaz
nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e essencialmente, um
conhecimento implícito que pode, assim também, ser tornado explícito, um conhecimento
da evidência inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais como:
que tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de acordo com isto homens
passados e civilizações humanas existiram, e entre elas seus primeiros
inventores, que modelaram o novo a partir de materiais à mão, quer fossem
brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície, contudo, é–se levado às
profundezas. A tradição é aberta deste modo geral a inquérito contínuo; e se se
mantiver consistentemente a direção do inquérito, uma infinidade de questões
que ainda está presente para nós, e ainda está sendo elaborada num
desenvolvimento vivo, se descortinam questões que levam a respostas definidas
de acordo com o seu sentido”.[28]
Do que se trata, então, é
verdadeiramente de realizar um trabalho imaginativo, conscientemente ficcional,
que se avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim que, dessa perspectiva,
mitologia, filosofia, direito ou religião e mesmo as ciências são literatura,
ficções, pois o que se pretende fazer é contar uma história o melhor possível,
para torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo quando se
diz, como o jurista romano do século II, depois teólogo cristão, o primeiro,
além de filósofo, Tertuliano: creio,
ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo. Nesse contexto, vale
recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última publicação:[29]
“Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são
passagens da vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido,
impedido, colmatado .(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas
antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto de sintomas
cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um
empreendimento de saúde: (...) A saúde como literatura, como escrita, consiste
em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo.
(...) Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento
coletivo de enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência no
delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma
possibilidade de vida. Escrever por este povo que falta...(...) ‘Cada escritor
é obrigado a fabricar para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente e
ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que
constitui as Idéias”.
Cabe agora distinguir as implicações
políticas, epistemológicas e metafísicas do possibilismo da Teoria Imaginária
do Direito, em confronto com aquelas do positivismo. O positivismo, como não se
costuma salientar, tem diversos sentidos, conforme se apresente como uma
ideologia de obediência ao que determinam as normas jurídicas, sem consideração
quanto ao seu conteúdo, pelo simples fato de terem emanado de um poder
soberano, posição que se encontra associada à figura de Thomas Hobbes,[30]
assim como em termos epistemológicos a referência é o cientificismo mecanicista
e anti-metafísico de Augusto Comte, com suas variantes mais recentes, como são
aquelas do Círculo de Viena. Tanto em um caso como no outro, porém, a matriz é
metafísica, e pode ser caracterizada como sendo um formalismo, que teve na
filosofia transcendental de Kant a sua culminância.
O
sentido comum do termo “formalismo” é o de importância desmedida concedida às
formalidades, ao que é exterior, em detrimento do que é substancial e realmente
importa. Daí já se extrai uma indicação valiosa do que seria o sentido
filosófico, que consiste em negar a existência real do conteúdo, para
reconhecer somente a da forma – ou, em uma versão menos radical, mas próxima
daquela defendida pelo grande patrocinador da chamada “distinção formal”, na
Baixa Idade Média, John Duns Scot,[31] simplesmente a possibilidade da existência
independente da forma em relação ao conteúdo de um objeto.
Diferentes
serão os sentidos do formalismo, segundo o contexto de aplicação seja a lógica,
a filosofia da matemática, a gnosiologia, a ética ou a estética, mas sempre com
a idéia de preponderância da forma sobre a matéria.
Bastante
impulsionado por Immanuel Kant, o formalismo lógico atribui um caráter
puramente formal aos princípios e leis da lógica, e portanto tende a tomá-los
como meras convenções. O conjunto das proposições e predicações lógicas
formariam uma totalidade autônoma, radicalmente separada das conexões reais
entre os seres ou as partes do ser, os entes, marcando uma oposição à lógica
metafísica dos escolásticos, inspirada em Aristóteles, para a qual os
princípios lógicos têm intrinsecamente um alcance ontológico, isto é, não valem
só para as conexões de idéias, mas também para as coisas reais. É essa mesma
ênfase na forma que será aplicada para estabelecer as leis matemáticas e
operações delas derivadas. Um certo formalismo é inerente a todo pensamento
matemático: uma expressão (tautológica) como a + b = b + a é puramente formal,
pois se aplica a quaisquer números ou objetos e não tem matéria determinada. O
formalismo estende esse caráter puramente formal a todas as relações
matemáticas e toma os números como formas convencionais. Estabelece-se assim
uma fronteira rigorosa entre as matemáticas e a filosofia da matemática: a
redução dos sistemas matemáticos a meras construções formais permite evitar
questões filosóficas complicadas, de corte metafísico, como a natureza dos
números e o significado do "verdadeiro" e "falso" em matemática. Por
essa razão, muitos matemáticos adotam o formalismo como mero expediente
prático, sem aderir a ele expressamente. Na verdade, segundo o formalismo, não
existem objetos matemáticos. A Matemática consiste apenas em axiomas,
definições e teoremas, ou seja, em fórmulas. No limite, existem regras pelas quais
se deduz uma fórmula a partir de uma outra. Mas as fórmulas não são acerca de
coisa alguma: são apenas combinações de símbolos. É claro que os formalistas
sabem que as fórmulas matemáticas se aplicam por vezes a problemas físicos.
Quando se dá a uma fórmula uma interpretação física, ela ganha um significado,
e pode então ser verdadeira ou falsa. Mas esta veracidade ou falsidade tem a ver
com a própria interpretação física. Enquanto fórmula puramente matemática ela
não tem significado nem valor lógico. Contra uma tal concepção, pelo que tem de
nefasto para o pensamento, insurgiu-se Husserl em seu último grande esforço
filosófico, consubstanciado na obra “A Crise da Ciência Européia e a
Fenomenologia Transcendental” (abrev.: “Krisis”). [32]
4. Crítica fenomenológica do formalismo científico
Em linhas gerais, pode-se dizer quanto
ao pensamento husserliano que irá partir de uma crítica aos limites impostos ao
conhecimento pela filosofia de Descartes, Kant e Hegel, ao afirmar que o
pensamento dos citados filósofos não era “rigoroso”, já que não consideravam
devidamente em suas construções a subjetividade humana, focalizando apenas o
objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações acerca do objeto
eram, elas mesmas, “construções mentais”. A subjetividade, enquanto consciência
intencional, dirigida aos objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade
indubitável para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido que,
no processo de consideração da subjetividade humana, é necessário assumir uma
“atitude fenomenológica”: já que o homem é um “ser no mundo” e, portanto,
participante dele, deve assumir essa postura e se contrapor a uma “atitude
natural”, que é aquela de ser “possuído pelo mundo”, desconfiando de toda e
qualquer evidência ou obviedade, sejam aquelas do senso comum, sejam as das
ciências, sendo essa a tarefa própria da filosofia. Não existe, portanto, para
a fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto, visto que a relação
entre o sujeito e o objeto é sempre intencional: o objeto se torna tal a partir
do olhar do sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de
objetos em particular, capta sua essência, o que necessariamente lhe constitui,
donde se falar em Wesenschau –
literalmente, “visão da essência” ou, no sentido fenomenológico, intuição.
Assim, para a Fenomenologia, o ser é um ser de relação, e não uma substância,
como tradicionalmente vinha sendo pensado, desde os antigos gregos. Dessa
forma, para ele, tanto o ser quanto o mundo só existem na relação ser-mundo,
não fazendo sentido, portanto, como ressalta aquele que seria o maior dentre os
seus muitos discípulos, caso não tivesse estabelecido uma dissidência, a saber,
Martin Heidegger, no § 9 de Prolegomena
zur Geschichte des Zeitbegriff,[33]
entender-se o fenômeno estudado pela fenomenologia husserliana como uma
aparência que oculta uma essência ininteligível, pois esse fenômeno é
caracterizado pelo encontro mesmo entre uma consciência com o que para ela se
revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo, dá consistência de objeto
a essas “revelações”.
O texto
da “Krisis”, de 1936, vai apontar a
rebeldia de Galileu frente ao intuicionismo espontâneo como a origem mesma das
modernas ciências da natureza, por ele ter sido alguém que teve a idéia de
aplicar à natureza física o mesmo método de objetivação aplicado na geometria,
cujos traços fundamentais, segundo Husserl, são (1) a idealização e (2) a
construção.
Husserl
(“Krisis”, § 9a), opõe o objeto
intuitivamente dado aos objetos ideais da geometria, sendo que os primeiros são
dados em um mundo circundante intuitivo, inexato, avesso à objetivação, ao
contrário daquele mundo matemático, em que são objetivados, como verdades em
si, “irrelativas”, ou seja, absolutas, por não serem relativas a algo, de que
seriam a representação aproximada. No “mundo real” temos a experiência de
corpos, com forma e conteúdo constituídos pelas qualidades sensíveis, quer
dizer, pensáveis em uma certa gradação, como mais ou menos planos, retos ou
circulares, e assim por diante – longe, portanto, da exatidão de uma forma
geométrica. Essas coisas, reais, em todas as suas propriedades, estão sujeitas
a uma certa oscilação, donde sua igualdade, postulada em uma função, tanto a si
mesma como a outra coisa, ser puramente aproximativa, valendo o mesmo para as
figuras, relações etc. O que significa esse caráter meramente aproximativo do
mundo intuitivo? Ser ele subjetivo-relativo: o que parece reto a Pedro pode não
sê-lo para Paulo. Essa subjetividade implica na inexatidão inscrita nesse
mundo, onde nunca haverá verdade em si, válida para todos, objetivamente
válida. Logo, a geometria lida com um
método idealizante, para operar com idéias, e não com coisas, o que requer a
passagem das formas reais para as ideais, formas-limites, contruídas: no lugar
de qualquer práxis real tem-se uma práxis ideal, do pensamento puro. O
movimento de um ponto, por exemplo, produz uma reta, e o movimento circular da
reta produz o círculo e assim por diante. Desse modo, consegue-se a exatidão
que não há na práxis empírica, determinando aquelas formas em sua identidade
absoluta, com propriedades absolutamente idênticas, determináveis de modo unívoco.
Dadas as formas elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas
formas de maneira metódica, com um método que garante verdades para todos os
que o praticarem. Ora, a estrutura literalmente circular desta forma de
pensamento fica evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um
círculo diminuto, tal como feito de início, na tentativa de forjar uma
concepção geométrica mais fidedigna em relação às pesquisas da física quântica
sobre a estrutura do real.
Quanto a
saber se haveria continuidade entre os dois mundos, aquele real e o ideal,
Husserl entende que de maneira alguma – são domínios separados por um abismo,
visto que o ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação
imaginária das formas sensíveis (cf. “Krisis”,
§ 9, passim). Por isso que a reta será melhor representada como uma
continuidade imaginária dos pontos em que se tocam a série de círculos que são
os pontos, postos lado a lado, pois assim fica evidenciada a verdadeira
descontinuidade, o “corte de Dedekind”, que a imagem da reta nos oculta.
Com a
ciência moderna, surge a idéia de uma natureza construtivamente determinada em
todos os seus aspectos. Agora não se trata de aplicar a matemática à empiria,
como já Platão – ou, antes dele, Pitágoras - o preconizara, mas sim idealizar a
natureza, transformando-a em si em uma idéia, onde ela própria é idealizada,
sob a direção da norma matemática, tornado-se ela mesma um múltiplo da
matemática. E com isso, o mundo da vida intuitiva é substituído por um mundo
matemático de idealidades, começando uma história de sobreposição deste à
natureza pré-científica. As ciências exatas – que em “Idéias para uma
Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica” (abrev.: “Ideen”), III, § 18,
Husserl qualifica de “dogmáticas” – mascaram a trivialidade de que na
vida cotidiana não encontramos correspondência com a idealidade, existentes em
um espaço geométrico e em um tempo matematizado. Daí decorre a “alienação
técnica das ciências”, a que se refere Husserl no § 9 lets. f, g, do texto da “Krisis”, com a busca desenfreada por
fórmulas que nos permitam chegar a ver o ser verdadeiro da natureza, já
anteriormente idealizada, fórmulas essa submetidas a uma algebrização, a qual,
inicialmente, amplia as possibilidades do pensamento, tornando-o livre e
purificado de qualquer referência intuitiva, com o que o desconecta do
fundamento de validade, fonte originária de toda verdade.
Nesse
contexto, de fabricação da ciência, o cientista é mero operário ou, quando
muito, um engenheiro, tal como já consta em “Ideen”, III – já o filósofo é caracterizado em “Krisis” como um “funcionário da
humanidade”. Aos cientistas é que se referia Husserl, ao dizer que operam
segundo regras de um jogo, enquanto o pensamento originário, o que confere
sentido e verdade, “simbolizante”, imaginativo, fica excluído, em face do
simbolismo formalista. Afastar tal alienação técnica, saindo dos signos
exteriores para os conceitos, partindo da intuição, como preconiza Husserl, é
acabar o “jogo” das operações meramente computacionais, com seu formalismo
estéril.
Com
Hilbert, deu-se o impulso maior ao formalismo, em filosofia da aritmética, a qual
ele pretendia demonstrar ser a base de toda a matemática, uma vez encontrada
uma técnica por meio da qual se pudesse clarificar, de uma vez por todas, que a
matemática estava livre de contradições, o que foi posto por terra pelo célebre
teorema da incompletude de Gödel.[34]
Segundo Kant, as formas de cognição
próprias ao ser humano predeterminam o conteúdo de nossos conhecimentos
possíveis. Estamos presos a elas e delas não podemos sair para apreender
"as coisas em si". Por exemplo, espaço e tempo não são
"realidades", mas formas, internas (e inatas) à mente humana, nas
quais enquadramos os dados que recebemos do real, de modo que nada percebemos
fora do quadro espaço-temporal que nos é próprio. Do mesmo modo, há formas de
pensamento lógico (categorias como "existência" e
"inexistência") que também funcionam como filtros - e sabemos por
antecipação que nada chegará a nosso conhecimento sem passar por esses filtros.
Ainda
segundo Kant, a ética deve limitar-se a emitir regras formais, sem matéria
definida. Por "matéria" de um juízo ético Kant entende os bens ou
males determinados, que ele recomenda ou proíbe. Uma "ética material"
teria de provar logicamente a superioridade de certos bens sobre outros, o que
para Kant é impossível. Regra ética formal é a que vale para quaisquer bens
indeterminados. E se isso pode ser contestado em tema de ética, como
efetivamente o tem sido, entre outros, por Max Scheler, com seu enfoque
fenomenológico, assim como, em termos de ciência do direito, da perspectiva tão
difundida de Hans Kelsen, que propõe a consideração dita científica
(positivista) do Direito apenas como um conjunto de normas já dadas, a ser
estudado por um sistema consistente de objetos puramente formais, sem discussão
de seus conteúdos, é que se atingiria a possibilidade do conhecimento
científico.
Justamente
contra essa perspectiva é que nos insurgimos, verberando argumentos como os que
defendem, em filosofia da matemática, os intuicionista, Luitzen Brouwer a
frente, tendo ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o seu
mestre, Weierstraß. A prática da matemática, para Brouwer, como explica Jairo
José da Silva,[35] “não se constituía na derivação de teoremas,
no interior de uma lógica determinada a
priori, como para os logicistas e formalistas, mas no exercício criativo de
uma consciência matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está
sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o intuicionismo, enquanto
vivência de uma consciência moldada pelo sentido interno, que é o tempo, a
investigação matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não é
aprioristicamente limitado ou universalmente pré-determinado. Toda construção
que extrapole a intuição fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica,
concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre com os conjuntos
infinitos, dos quais a matemática usa e abusa, sem que deles possa oferecer um
verdadeiro conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita pode ser
efetivamente construída numa seqüência finita de momentos – e também por
vivermos, até onde nos é dado perceber,
em um mundo materialmente finito, oriundo de um evento singularíssimo, o assim
chamado “big bang”.
A
subjetividade transcendental, por seu turno, como bem demonstra Alexandre
Fradique Morujão,[36] é
quem vai pôr o mundo “entre parênteses”, por meio da redução
fenomenológico-transcendental (a epoché do
ceticismo pirrônico, com o significado que lhe atribuiu Husserl), depurando,
assim, desse mundo (natural) o eu que é seu correlato intencional, visto que
“(N)o sentido fenomenológico só há mundo para mim e só há eu na correlação
mundana intencional”.[37]
Isso porque o fenômeno, para a fenomenologia husserliana, é esse “correlato
real ou possível de determinados modos de doação intencionais” (id. ib., p. 116), modo esses que são
modos de doação do mundo – o qual, parafraseando a passagem bíblica, se precisa
inicialmente perder para depois recuperá-lo, “ganhando-o”. Escapando do mundo
pela epoché, seguida da redução
fenomenológica, o eu, agora (mais) livre, pode lhe atribuir sentido, o que já
exige que ele saia do solipsismo, de seu estado de mônada (como diria Leibniz),
irredutivelmente fechada em si, abrindo-se para o “nós” ou pluralidade de “eus”
que há em si, em cada um de nós.[38] Por essa via, a reflexão fenomenológica, tal
como atestam trabalhos ainda inéditos de Husserl,[39]
chega a uma “totalidade absoluta das mônadas”, denominada “personalidade total”
(na “Krisis”, § 55, pp. 191/192,
linhas 39/01, há referência a “personalidades de ordens superiores”, com
sentido crescentemente transcendental e, assim, absoluto), fundamento mais
íntimo do eu transcendental, que é também um “eu”, só que de um tipo todo
especial, por ser Deus, “intuível reflexivamente como uma ultra-realidade,
supra-verdade e ultra em si”.[40]
Ora, o
conjunto de mônadas, que é uma “super-mônada”, a qual se pode se indicar com a
denominação de “Deus”, há de ser concebido como este círculo, que foi reduzido
ao “ponto” da geometria clássica, formado por uma infinidade de outros círculos
ou “pontos”, as “rei” (plural de res, em latim, a causa jurídica, o
litígio, que se traduz também por coisa) ou coisas que compõem a assim chamada
re(i)alidade, todas passíveis de
serem concebidas abstratamente como círculos que são abrangidos por um círculo
maior, no qual, portanto, são imanentes, mas que, por este círculo maior a eles
não se reduzir, ele seria, em relação aos círculos menores, transcendente.[41]
5. Proposta de reordenação das formas de conhecimento
legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou “escatológicas”.
Eis que assim nos pomos em condição de
propor os vetores de investigação da totalidade do real, como uma parte do imaginário,
dividido por um eixo horizontal atravessado por um outro, vertical, onde na
parte superior está o transcendente, assim como na parte inferior está o
imanente. Já na parte anterior, do eixo horizontal, tem-se a investigação
causal-explicativa, praticada pelas ciências naturais, e que também pode ser
dita arqueológica, no sentido em que Michel Foucault propôs uma arqueologia do
saber,[42]
ou também “arcôntica” (archontisch),
como refere Heidegger,[43] desde que praticada no plano
histórico, transcendente (parte superior esquerda do diagrama proposto), ao
invés daquele natural, imanente (parte inferior esquerda o mesmo). E na parte
posterior deste mesmo eixo (portanto, à direita do diagrama) é que se tem
localizada a investigação ou elaboração mais puramente imaginativa, voltada não
para a busca retrospectiva de causas originárias, as “archai” (do grego arché,
que quer dizer “causa”, sendo termo originário do vocabulário
jurídico-político, pois significa também o poder de decidir do arc[h]onte), mas
sim para a formulação prospectiva, escatológica,[44] do sentido, tal como se faz no âmbito da
poética, seja ela artística, ou (também) teológica, tal como refere
Giambattista Vico, com uma conotação igualmente jurídica, ou jurídico-política,
“civil”,[45] sendo
esta última de se considerar como imanente (parte inferior à direita do
diagrama proposto), enquanto aquelas são transcendentes (parte superior à
direita).
Em meados do século XX, a obra de
Theodor Viehweg, “Tópica e Jurisprudência” (melhor traduzindo Topik und Juriprudenz: Tópica e Ciência
do Direito) teve grande impacto na filosofia jurídica e, mesmo, na filosofia em
geral, ao postular um retorno a Vico para resgatar a racionalidade
argumentativa ínsita a disciplinas, como a tópica e a retórica, desacreditadas
pelo racionalismo cientificista da (primeira) modernidade, então caído ele
próprio em descrédito, em face dos horrores das duas grandes guerras mundiais,
impulsionadas pelo avanço do conhecimento, que ao invés de trazer a esperada
melhoria das condições da humanidade a estava, então como ainda agora,
ameaçando com a extinção. É preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos
que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da racionalidade
contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o húmus da cultura donde emerge o
humano: a capacidade simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas
formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e produto) do esforço
de produção de um sentido para a existência desse ser em aberto, livre, que somos.
Do que faz falta, então, é de promover
uma (re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que científico e
mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e sua exposição. Com
isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de
filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os filósofos,
normalmente aqueles do passado e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos,
que ousaram, ou ainda ousam, elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”,
aqui, entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este pensamento tanto
aparece como original, originário do próprio sujeito, como apropriado ao que se
pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto,
realizar um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros científicos,
sejam das ciências humanas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá,
comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, entendemos que significa
desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa tratar em filosofia,
desviando-se para um caminho técnico, no qual se exaure o modo mais originário
de questionamento filosófico, que é metafísico ou, como acima referido,
“archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando aberto ao transcendente,
à discussão do sentido da existência de si, ou seja da vida e da morte, bem
como dos demais e do próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo
simbolismo “mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa maneira,
estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada ainda na passagem do séc.
XIX para o seguinte pelo filósofo cearense Farias Brito, que entendia deveriam
filosofia, ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio ativo (e
regenerador) do pensamento, dirigindo-o, respectivamente, para o bem, o
verdadeiro e o belo.[46]
Assim, mesmo sendo da filosofia que
resultou a postura científica de tratar as questões (sua epistéme, para dizer em grego, empregando expressão hoje consagrada
no jargão filosófico), aquilo que se pretenda conhecer/saber pela filosofia sobre
este aspecto de último referido, é justamente o que não interessa às ciências,
do que elas não se ocupam, até porque as põe em questão: elas próprias, seus
objetivos, para além do conhecimento que fornecem e das possibilidades de
ação/interação/alteração do que estudam. Mesmo uma “ciência da ciência” não
levaria a uma tal filosofia, pois não se voltaria para pensar o que aqui se
propõe deva acolher uma nova teoria, metafilosófica, (mito)poética, aqui qualificada de “imaginária”, por
imaginativa – situada naquele plano que Henry Courbin denominou de “imaginal”
-, havendo urgência nesse acolhimento, perfeitamente factível, tendo em vista
que a filosofia já esteve voltada para esse modo de pensar e o levava em conta
– aliás, em alta conta, como atesta, por exemplo, o que nos restou de obras
como a Poética de Aristóteles, a
partir da qual Olavo de Carvalho propõe se deva (re)ler o conjunto desta obra
fundadora do pensamento ocidental,[47]
ou já na chamada época moderna colocações como aquelas antes referidas de Vico
-, antes de se perder e exaurir nas ciências. Inclusive, a própria palavra
“filosofia, etimologicamente, fora utilizada de maneira esparsa por
“Pré-Socráticos” como Heráclito de Éfeso e Pitágoras (membros da Escola dita Pitagórica,
localizada na região da atual Sicília), mas só foi efetivamente difundida a
partir de Atenas, graças a Sócrates e seus seguidores, havendo nela a philia, referência a um anelo, uma
aspiração, por uma forma extra-ordinária de saber, a sophia, que não é da ordem natural apenas, como aquele dos que, a
exemplo de Thales, Parmênides, Zenão, Leucipo, Demócrito, investigavam o fundamento (arché) ou fundamentos (archai) da physis, sobre ela elaborando um discurso logos – em geral, da maneira que então se entendia ser a mais
adequada para a transmissão e fixação do saber,ou seja,em versos, quer dizer,
poeticamente -, donde serem melhor denominados, como o fez Aristóteles na Metafísica, “fisiólogos”, physiologoi (de physis
+ logos, pl. logoi), até porque dentre eles se tem contemporâneos e pósteros de
Sócrates.
A urgência desse pensamento em nosso
tempo se explica justamente em razão do que nele vem-se produzindo, sob a
influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e o pensamento
técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez mais remete ao pensamento que a
filosofia tornou científico, e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que
hoje – e desde já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu embrionariamente
enquanto técnica, faltando apenas o encontro histórico com a filosofia,
primeiro, e, depois, com a religião monoteísta e personalista, de Deus
onipotente feito homem, o cristianismo, para que se verificassem os
pressupostos mais importantes, no plano ideológico, imaginário, de seu completo
desenvolvimento – eis que se tem uma origem metafísica teológica da ciência e
de sua(s) técnica(s).[48]
Para Platão, por exemplo,
a filosofia seria "epistéme
epistemés", "ciência da ciência", enquanto Aristóteles, na
"Metafísica" (Livro VII ou zetha,
1), a define como "epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké",
conhecimento dos primeiros princípios e causas explicativos de tudo. Comentando
essa passagem, Heidegger, no texto "Que é isto, a filosofia?",
recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa
vocacionada e competente para uma determinada atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os gregos considerariam
propriamente a ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e
transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de Aristóteles, é
considerado um conhecimento através do qual os homens se ombreariam com os
deuses, devendo, por isso, temer a inveja deles. Uma outra forma de
conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos
denominavam techné, a técnica, um
conhecimento operativo, instrumental e produtivo, limitado e finito, por
voltado ao atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador de
potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars. Então, a epistéme seria algo intermediário entre
essas duas formas de conhecimento, por referir-se à atividade de conhecer a
partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as
explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no
convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias,
inúteis, embora sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos
e, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e
assombramos diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os dois filósofos
gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje
maiores entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto"
(155 d), e Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I
ou alfa, 2). Temos que retornar
sempre a esse momento espantoso, em que o ser se mostra, o qual nos levou a
falar e a nos pormos a caminho de uma busca de explicações, como que para nos
assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na verdade, nos fez
prisioneiros, sem percebermos, pois assim entramos em uma fantasia de
permanência, impedindo-nos de aproveitar bem a oportunidade que temos de,
simplesmente, sermos (experiências do ser).
É certo que antes do saber
científico afirmar sua superioridade, em termos pragmáticos, frente aos demais,
inclusive a filosofia – o saber justamente
de onde as ciências em geral foram colher seu mais forte impulso inicial,
adotando postulados como este apenas mencionado, da contingência e falibilidade
do conhecimento -, foi necessário superar o predomínio de um tipo de
conhecimento que mesmo tendo se
aproveitado bastante da filosofia, até o ponto de tê-la como sua “serva”, veio
a abandoná-la nos momentos cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé.
Este saber é o da teologia, ou o conhecimento de natureza religiosa amparado
teo-logicamente, que irá por muito tempo cercear o desenvolvimento da
perspectiva relativista e imanentista, própria da ciência. Contudo, a ruptura
que a modernidade trará com a supremacia do pensamento teológico, no Ocidente,
foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por teólogos
mal-compreendidos em seu tempo, como Roger Bacon (séc. XIII), com sua
insistência no valor da experimentação para desenvolver o conhecimento, e um
outro, franciscano e britânico como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai
destacar alguns aspectos mais salientes de seu pensamento, que foi Guilherme de
Ockham (séc. XIV), sendo que entre ambos avulta a figura do antes referido John
Duns Scot, a quem se pode conceder os maiores créditos pela introdução de uma
perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente transcendental – e, logo,
moderna –,[49] a ser
desenvolvida posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a teologia, por
Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para citar apenas três dos
maiores responsáveis pelo aprofundamento do que se pode denominar uma
“metafísica do possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para
Avicena (Ibn-Sina).[50]
6. Interlúdio
Metafísico-Teológico
A
teologia (judaico-)cristã da onipotência divina, ao postular um Deus que é pura
onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana
potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras
palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em si
toda a realidade possível. Deste modo, a
hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a
realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente
possível. Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o
real com o possível por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar
de sentido a noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal
modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então
relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais
que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura
e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir uma realidade puramente hipotética. E, assim
como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para
contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido
pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e
exclusivo modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele
cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego
nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser,
linguagem essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido
submetida e também superior ao princípio de não-contradição. Na hipótese
teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da univocidade:
um único modo de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao
princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no
reverso da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de
todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança,
coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade possível.
A
identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à
identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade
unívoca. Daí que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto
ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos
que não pode estar no mesmo nível que as demais, mas sim que deve induzir seus
conteúdos a partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a forma
– se pretende corresponder ao panorama doutrinal inaugurado e presidido pela
hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica do possível,
que é também uma teologia,[51]
mas sem a referência dogmática a um credo religioso qualquer, ambas com
um caráter falibilista, tal como recentemente se reconhece às próprias
ciências, o que a torna possível em um outro sentido, agora
epistemológico, aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade
mostra-se atualmente uma verdadeira necessidade, pela urgência que temos em
estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa
compreensão que seja aceitável como são os resultados científicos, a respeito
de nosso significado cósmico – que se produza, então, uma teologia esvaziada de
qualquer conteúdo religioso específico, para ser a teologia adequada a nossos
tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de superar esse
predomínio, salvando a humanidade de si mesma, enquanto o saber salvífico,
soteriológico, que sempre desde a origem se propôs a ser a filosofia, como as
religiões,[52] e
não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz também.[53]
busca das estruturas
fundamentais de toda realidade inteligível, que não seriam, entretanto,
consideradas como estruturas transcendentais, enquanto condição mesma da
inteligibilidade, nem tampouco estruturas transcendentes, tidas como
originárias de algum plano meta-físico ou teológico.
Centrando-nos
no entendimento do que seriam tais estruturas, tem-se que a estruturalidade implica a negação do simples ou da falta
de conexão e, neste sentido intuitivo, estrutura constitui o conceito
originário ou o fator primeiro de qualquer empreendimento teórico, sua arkhé, para referir a noção fundamental – e
fundante – da filosofia.
No
horizonte de uma tal elaboração, verifica-se a ausência de uma distinção clara
entre metafísica e teologia, até por estarem ambas voltadas para o estudo da
realidade como uma totalidade (de sentido), o que teria contribuído para
obscurecer, na modernidade, os pressupostos dogmático-teológicos ou
“dogmatológicos” nela estruturalmente operantes, retomados de maneira também
indevidamente explicitada no que se pode considerar tentativas contemporâneas
de refundação da ontologia enquanto “ciência primeira” (protê epistéme)
na fenomenologia, com Husserl e, principalmente, em Heidegger, com o sua virada
para a “hermenêutica da facticidade”, conforme se pretende demonstrar, como
também no modo de desenvolvimento das “ciências derivadas”, ou ciências
propriamente ditas.
Para tanto, faz-se necessário
proceder, como o próprio Heidegger, um retorno às origens gregas da metafísica,
tal como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles, o qual
concebeu a continuidade entre a razão e a natureza como reunidas em uma unidade
dinâmica, finita e ordenada, expressa pela linguagem. Neste sentido, pode-se
dizer que aí culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em que
inventa um saber racional, capaz de dar uma resposta unitária aos problemas
suscitados pela tradição anterior, problemas concernentes tanto ao dinamismo da
natureza como ao da própria razão humana. O irredutível de tais problemas,
afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão imediata de captar como difícil
de definir, algo que parece sempre querer escapar a todo intento de delimitação
e que, precisamente por isso, só podemos
designar como o comum a tudo, e, particularmente, como o comum à realidade do
mundo frente ao homem e à realidade do pensamento no homem, isto é, como o
comum à natureza e à razão. Por causa da impossibilidade de sua delimitação, a
realidade do ser não pode ser objeto de nenhuma ciência particular, mas sim de
uma ciência primeira, enquanto se ocupa do que é prévio e pressuposto em todas
as demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como ciências e da
realidade de seus objetos, enquanto as diversas determinações do ser no que é
dado: a realidade irredutível do ser.
Essa ciência primeira é, então,
também “única”, por ser ciência em um sentido totalmente diverso de qualquer
outra, sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época chamavam “teologia”
- e por serem os livros que tratavam a respeito reunidos por Teofrasto, na
organização do corpus essencial
da obra aristotélica, o organon, “após (os livros d)a física” (meta
ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua matéria -,
definida como a ciência que trata do ser enquanto ser, i. e., que trata de sua
realidade mesma - cf. Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.
Daí que, ao tematizar a continuidade
grega entre a razão e a natureza, unidade bifronte de um único dinamismo dado
em sua finitude, Aristóteles funde a ciência da realidade do ser, inaugurando o
que se pode denominar uma metafísica
do real.
O pensamento medieval cristão, ao
partir da noção de um Deus infinito, iria ter sérios problemas na hora de
confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica com a perspectiva
teológica da infinitude, pois um Deus infinito é tudo menos algo dado, e
se esse Deus infinito é tido como o maximamente real ou o real por antonomásia,
o real em si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão será
seriamente ameaçada. As grandes sínteses teológicas medievais, especialmente
aquela mais característica e acatada, a de Tomás de Aquino, resolveriam esta
dificuldade recorrendo ao escalonamento dos graus metafísicos da realidade,
onde Deus possuiria um grau máximo,
infinito, absoluto, enquanto a
realidade das coisas criadas seria finita, relativa e Dele dependente. Isto
supunha, em contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante limitado,
acesso do homem ao conhecimento da realidade de Deus, pelo qual, em princípio,
seria possível ter uma noção aproximada dela mediante o procedimento de elevar
ao infinito as perfeições da natureza (idéias) e os valores da razão (fins),
obtendo assim um vislumbre de quais poderiam ser os atributos da divindade.
Esta solução, que implicava em atribuir a Deus caracteres próprios do binômio
natureza-razão, particularmente os arquétipos naturais (idéias divinas) e os
valores racionais (fins divinos), permitiu a Tomás de Aquino salvar o essencial
da metafísica aristotélica e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos
fossem parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era a metafísica
do ser real.
Os teólogos críticos da escolástica
tardia, principalmente Duns Scot e, de uma maneira ainda mais radical,
Guilherme de Ockham, rechaçaram abertamente este procedimento por considerarem
que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus supunha para com o
binômio natureza/razão, incorria no defeito oposto, quer dizer, desprezava a infinitude
própria da divindade, atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins (racionais) que
só podiam limitar Sua liberdade infinita, isto é, sua onipotência absoluta.
Assim, Duns Scot iria desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao
interpretá-la em um sentido formalista, que excluía expressamente sua aplicação
à existência, com o que cortava todo aceso racional à divindade, já que, por
esta consideração, deixava de haver qualquer coisa em comum entre Deus e
criaturas caracterizadas agora por sua condição de objetos mentais do
pensamento divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o ser
como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria ainda mais longe, ao
pretender para Deus uma transcendência tão absoluta que O situava mais além de
qualquer exigência racional e O definia como pura onipotência infinita, para
além de toda razão e toda natureza, consolidando desse modo a fratura escotista
entre Deus e o binômio razão/natureza, que abriria estruturalmente o campo
inteiro da filosofia moderna. Com efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o
pressuposto ockhamista, segundo o qual nada há de impossível para a vontade
divina, situada para além de todo rasgo de racionalidade e de toda sabedoria
mundana. Isto porque, sendo a vontade divina absolutamente livre, não há nada
na ordem atual da criação que possa indicar de um modo ou outro a essência de
seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto é, a ordem da natureza
racional, não é mais que uma ordem
qualquer entre as infinitas ordens possíveis, nem têm nada em comum com a
essência divina do que pudera ter qualquer outra, imaginável ou não por nós.
Por isso, se no presente mundo o homem foi criado à imagem de Deus, não será na
razão humana onde se pode achar o fundamento dessa semelhança, mas sim no mais
recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade livre do homem, tão livre
como a vontade divina frente a qualquer constrição racional que pudesse empanar
ou limitar sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação e a
renúncia a Deus. O ato da vontade humana pelo qual escolhe salvar-se ou
condenar-se - o mais transcendente, portanto, na vida do homem -,
se exerce, pois, à margem de qualquer instância racional ou natural, e já não
tem lugar no processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas sim no
isolamento interior da privacidade de cada um (consciência). Em outros termos,
esta escolha não pode encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a
racionalidade, e só poderá de agora em diante ser questão de fé, onde a fé –
como a graça – já não implicará um reforço salvífico da natureza criada, mas
sim a abdicação expressa por parte do homem de sua própria razão e de sua
essência humana. Deste modo, tanto Duns Scot como, sobretudo, Guilherme de
Ockham, instauram uma concepção de um Deus infinitamente transcendente que se
situa radicalmente para além de um mundo criado, com o qual deixa de ter
qualquer coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre ambos, como
se fossem conjuntos infinitamente disjuntos. Impossível, por tanto, qualquer
conhecimento racional desse Deus infinitamente não racional por parte da razão
humana. O único laço entre o mundo e Deus se encontra – fora da natureza e da
razão – na recôndita consciência espiritual do ser humano, sob a forma de uma
vontade absolutamente não constrangível por qualquer valor racional em seu ato
de aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se denomina fé. A
relação do homem com Deus, daí em
diante, deverá se desenvolver nesse âmbito irracional – e,
logo, privado –, enquanto a razão comum humana deverá renunciar a todo
intento de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-se a seu
objeto imediato, isto é, o mundo criado que se acha frente a si e que carece de
toda relação com seu Criador.
A teologia da onipotência divina implica,
como parece evidente, uma revisão drástica dos pressupostos filosóficos
precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter aristotélico, que se
baseava, como vimos, na continuidade do binômio razão/natureza (no caso de
Aristóteles), ou do trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino).
A partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer parte desse trinômio
e escapa por inteiro do binômio restante, cujo estatuto ontológico se reduz,
então, ao de mero caso fático entre uma infinitude de mundos possíveis, e cuja
realidade se vê condenada à precariedade irremissível de não ter outro
fundamento para sua existência que não a pura arbitrariedade divina, a qual
escolheu criá-lo sem motivos evidentes que O impeçam de criar outros quaisquer
dentre os infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é pura
onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a
soberana potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em
outras palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em
si toda a realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista,
enquanto implica em identificar a onipotência divina com a realidade de Deus,
acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível. Dito em
outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível
por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção
de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta
última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então relegada à
condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma
determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e
simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir uma realidade puramente hipotética. E, assim
como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para
contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido
pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e
exclusivo modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele
cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego
nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem
essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido submetida e também
superior ao princípio de não-contradição.
Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao
contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de ser, linguagem exata
e precisa, drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A
univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta
de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu principio
constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de
paradigma de toda verdade possível.
Pelo
exposto se pode compreender porque Guilherme de Ockham é considerado um dos
introdutores do que em sua época já se chamava via moderna, que conduz o pensamento filosófico para além da
Escolástica medieval, diretamente na ambiência moderna. Dele vamos retomar aqui
a noção de unidade do saber, o que propomos que se denomine "perspectiva
integradora", sendo aquela que vem predominando em epistemologia, à medida
que se vai superando os últimos resquícios metafísicos e teológicos. Tais
resquícios se fariam presentes na perspectiva que é própria das ciências
modernas em seus primórdios, quando davam margem a que se difundisse, de
maneira triunfalista, a crença na definitividade dos conhecimentos por meio
dela obtidos, por baseados na observação de regularidades na ocorrência de
fatos que permitiam elaborar leis gerais explicativas. Isso por que tais fatos
eram recortados, do conjunto da realidade, de maneira a permitir um tratamento
analítico, que os tornava objetos reduzidos à sua localização espaço-temporal,
de acordo com o procedimento preconizado exemplarmente por Descartes. A derrocada
do resultado principal da aplicação deste modelo epistemológico, a física
mecanicista (copérnico-kepler-galileico-) newtoniana, com a emergência da
física quântica e relativista foi, sem dúvida, um marco. A partir daí as
ciências voltam a ter história, a ser um conhecimento em evolução, melhorando à
medida em que se abre para aprender com os erros, ao invés de,
precipitadamente, inferir leis definitivas de padrões observados em escala
limitada. Por outro lado, pode-se perfeitamente supor que os avanços no
conhecimento da matéria viva, chamaram a atenção para uma descontinuidade nos
níveis de explicação, apontando um limite para a capacidade de previsão,
tomando como referência a uniformidade de fenômenos observados no âmbito físico
e químico, tal como se fossem partes de um grande mecanismo.
É
assim que Versalius, o pai da anatomia, na obra "Fábrica do Corpo
Humano" (De humani corporis fabrica), obra publicada no mesmo ano
daquela, literalmente, revolucionária, de Copérnico, a saber, 1542, irá - em
sentido, de certa forma, oposto a este, que deslocou o homem e sua habitação do
centro do universo -, postular uma distinção radical do ser humano em relação a
outros seres vivos e à ordem cósmica, tal como preconizava a medicina, desde
Hipócrates e Galeno, donde a necessidade de se praticar o estudo da anatomia
assim como nos humanos ela se apresenta, ao invés de tentar compreendê-la por
analogia com outros seres, nos quais se praticava a dissecação. Em seguida, com
Harvey, a anatomia se torna "animata",
ou seja, fisiologia (ou anátomo-fisiologia), sendo o próximo passo importante,
em termos epistemológicos, aquele que foi dado por aqueles estudiosos, mais
recentes, que passaram a enfatizar a importância do estudo das patologias, isto
é, dos estados disfuncionais, para entender o funcionamento e as funções
normais dos organismos. Dentre esses, vale destacar, com o autor de “O Normal e
o Patológico”, Georges Canguilhem, os estudos sobre a diabete, para entender o
funcionamento das glândulas supra-renais.
Com o desenvolvimento da fisiologia,
impulsionado pelo conhecimento das patologias, algo literalmente vital para
nós, como é a saúde, passa a ser tratado de maneira anti-metafísica,
não-ontológica, pois agora a doença não é um ser (mal) que invade o doente, mas
um estado alterado em relação ao normal, que é uma das possibilidades contidas
nesse estado normal, quando ocorre algum desgaste ou ineficiência em seu
funcionamento - a rigor, não chegaria
nem a ser, em sentido literal, um estado anormal, no sentido de "anômalo",
o estado patológico, pois esse estado também segue um "nomos", uma norma, só que diversa
daquela que rege o estado dito "normal", ou são, sendo mesmo por esse
motivo que se investiga a anomalia, buscando enquadrá-la em regras
explicativas, a um só tempo, da anormalidade e da normalidade. De todo modo, ao
contrário do que ocorre com a matéria inanimada, há uma oscilação constante na
matéria viva, entre estados de excesso, carência e equilíbrio, ainda que
instável, sendo daí que se extrai a noção de patologia, de disfunção, por
considerarmos, nós os que vivemos e somos conscientes disso, ao estudarmos-nos,
ser funcional o que nos mantém vivos e sem sofrimento, não havendo estados
patológicos da matéria inanimada, pelo simples fato de que ela não pode, como
nós, morrer.
Só assumindo uma
perspectiva externa - e aí fazendo retornar, sub-repticiamente, à postura
metafísica e teológica, com o seu ponto de vista do absoluto - é que se pode
afirmar a continuidade entre os estados físicos, químicos, físico-químicos, e
aqueles biológicos ou, mesmo, bioquímicos, moleculares. Dessa perspectiva, a
diferença entre a saúde e a doença, e mesmo entre a vida e morte, é meramente
quantitativa, sendo em todos os casos estados da matéria de que se trata, com
maior ou menor complexidade, abordando sua organização. Esta é uma perspectiva
inorgânica e mecanicista da vida. Pode-se, entretanto, adotar uma concepção
inversa, vitalista, não só do que é vivo como do próprio universo, ou seja,
concebê-lo da perspectiva da vida que nele se formou e que, em certo momento,
gera a consciência, graças a uma certa maneira de operar um tipo de células,
aquelas nervosas, que nos permitem uma forma de acoplamento com o meio
circundante extremamente favorável à nossa manutenção nele.
Nesta última
perspectiva, há sentido no universo e esse sentido é a vida, não havendo
sentido na vida para além de si mesma – pelo menos, para os seres vivos. A
filosofia, então, pode ser posta a serviço da vida, nesse ser vivo que somos
nós, conscientes do fim da vida, o que pode nos tornar a vida sem sentido,
cabendo à filosofia velar pela continuidade da vida nesse ser que a altera e
questiona, altera-se questionando-a, tendo desenvolvido um conhecimento tal e
uma organização social de tamanha complexidade e poderio que pode destruí-lo, rápida
ou lentamente. E na base desse conhecimento está uma epistemologia, havendo
ainda uma base biológica, vitalista, para a epistemologia, pois ela, como todo
conhecimento, é uma função vital dos seres humanos.
Para investigar as bases biológicas
do conhecimento, segundo o neurofisiólogo mineiro Nelson Vaz,[54]
na esteira de Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e outros,
precisa-se incrementar o estudo de uma dimensão intermediária entre a
fisiologia e a filogênese. No caso da primeira, se tem um estudo em nível
celular e molecular, numa escala temporal extremamente rápida, variando de
milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias, na cicatrização,
passando por algumas horas, na digestão. Já os fenômenos da filogênese são
medidos em milhões ou centenas de milhões de anos, como a "explosão"
de vida do Período Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos,
metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre os Períodos Permiano
e Triássico. Entre esse dois extremos, muito lentos e muito rápidos,
encontra-se o nível que agora precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso
nível ou escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se tem os
fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a começar pela constituição do
zigoto, passando pelo desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a
reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o avanço
científico em biologia, especialmente em
genética, vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes, como os
mamíferos e os insetos, compartilham muitos mecanismos morfogênicos na formação
do embrião, valendo-se, muitas vezes, de células muito similares, sem falar na
similitude genética entre seres tão diversos como seres humanos e ratos: se
antes nos espantávamos e maravilhávamos com a aparente diversidade da vida,
hoje é a sua uniformidade em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim,
somos levados novamente à disposição que motivou os primeiros filósofos, bem
como impulsionados a pensar sobre o que já se encontra desde a origem escondido
no interior do código genético, e se revela em toda sua diversidade no contato
com o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente, enquanto puder.
Há, então, necessidade de que se
pratique de forma tão intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que
exige, então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva integradora
em epistemologia, capaz de articular explicações de natureza sociológica, econômica,
jurídica, biológica, filosófica e, até, teológica. Um paradigma com essa
característica “uni-totalizante” (Ein-
und Allheit, para empregar expressão que remonta a Schelling, filósofo
idealista alemão do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como
Edgar Morin, na esteira de Ilya
Prigogine, que defendem a superação do tradicional paradigma simplificador das
ciências clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade,
em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas, como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias holísticas, de aplicação
generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto naturais como
sociais, e que toma como distinção fundamental não mais aquela entre
sujeito-do-conhecimento-como-observador-objetivo e
objeto-do-conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras, como aquela
entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para explicar tudo a partir dessa
distinção, entre o que pertence a determinado sistema e o que está fora, no
ambiente circundante, embora circule dentro do sistema – que não é fechado
“para” e sim “com” o ambiente.
É de todo conveniente o emprego de
novas categorias em estudos que levam em conta a complexidade da realidade
estudada, considerando que a mesma não existe para nós independentemente de
nossa observação dela. Só assim poderemos, igualmente, enfrentar melhor as
questões éticas e jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência
vem, ao mesmo tempo, revelando e tornando mais complexo. Um aspecto, porém, que
traz certo desconforto, quando propomos a adoção de um paradigma novo,
sistêmico, para melhor estudar o mundo complexo em que nos encontramos, é a
suspeita que esse tipo de abordagem suscita, da perspectiva normativa de
teorias ditas “críticas”, como é (ou foi) aquela habermasiana. Uma teoria
sistêmica, efetivamente, não se propõe a avaliar aquilo que estuda, mas
fornecer, a partir de suas observações - e observações não só do que se
observa, mas também dos observadores, que são “observadores/concebedores” de
“objetos/concebidos”, nos termos expressivos empregados por Morin -,[55]
descrições mais acuradas e explicações do mundo e das teorias que construirmos
para observá-lo/”construi-lo”, o que, afinal de contas, deve anteceder o
momento da crítica valorativa, para propor alternativas à (re)construção do
mundo pelo direito, a ética, e também a economia, a política e, sobretudo, a
própria ciência. O que buscamos, então, é o que Husserl denominava “princípio
dos princípios”, uma idéia regulativa, no sentido kantiano, a qual, como
esclarece Manfredo Araújo de Oliveira, com apoio no filósofo frankfurtiano
K.-O. Apel, “quer ser efetivada, o que significa dizer que para isso é
necessário que a razão ética entre em contato com outras ‘formas de racionalidade’.
Numa palavra, a dimensão ética, na medida em que se efetiva historicamente, tem
que entrar em combinação com a racionalidade sistêmico-funcional dos sistemas
sociais e das instituições e com a racionalidade estratégica”.[56]
Entretanto, há um problema bastante
grave que se pode apontar, em concepções normativas da racionalidade, como é
aquela hoje tão difundida e apreciada, de Habermas, por mais que endosse e
pratique a recomendação que acabamos de referir, sem que evite um certo
maniqueísmo, quando distingue uma “boa” e uma “má” razão - a comunicativa e a
estratégica: é que elas são formuladas de uma perspectiva transcendental, ainda
que se diga pragmática, de “fora da realidade”, donde terminarem resvalando
numa postura irracional, pois não são capazes de perceberem a unidade
subjacente às diversas formas de pensar e agir racionalmente. É por isso que,
filosoficamente, a postura dialética do “idealismo objetivo” (Dilthey), tal
como foi adotada na modernidade por Hegel - e, contemporaneamente, por Vittorio
Hösle, Carlos V. Cirne Lima, Manfredo A. de Oliveira, dentre outros -, apresenta-se como mais frutífera e
conseqüente, apesar de sua “fé”, que não se assume como tal, na possibilidade
de uma fundamentação última de nosso conhecimento da realidade – e, logo, na
possibilidade de conhecermos verdadeira e definitivamente o que as coisas são,
seu ser, sem garantia de que este seja o ser, pura e simplesmente.
Habermas adota uma postura que
denomina “pós-metafísica”, de acordo com a qual só as ciências estão aptas a
elaborar assertivas com valor heurístico sobre os diversos objetos de
conhecimento, ficando a filosofia restrita ao estudo de segunda mão, que tem as
ciências - ou, mais precisamente, o seu procedimento cognitivo - como sentido e
objeto. Com tal postura, Habermas não escapa da metafísica, pois termina
ficando preso ao que Heidegger denominou “metafísica da subjetividade”, a qual
dá sustentação ao projeto de domínio técnico-científico da realidade,
responsável maior pelos problemas éticos, jurídicos, políticos, sociais,
econômicos e ecológicos - em sentido amplo, para envolver o que Edgar Morin
denomina “ecologia da ação”,[57] a
qual já se coloca no plano da sociedade, em que não podemos prever as
conseqüências de nossas próprias ações - com que nos deparamos atualmente.
É preciso, então, para abordar
corretamente a problemática aqui delineada, que se supere tal postura,
tipicamente moderna - e, portanto, ultrapassada -, o que, em termos
epistemológicos, requer a substituição do paradigma formalista, baseado na
distinção entre sujeito e objeto(s) do conhecimento, e, em termos
filosoficamente mais gerais, a ultrapassagem do humanismo, tal como indicado
por Heidegger em sua célebre carta a Jean Beaufret a esse respeito, a “Carta
sobre o Humanismo”. Que as indicações aqui fornecidas possam servir para a
elaboração desse caminho para o pensamento, tão dificultoso quanto urgente.
Trata-se,
portanto, de questionar a concepção clássica, típica da metafísica do real, de
que o conhecimento é uma cópia da realidade e será verdadeiro na medida em seja
uma representação fiel dela - a crítica
dessa metafísica é feita por autores do lado de cá e de lá o Oceano Atlântico,
como se pode exemplificar, no primeiro
caso, com Richard Rorty, e no segundo caso, com os chamados “filósofos da
diferença”, a começar por Heidegger, e seguindo-se com Deleuze, Derrida etc.[59] É
uma tal concepção de metafísica, enquanto metafísica do real, com sua ontologia
substancialista, que vem rejeitada em posições epistemológicas positivistas e
outras, como as materialistas e fenomenológicas, assim como permanece aceita
naquela outra importante tradição filosófica, mais antiga que estas outras, mas
que ainda hoje tem seus representantes, a saber, aquela oriunda do tomismo,
embora as demais posições filosóficas, inevitavelmente, tenham de dar alguma
respostas às incontornáveis questões metafísicas, tal como aqui se as concebe,
considerando que evitá-las, adotando uma forma de suspensão do juízo ceticista,
é também uma das respostas possíveis. E. J. Lowe diz-nos que,[60] ao contrário das ciências, que se ocupam de
estabelecer o que é, não o que tem de ser ou o que pode ser
(mas não é), a metafísica lida com possibilidades. Daí que, é preciso,
de alguma maneira, delimitar o escopo do possível, para podemos, ao menos,
esperar que consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real, da maneira tentativa e aproximada que é
própria da ciência, tal como entendida contemporaneamente. A tese do autor
apenas referido é a de que a metafísica será possível na medida em que se
atenha a lidar com possibilidades – seja, portanto, possibilista, tal como aqui
preconizado. Um apanhado didático dos desenvolvimentos recentes em metafísica
encontra-se em
Cynthia Macdonald.[61]
S ua abordagem se situa no âmbito da recuperação da metafísica
em uma chave analítica, na qual é bastante representativa a contribuição do
oxfordiano contemporâneo Peter Strawson.[62]
Já um representante proeminente da vertente materialista contemporânea é Alain
Badiou.[63]
Por fim, na perspectiva neotomista, podemos referir o pensamento do brasileiro
Henrique Cláudio de Lima Vaz, o (justamente) festejado (e pranteado) Pe. Vaz,
que deu ensejo à formação de verdadeira Escola, a partir de seu longo
professorado em Belo
Horizonte (MG).[64]
Eis que nos defrontamos aqui com uma
questão que, tradicionalmente, pertence ao campo que se designou, com base em
uma classificação de certas obras de Aristóteles, metafísica. Como é corrente,
o termo “metafísica” é oriundo de uma classificação de obras de Aristóteles
versando sobre sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde a
denominação metá, isto é, “após”, ta physika, ou seja, “da física”. Já
Kant, porém, questionou se seria uma mera coincidência que uma tal denominação
se adequasse tão bem ao sentido mesmo da investigação metafísica, voltada para
questões que se situam para além daquelas tratadas no plano da realidade
palpável, física. E, de fato, há trabalhos que demonstram estar presente no pensamento
aristotélico, se não o termo, a idéia a que ele corresponde.[65]
A
metafísica trata de questões das quais não se ocupam as ciências, enquanto
formas de conhecimento que ora se voltam para a construção de um saber com base
em experiências feitas no contato com a realidade, com o que existe, e que por
isso são ditas “empíricas”; ora elaboram o conhecimento advindo da consistência
de suas proposições entre si mesmas, sem referência a quaisquer objetos reais,
mas apenas àqueles abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s), donde
justamente serem qualificadas de “formais”. Na realidade, estes “tipos puros”
de conhecimentos científicos se mesclam em maior ou menor medida, restando
ainda a possibilidade e, mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis,
pois o possível é necessariamente possível, assim como o necessário sempre é
possivelmente necessário, já que esta é a condição do que existe sem ser em si
mesmo, o que só é o ser que não depende de nenhuma causa para existir, o qual
se pode denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos,
meta-científicos, que seriam a epistemologia, para discutir as condições de
possibilidade de um conhecimento científico ou de uma outra natureza, e a
metafísica, para discutir as categorias, determinações ou, simplesmente, os
conceitos dos conceitos empregados pelas demais formas de conhecimento, como
são os conceitos de realidade, possibilidade, necessidade, causalidade, tempo,
espaço, existência, número, contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência,
indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a justiça, mas também o
mal, etc. Para efeitos mais didático do
que por razões substanciais pode-se dividir em diversas (sub)áreas do
conhecimento a metafísica, conforme privilegie alguns desses temas, de forma
que do estudo de Deus se ocuparia a teologia (racional, e não aquelas
dogmáticas, vinculadas a alguma religião positiva), assim como dos valores a
axiologia, dos deveres ou obrigações – aí incluído temas como o das promessas,
dádivas ou realidades deônticas mais
habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das questões pertinentes ao(s)
mundo(s) a cosmologia e daquelas sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas
relacionados ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A estreita
conexão entre todas essas matérias, em que cada uma remete às demais, torna de
todo relativas tais divisões, ao mesmo tempo em que suscita o interesse em
promover a interdisciplinariedade “holística” dos estudos por meio da
metafísica tal com aqui entendida. Quanto às denominações atribuídas às suas
sub-divisões, são oriundas mais da etimologia, em correspondência com seu
objeto, do que de qualquer outro significado que possam ter, a depender do
contexto em que apareçam empregados os respectivos termos. Uma tal investigação
há de ser feita racionalmente, empregando até, o quanto possível, um
instrumental oriundo de ciências (formais) lógicas e computacionais.[66]
Após o surgimento da
filosofia – pelo menos, com essa denominação -
na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o senso prático,
político-jurídico mais eficiente, do antigos romanos e, posteriormente, com uma
versão (ou versões) muito particular(es) da religião monoteísta judaica, como é
o cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de se impor ao
mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por diversas formas, “imitá-lo”.
A teoria
a que se busca aqui uma via de acesso, introduzindo-a, então, precisa estar,
por exemplo, fora do círculo em que os cultores da filosofia a aprisionaram e
ali a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço do
desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor espaço de tempo, sem parar
e se perguntar do por quê, para quê. E é essa escalada desenfreada para o saber
que é um saber-fazer (know how),
característica da (tecno)ciência, que tantos problemas vem solucionando, ao
mesmo tempo em que muitos outros vai criando e, principalmente, deixando de
enfrentar a brutalidade da existência - o chamado “absolutismo da realidade” mencionado
por Hans Blumenberg (na obra “Arbeit am Mythos”, ou “Trabalhar o Mito”), insensível
ao sofrimento consciente dos humanos -, por promover mais e mais o afastamento
dela, evitando que com ela nos confrontemos, o que exige um tipo de saber mais
próximo da mitologia, das artes e da religião, em suma, do imaginário, da
imaginação - portanto, mais distanciado daquele “puramente” científico,
formalista, positivista -, e isso sem que entre essas formas antípodas de saber
se estabeleça propriamente um conflito, pois estão situadas em “quadrantes”
diferentes daquele diagrama acima proposto, com o fito de auxiliar no
mapeamento das formas de conhecimento da totalidade, nela situando, em posição
de igual legitimidade que a das ciências, saberes como o da poética (mitológica,
religiosa, artística, jurídica etc.): surgem, assim, questões que colocam em
questão a própria ciência e o modo de organização social (também política,
jurídica e, sobretudo, econômica, utilitário-capitalista) que a criou, sustenta
e nela se sustenta, sem que dela possa obter a devida sustentação. Não é de
estranhar, portanto, que tais questões não sejam tratadas e sejam mesmo, de
certa forma, descartadas, pelo pensamento classicamente tido por científico,
causando grande instabilidade, de ordem psicológica, ética e também política,
jurídica, econômica, em suma, social, neste ser em aberto, carente de
orientação e fixação de um sentido para sua existência, que somos os humanos.
De tais questões, tradicionalmente, se ocupam as religiões, com sua forma
(mito)poética de explicar o mundo, dando-lhe (e dando-nos) também algum sentido,
e não há lugar para elas, tanto as religiões e os mitos - com sua força
simbólica, que sempre deu sustentação à ordem social, através do direito e
outros meios, os quais sem esta força não têm como bem desempenhar este papel
crucial -, como para tais questões, na sociedade mundial tecnocientífica
contemporânea, que tem na secularização um dos pressupostos de seu aparecimento
e manutenção, tratando como falso o que não é para ser avaliado por este
registro, pois uma metáfora não é mesmo para ser levada ao pé da letra. É para
elas, então, que se volta a teoria aqui proposta, a partir do estudo do
direito, sim, mas situando-o na totalidade das formas de conhecer e ordenar a
realidade,[67] sejam aquelas mais propriamente
normativas, acima qualificadas de “escatológicas”, como é o direito enquanto
ordenamento da conduta humana, sejam aquelas “nomológicas”, como são as
teorias, inclusive do direito. E ao assim proceder, pode-se esperar a obtenção
de esclarecimentos também sobre essa totalidade mesma e sobre nós, que dela
fazemos parte, como um seu “subconjunto próprio”, sendo ela um conjunto
infinito - logo, um subconjunto que pode não ser menor que ela.[68]
Conclusão
Eis
que chegamos à conclusão de que a filosofia, já tendo servido à teologia,
durante o período medieval, depois à ciência, e também à política, na
modernidade, deveria ainda, em seus estertores, ser posta a serviço da arte, ou
melhor, da poética, em uma última tentativa de salvar um mundo que ela, mais do
que o expansionismo político-jurídico romano e o monoteísmo personalista
cristão, serviu para criar, quando deixou de ser dialética, inconclusiva,
sofística, para tornar-se exigência da verdade, filosofia propriamente. Aqui, a
descrição da filosofia a aproxima da situação trágica em que se viu envolvido o
famoso personagem da tragédia de Sófocles, Édipo. E tal como Édipo, a
insistência da filosofia em perseguir a verdade, uma única verdade, em ser
“alética”, portanto, e não mais, di-alética – ou “pluri-alética”, e,
positivamente, “lética”, lembrando que lethein, em grego antigo, remete
também ao esquecimento, sendo a-lethein o desvelamento, mas também, o
“desesquecimento”, o rememoramento – é que a teria levado (ou estaria levando) ao
encontro de seu fim, trágico. Filosofia, então, estaria bem se não servisse
para nada, como postulava já Aristóteles, no início de sua “Metafísica”, mas
ela terminou sendo empregada para os mais diversos fins, e agora parece estar a
serviço do nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão
auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se mostra, por todo lado,
nessa Civilização Ocidental, que se tornou mundial - e, logo, não apenas
ocidental -, e traz já em seu próprio nome o occido, étimo latino da
queda, da ruína, da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão”
é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir todas as outras
civilizações e, até, o próprio mundo, físico.
As coisas inorgânicas, por
exemplo, como destaca Türcke,[69]
“não sentem a contradição, mas fazem parte dela”. Sim, claro, não sentem por
não terem sensibilidade, mas são a própria contradição, com a sua simples
existência, já que sua densidade ontológica faz-se positividade, contrastando
com a negatividade do nada. Já os seres orgânicos, animados, estes sentem, sim,
a contradição, a que damos o nome de “dor”. E será contra o sofrimento que se
mobilizará o “ser de pensamento”, o ser humano, linguajeiro, constantemente
aterrorizado, perseguido pelo saber de que pode sofrer e, até, morrer. Se a dor
é o mal e o bem ausência de dor, então temos que estes seres que nós somos
percebemos como negatividade o bem, e positividade o mal. Para afastar essa
idéia se desenvolverão religiões, sendo as mais eficazes aquelas monoteístas,
que deslocam o bem supremo, todo o bem, para a divindade, supra-terrena,
espírito puro, deixando o mal no mundo, na terra, na matéria impura, enquanto
nós, humanos, “húmus da terra”, ficamos presos nessa contradição, oscilando
entre os dois extremos. Tal contradição se desdobra em uma série de outras,
inclusive naquelas conceituais, próprias da filosofia.
E então, internalizamos as
contradições, existentes na realidade e, sobretudo, no contraste da realidade
com seu duplo, que fabricamos para melhor enfrentá-la, a linguagem, sendo o
modo como as resolvemos que fará de nós o que somos – embora pareça
contraditório, e é mesmo, o melhor para nós, individualmente, e para os que
convivem conosco, é que adotemos a estratégia da dialética negativa com essas
contradições, evitando tanto resolvê-las, superá-las definitivamente, de forma
absoluta, como também desconsiderá-las, pretender cancelá-las, por uma cisão
analítica entre o certo, positivo, e o errado, negativo, pois a negatividade é
positiva e a positividade é negativa, a verdade é parcial e, conforme a famosa
afirmação adorniana, contante da obra “Minima Moralia”, “o todo é o falso”,
contrapondo-se frontalmente à máxima hegeliana, de que o todo é a verdade,
assim como o real é racional e vice-versa.
Pode-se, então, falar em
uma “negatividade dúplice”, sendo uma positiva e outra negativa, o que se
expressa exemplarmente na arte, como bem explica um teórico contemporâneo que
se costuma catalogar bem distante de Adorno, em um espectro ideológico das
teorias sociais, mas que muito provavelmente com o assentimento dele o
substituiu em Frankfurt, nas aulas interrompidas durante as manifestações
estudantis de fins da década de 1960: Niklas Luhmann, autor de uma vigorosa
teoria social sistêmica.[70]
Em ambos, na verdade, para utilizar uma distinção do enciclopedista d’Alembert,
resgatada por Adorno, está presente um “esprit systematique”, antes que o
“esprit de système”, de um Hegel. Em “Die Kunst der Gesellschaft” (p. 473),
Luhmann refere que na teoria estética de Adorno a arte aparece como uma
negatividade a um só tempo positiva e, propriamente, negativa, ao se contrapor
à falta de liberdade na realidade social com seu exercício de liberdade na
sociedade, que, por isso, dela se beneficia, tornando-a positiva, valorizada
socialmente, por expandir os limites dessa sociedade, ao alterar a
subjetividade dos que a possibilitam, sem com ela se confundirem: os
indivíduos.
É assim que a estética se põe no
lugar da ética, ou, pelo menos, do lugar tradicionalmente ocupado por ela.
Ocorre que em ética, ou nas éticas em geral, já se dá por resolvida a questão
de saber se apenas viver é bom, buscando o bom viver, o viver bem ou o viver
para o bem, associando-se a vida ao bem e a morte ao mal, pois ser é que é bom
e não ser, ruim. A tais éticas, afirmativas, porém, podemos contrapor um outro
tipo de ética, negativa,[71]
que ao evitar uma valoração positiva prévia do que é, em detrimento do que não
é, pode tornar melhor vivida a vida de um ser, como nós, que a rigor não somos – no sentido em que, conforme
defendemos em outro local, só Deus pode ser -, mas apenas existimos – enquanto
Deus, porque é, não existe -, ocasionalmente.
Facilmente se percebe que a ética, ou seja, o saber sobre o que devemos
fazer, do qual depende toda filosofia jurídica que não se reduza à esterilidade
do formalismo positivista – negando-se, portanto, como filosofia para se
tornar, na melhor das hipóteses, uma teoria do direito -, por seu turno depende
fundamentalmente de respostas a outras questões, quer sejam de natureza
metafísica, sobre o que é o ser, quer sejam de natureza teológica, ou melhor,
religiosa, sobre o que podemos esperar do desfecho da vida. Dito de outra
forma, e sinteticamente: a definição do modo como devemos nos comportar nessa
vida depende da concepção que temos de seus limites – da morte, portanto. Os
pressupostos de que necessitamos para desenvolver a filosofia, de um modo geral
e também sobre aspectos particulares –
como, por exemplo, aqueles referentes ao direito -, deve possibilitar um
entendimento de como nos situarmos em face de nossa finitude, individual,
abrindo um horizonte, metafísico, de compreensão e superação de certos modos de
relacionamento com tal questão que incita a ações e reações violentas. O melhor
modo de enfrentar tais questões, transcendentais, é mobilizando os resultados
obtidos no campo aqui qualificado de poético, onde encontramos as diversas
formas de lidar com a imaginação, desde aquelas mais antigas, como a mitologia
e as religiões, até outras, mais recentes, como a psicanálise, passando pelas
diversas artes, a teologia e a própria filosofia, sem esquecer o direito,
enquanto forma de responder aos reclamos de convivência entre os humanos que
dispõe de um vasto repertório de soluções, necessitando de uma melhor apresentação,
para assim recuperar seu poder de convencimento e vinculação intersubjetiva.
* Versão ampliada de
texto enviado para publicação na Revista Nomos, do Curso de Mestrado em Direito
da UFC.
[1] Cf. J.-P. SARTRE, L’Imaginaire, Paris: Gallimard, 1940,
pp. 148 e s. Bem diferente em relação ao tema da imagem e sua importância é a
postura de autor anterior a Sartre, que em seu tempo teve a mesma importância
que ele, no cenário filosófico francês – e, logo, também mundial. Estou a me
referir a Henri Bergson, cujo pensamento será retomado por aquele que sucederá
Sartre, no centro das atenções do grand
monde filosófico: Gilles Deleuze.
[2] Las Estruturas Antropológicas del Imaginário, México (D.F.): Fondo
de Cultura Económica, 2004 [1992], p. 35.
[3] Devo a referência ao
“corte de Dedekind” a diálogo mantido com José Dantas (em 21.01.2010), que em
manuscrito inédito sobre matemática a ele se refere, em um outro contexto, i.e., para definir número irracional,
como “uma fenda existente em uma seqüência de racionais que o cercam sem nunca
chegar lá”.
[4] Cf. WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica,
2ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200, sobre os números imaginários, e a
nota 348, p. 198, sobre o que se vem de referir a respeito das investigações de
Frege. v. tb. id., “Significado
filosófico da matemática”, in:
Revista Filosofia, n. 43, São Paulo: Escala, 2010.
[5] Cf. KELSEN, Teoria
Geral das Normas, trad. José Florentino Duarte, Porto Alegre:
Fabris, 1986 p. 328 e seg.: "Em obras anteriores falei de normas que não
são o conteúdo significativo de um ato de vontade. Em minha doutrina, a norma
fundamental foi sempre concebida como uma norma que não era entendida como o
conteúdo significativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta por
nosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuar mantendo essa
doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me, não foi fácil renunciar a
uma doutrina que defendi durante décadas: a abandonei ao comprovar que uma
norma (Sollen) deve ser o
correlato de uma vontade (Wollen).
Minha norma fundamental é uma norma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na norma fundamental se concebe um ato de vontade fictício, que
realmente não existe".
[6] Cf. HANS VAIHINGER, Die
Philosophie des Als-Ob, 1ª. ed. 1911, ed. popular (Volksausgabe), resumida, Leipzig :
Felix Meiner, 1923
[7] Para uma exposição
do intenso debate contemporâneo sobre o valor heurístico da ficção, inclusive
no âmbito da filosofia analítica, cf. GOTTFRIED GABRIEL, “Sobre o Significado
na Literatura e o Valor Cognitivo da Ficção”, in: O que nos faz
pensar: Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, n. 7, 1993, p. 63
ss.; MARIO ANTONIO DE LACERDA GUERREIRO, O problema da ficção na filosofia
analítica, Londrina: UEL, 1999.
[8] Cf. BARRY SMITH, “Meinong vs.
Ingarden on the logic of fiction”, in:
Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss., disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e JOSEF SEIFERT, “The truth about
fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingarden zum
100. Geburtstag, W. GALEWICZ et al. (Hrsg.),
Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1994, p. 97 ss.
[9] Cf. Profanazioni, Roma: Nottetempo,
2005, p. 87.
[10] Citado em Teoria da
Ciência Jurídica, cit., p. 238.
[11] Disso se mostram
perfeitamente conscientes aqueles estudiosos de psicanálise da vertente
londrina, kleiniana. No Brasil, cf., v.g., PAULO CESAR SANDLER, A Apreensão da Realidade Psíquica.
Vol. VII, Hegel e Klein: A tolerância de
paradoxos, Rio de Janeiro: Imago, 2003.
[12] Esta é a posição de
VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Para uma
etnogonia filosófica”, in: Revista Brasileira de Filosofia, 1954.
V. tb. id., Filosofia da Mitologia e da Religião, in:
Obras Completas, vol. I., São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia,
1964, p. 299 ss.
[13] Aqui cabe suscitar a
contribuição que pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem “Um mundo se forma em nossos
sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades
de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. La
Poética de la Ensoñación , trad.:
IDA VITALE, México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 20. Essa é também a
poética modernista proposta para as artes, desde Baudelaire e, mais radicalmente,
por Apollinaire - cf., v.g., SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM, Guillaume Apollinaire: Fábula e Lírica,
São Paulo: UNESP, 2003 -, que se engaja na produção de um mundo que revele
possibilidades desapercebidas do real. Bachelard será reivindicado pelo “pai”
do Surrealismo, André Breton, que se insere nessa tradição modernista, como ele
próprio reconhece – cf. ANDRÉ BRETON,
Conversaciones (1913 – 1952), trad.: LETÍCIA PICCONE, México: F.C.E., 1987. E Gilbert Durand irá se
colocar nessa linha, junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos
“grandes românticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação do que
Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar a matriz
metafórica, imaginária, de onde emana todo a atividade mental humana, inclusive
aquela mais redutora, a que aqui denominamos racionalizadora, dita racional -
cf. ob. cit., p. 35. Nesse aspecto, vale lembrar a elaboração convergente da
psicanálise kleiniana e de seus herdeiros intelectuais, da chamada Escola de
Londres – cf., a propósito, RONALD BRITTON, Crença
e Imaginação, trad.: LIANA PINTO CHAVES, Rio de Janeiro: Imago, 2003.
[14] Cf., v.g., o
“Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte.
[15] Cf. MIGUEL ATTIÊ
FILHO, Os Sentidos internos em
Ibn Sînâ (Avicena), Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.
[16] Daí não ser nenhuma
surpresa a afinidade heideggeriana de estudiosos do gnosticismo, como Henry
Courbin, o primeiro tradutor de Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, mais
recentemente, Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticos
cristãos dos primeiros séculos, estando o homem “estranhado” de sua origem
divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo, divindade inferior e
invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-se aí um outro traço heideggeriano,
na concepção de uma pluralidade de deidades -, não procede a definição corrente
de que se trata de um animal, ainda que racional. Isso mesmo que em Heidegger,
como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como o espanhol injustamente
menosprezado Ortega y Gasset, não se suscite uma origem divina do humano, nem
tampouco meramente natural, dada a distância do ser formador de mundo em
relação ao que dele são desprovidos ou pobres – cf. Martin Heidegger, Os
Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: Marco
Antônio Casanova, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o.
cap., §§ 43 ss., p. 204 ss.; Antonio Regalado García, El laberinto de la
razón: Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza,
1990, p. 288 ss. Sobre o papel na
elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar, o Unheimlich, o
qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que em Freud, v. ainda ERNILDO
STEIN, Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre: Ithaca, 1966, p. 100 s.
[17] Cf.
MARTIN HEIDEGGER, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P.
GIACHINI, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52.
[18] Para esse duplo
sentido da palavra “transcendência” cf. JOSEPH CAMPBELL, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, EUGENE KENNEDY
(org.), trad.: EDSON BINI, São Paulo: Landy, 2002, p. 181 s.
[19] Daqui
se origina a idéia de uma renovação da filosofia a partir da investigação do
que somos na situação concreta, fática, da vida, proposta por Heidegger - no
que se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade” (Günter
Figal) ou, com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s
existenciais)”, pois para Heidegger, “acima da realidade está a possibilidade”.
M. HEIDEGGER, Meu Caminho para a
Fenomenologia, in:
col. Os Pensadores, trad.:
ERNILDO STEIN, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 302; id. Sein
und Zeit, Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, vv. eds., p. 52.
[20] Cf. ERNST H.
KANTOROWICZ, Os Dois Corpos do Rei. Um
Estudo sobre Teologia Política Medieval, trad.: CID KNIPEL MOREIRA, São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 181 ss., passim; PIERRE LEGENDRE,
Leçons II: L’Empire de la Véritè. Introduction
aux espaces dogmatiques industriels, Paris: Fayard, 1983, p. 109.
[21] GASTON BACHELARD, O novo espírito científico, trad.: REMBERTO
FRANCISCO KUHNEN, São Paulo: Abril, 1978, p.119 (penúltimo parágrafo do cap.
II).
[22] Cf. id., “Luz e Substância”, in:
Estudos, trad. ESTELA DOS SANTOS ABREU, Rio de Janeiro: Contraponto, 2008,
p. 63
[23] VICENTE FERREIRA DA
SILVA, em “Reflexões sobre a ocultação do ser”, in: Ensaios Filosóficos, São Paulo: Instituto Progresso Editorial,
1948, p. 45 e s., tb. in: Obras
Completas, vol. I., cit., p. 37.
[24] Migajas Filosóficas o un poco de filosofía, trad. Rafael Larrañeta, Trotta, Madri, 1997, p. 64,
[25] Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de
Janeiro: Imago, 1977. Para uma extensão do conceito de “literatura menor” de
Deleuze/Guattari para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST,
Desiring Theology, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995.
[26] Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa,
Petrópolis: Vozes, 2000.
[27] editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo)
por Eugen Fink na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939),
sob o título “Der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”,
que aparece em Die Krisis der
europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie (abrev.: Krisis) como
“Beilage III”, W. BIEMEL (ed.), La Haya : Martinus Nijhoff, col. Husserliana,
vol. 6, 1962, pp. 365-386.
[28] Trad. do inglês para o português por MARIA
APARECIDA VIGGIANI BICUDO. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto
de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponível na página
da SE&PQ – Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos em
http://www.sepq.org.br/ maria.htm.
[30] Mas que bem se pode
remontar a GUILHERME DE OCKHAM. Cf., v.g., LOUIS DUMONT, O Individualismo. Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna,
trad.: ÁLVARO CABRAL, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 76 s.; WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, “Lei, Direito e Poder em
Guilherme de Ockham”, in: Direito e Poder. Estudos em Homenagem a Nelson
Saldanha, HELENO TAVEIRA TORRES (coord.), Barueri (SP): Manole, 2005, p.
188 s.
[31] Cf. WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, “Sobre a estrutura medieval
do pensamento filosófico e jurídico” in: Revista Opinião Jurídica, n. 3,
Fortaleza: Faculdade Christus, 2004, p. 9 s., e, mais amplamente, ANDRÉ DE
MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes,
scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.:
1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale,
Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a
elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: PAULA MARTINS, São Paulo:
34, 1998; La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes
medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO,
Madri: Istmo, 2002.
[32] Para uma discussão
desta obra, em conexão com o direito, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por uma crítica fenomenológica ao
formalismo da ciência dogmático-jurídica” in: Revista Opinião Jurídica, n.
5, Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, p. 311 s.
[33] “Prolegômenos à
História do Conceito de Tempo”, Seminário do Verão de 1925, Gesamtausgabe, vol. XX
[34] Sobre esse
desenvolvimento em filosofia da matemática, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO,
“Por que não é lógica a dialética, se é dialética a matemática?” in: id., Para uma Filosofia da Filosofia,
Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1999, p. 39 ss.; tb. id., Teoria da Ciência
Jurídica, loc. ult. cit.
[35] Cf. Filosofias da Matemática, São Paulo:
UNESP/FAPESP, 2007, p.152.
[36] Cf. “Sobre a
fenomenologia husserliana”, in: Id., “Subjectividade e História”,
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1969, pp. 105 ss.
[37] Cf. ob. loc. ult. cit., p. 115.
[38] Cf. HUSSERL, Erste Philosophie,
1923/1924”, 2a. parte, Husserliana, vol. VIII, 1959, p. 173, passim.
[39] V., p. ex., o
“Manuscrito” EIII 4, 1930, p. 62, referido por Morujão, ob. cit., p. 135.
[40] Husserl, apud Morujão, ob.
loc. ult. cit.
[41] Assim como nos
parece os números seriam entendidos, se definidos como “conjuntos de
conjuntos”, na esteira das colocações de Bertrand Russell e Alfred North
Whitehead, em Principia Mathematica ,
quando então o zero, por exemplo, dessa perspectiva, seria definido como “o
conjunto cujos elementos são todos os conjuntos vazios” – cf. JOSÉ DANTAS,
ms., cit., p. 1.
[42] Cf., para uma
retomada recente da contribuição de Foucault, com grande vigor, GIORGIO
AGAMBEN, Signatura Rerum. Turim:
Bollati Berlinghieri, 2008.
[43] Cf. Phänomenologische
Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung,
Gesamtausgabe, vol. 61, WALTER BRÖCKER e KÄTE BRÖCKER-OLTMANNS (eds.), 2a. ed.,
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26. Também Husserl reporta-se
a uma “metodologia arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reporta
Nicoletta Ghigi, da Universidade de Perúgia (Itália), especialista em
fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo pesquisas sobre os manuscritos
inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica) - cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm, consultado em 1o./10/2006.
V. tb. ANGELA ALES BELLO, Culturas e Religiões. Uma leitura fenomenológica,
trad.: Antonio Angonese, Bauru (SP): EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia
e Ciências Humanas, org. e trad.: MIGUEL MAHFOUD e MARINA MASSIMI, Bauru
(SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187 ss.
[44] No sentido em que Paul Ricouer
se refere às duas formas de hermenêutica, em seu texto fundamental sobre a
simbólica do mal, contida em sua obra “O Conflito das Interpretações”, a saber,
aquelas redutoras, voltadas para uma reconstituição do passado, ditas
arqueológicas, em contraposição àquelas amplificadoras da imaginação simbólica
(sinnbildende, como se diz em alemão,
ou seja, literalmente, “construtora de sentido”), que se relacionam com o
passado no registro do que chamamos em língua galego-portuguesa (e/ou
luso-brasileira) de maneira singular de “saudade”, um anelo de voltar a viver
com maior intensidade, no futuro, algo já vivenciado, em geral na in-fância
feliz da existência, do que escapa às palavras mas se preserva nas imagens. A essa
segunda forma de hermenêutica Ricouer denomina “escatológica”. Cf.,
especificamente, P. RICOUER, “Le conflit des herméneutiques, épistémologie des
interprétations”, in: Cahiers Internationaux de Symbolisme,
Paris, 1963, n. I, pp. 179 ss.; v. tb. GILBERT DURAND, A Imaginação Simbólica, São Paulo: CULTRIX/EDUSP, 1988, pp. 93 ss.
[45] Para Vico, os
primeiros poetas foram teólogos que com a sua teologia estabeleceram os
fundamentos da organização política, inicialmente republicana, expressando-se
através de “imagines humanae maiorum”,
antes que por conceitos, como se faz em teologia natural ou racional. Cf. VICO,
“Sinopsi del diritto universale”, in: Id.,
Il
diritto universale, a cura di
FAUSTO NICOLINI, Bari: Laterza, 1936, pp. 6, 7, 10 e 17. Daí ser para ele a
poética uma sabedoria (sapientia), a
se diferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto um emprego da
razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas” (ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que,
segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas, dando como
exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em um sentido mais amplo do que
seria a retórica (oratoria) ou uma
outra disciplina, que denomina imperatoria,
designação que aponta para algo assim como o que outros chamariam “arte de
governar”, pois aquelas prescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado com demonstrações,
enquanto esta últimas combinam os conselhos (consilia) com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcrição integral as passagens concernentes,
nomeadamente, os “capítulos” (capita)
XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “O Direito Universal”,
intitulado “De uno universi iuris
principio et fine uno”, in: loc
ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri, quae est humana
ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII [VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS
ETHICA] – Virtus dianoetica: scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem
vincit, est virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si tota
demonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si tota praeceptis, est ars,
ut grammatica, frenaria; si partim demonstratione partim consilio, ut medicina,
iurisprudentia, vel partim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória,
poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada”.
[46] Cf. FARIAS BRITO, Finalidade do Mundo, vol. I - “A Filosofia como Atividade Permanente do
Espírito Humano”, publicado originalmente na Cidade de Fortaleza, em
1895 -, 2a. ed., Instituto
Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957p. 128.
[47] Aristóteles em
nova Perspectiva , Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
[48] Aqui estamos diante
do que Herman Dooyoweerd, jusfilósofo e também pensador da totalidade - de uma
perspectiva neocalvinista, reformada -, qualifica, em seu opus magnum, De Wijsbegeerte der Wetsidee (disponibliizado para download na
rede mundial pelo governo holandês), como
a priori religioso de todo pensamento, inclusive o científico.
Embora na versão para o inglês desta obra, posterior, o A. tenha retirado da
noção de a priori, tal como empregada na expressão, o sentido
transcendental kantiano, o próprio cerne “ideonômico” de seu pensamento implica
a idéia de ordenação de tudo quanto se possa conceber e transmitir a partir de
pressuposições sobre o sentido, qu em si têm natureza religiosa ou, como
preferimos denominar, “mitopoética”, por abranger todo o campo do simbolismo,
no qual se pode situar as religiões, como também as elaborações mitológicas, de
natureza antes mágica do que religiosa, as artes, o próprio direito etc. Remonta a Platão a concepção de uma estrutura ideonômica
do universo dos símbolos coroado, na visão platônica, pela Idéia do Bem (Rep.,
VI) – cf. Henrique de Lima Vaz, Ética e
Direito, São Paulo: Landy/Loyola, 2002, p. 328. O termo é o que entendemos
deva ser utilizado para traduzir a expressão-guia do pensamento dooyeweerdiano:
wetsidee (vertido para o inglês como Law-Idea e para o alemão como Gesetzesidee).
[49] Cf. WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, “Lei, direito e poder em Guilherme de Ockham”,cit.;
Id., “Sobre a cisão medieval de estruturas do pensamento
filosófico segundo André de Muralt”, in: Crítica. Revista de
Filosofia, vol. 9, números 29/30, Londrina:UEL/CEFIL, 2004, p. 251 ss.
[50] Cf. VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, “Los precedentes
medievales del criticismo kantiano”, in: Revista de Filosofía,
vol. 28, núm. 2, Madrid, 2003.
[51] A teologia
metafísica do possível vai repercutir no pensamento daquele filósofo que, no
século XX, irá patrocinar o enxerto, da hermenêutica no solo da fenomenologia husserliana,
que foi Martin Heidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez mais
demonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, os estudos de
filosofia de Heidegger foram antecedidos pelo estudo da teologia, e sua tese de
livre-docência versou sobre Duns Scot – ou melhor, sobre obra que depois se
revelou da autoria de Thomas de Erfurt, mas que deu margem a que se pensasse
ser de Scot justamente pela estrita observância scotiana nela apresentada. Uma
outra influência, talvez ainda mais decisiva, foi a do pensador religioso,
cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger se encontre esse pensamento
da abertura para as possibilidades do ser (Sein) que ante si mesmo, aí (Da),
pro-jetado, no mundo, tanto se mostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente,
temporal e materialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico,
essencial e espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade, donde um
intérprete recente do pensamento heideggeriano tê-lo qualificado com uma
“fenomenologia da liberdade” - cf. GÜNTER FIGAL, Fenomenogia da Liberdade,
trad. MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, esp,
p. 36 e s. E como diria o pensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o
conceito de angústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nós
experimentada - aperceptivamente, diria
Husserl – como um possível ser, que se toma com real porque nele se crê. A
crença no mundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o
conhecermos, e também para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes -
ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do que sugere
Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, a transformação
almejada, seja qual for, é resultado de uma prática orientada teoricamente, i.
e., de um saber prático, sim, mas produtivo, logo, “poiético” -, e não de uma
ação enquanto mera práxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva. Um saber prático pode ser caracterizado
como aquele que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu (ética,
política e/ou juridicamente) fazê-lo, e como fazê-lo.
[52] Neste sentido, LUC
FERRY, O que é uma vida bem sucedida?, trad.: KARINA JANNINI, Rio de
Janeiro: DIFEL, 2004.
[53] Cf. WILLIS SANTIAGO
GUERRA FILHO, “(Im)possibilidade e Necessidade da Teologia”, in: Nós
e o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo de Oliveira,
Carlos Cirne-Lima e Custódio Almeida (orgs.), São Paulo/ Fortaleza: Loyola/UFC,
2001. Também disponível em http://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/ núm 12: http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf.
Aqui se apresenta uma perspectiva da teologia que se pode qualificar como
“narrativa”, à semelhança daquela derivada da filosofia
hermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é uma perspectiva que se
mostra estruturalmente compatível com as ciências, ou com o direito, concebido
– e concebidas - como ficções de mundos possíveis, a partir dos dados
fornecidos pelos objetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessa
diferenciar tal perspectiva de uma outra, que consideramos foi tentada por
autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-Martius e, mais
recentemente, Richard Swinburne, em que a teologia se aproxima dos conteúdos
mesmos das ciências, se fazendo com tais elementos e, eventualmente,
mostrando-se compatível com religiões – sintomaticamente, aquelas professadas
por tais autores, de derivação judaico-cristã, o que nos parece algo a ser evitado
ou, pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de dificultar o
diálogo intercultural.
[54] Cf. "Autopoiese: a criação
do que vive", in: Um novo
paradigma em ciências humanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.],
Belo Horizonte, 1987.
[55] Cf. Ciência com Consciência, 3a. ed., revista e modificada pelo A., trad. MARIA
D. ALEXANDRE e MARIA ALICE SAMPAIO DÓRIA, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1999, cap. 10, n. 8, p. 333.
[56] Ética e Economia, São Paulo: Ática, p. 33.
[58] Neste sentido, v.
AQUILES CÔRTES GUIMARÃES, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, bem como nosso verbete “Fenomenologia Jurídica”, in:
Dicionário de Filosofia do Direito, VICENTE DE PAULO BARRETTO (coord.),
Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS): Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.
[59] Cf., no âmbito da teoria do direito, por
exemplo, o trabalho do holandês BERT VAN ROERMUND, Derecho, Relato y Realidad, trad. HANS LINDAHL, Madrid :
Tecnos, 1997.
[60] Em The Possibility of Metaphysics, Oxford : Oxford University Press, 2001, logo
na introdução.
[61] Varieties of Things, Oxford: Blackwell, 2005.
[62] Cf. Análise e Metafísica, trad. ARMANDO MORA
DE OLIVEIRA, São Paulo: Discurso, 2002.
[63] Cf., v.g., O Ser e o Evento, trad.: MARIA LUÍZA X.
DE A. BORGES, Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1996. Para um desenvolvimento recente
da concepção de Badiou, cf. MEHDI BELHAJ KACEM, L´esprit du nihilisme. Une ontologie de l´Histoire, Paris: Fayard,
2009.
[64] Para uma primeira
aproximação a este pensamento, bem como quanto às possibilidades de se
estabelecer conexões entre ele e contribuições modernas, como as de Kant e
Hegel, bem como aquelas contemporâneas, de Heidegger ou Apel, particularmente
recomendável se nos afigura o livro editado em sua homenagem, Saber filosófico, história e transcendência,
JOÃO A. MAC DOWELL (coord.), São Paulo: Loyola, 2002. Uma introdução
“biobliográfica” encontra-se em MARCELO PERINE , Ensaio de iniciação ao
filosofar, São Paulo: Loyola, 2007, pp. 117 ss.
[65] Cf. HANS REINER, “O
surgimento e o significado original do nome Metafísica”, in: Sobre a
Metafísica de Aristóteles (Textos Selecionados), MARCO ZINGANO (org.), São
Paulo: Odysseus, 2005, p. 93 ss.
[66] A propósito, v.
trabalhos recentes como Steps Toward a
Computational Metaphysics, de BRANDEN FITELSON (University of
California–Berkeley) e EDWARD N. ZALTA (Stanford University), bem como, deste
último, Principia Metaphysica,
disponíveis em http://mally.stanford.edu/publications.html.
[67] No sentido referido
por Werner Heisenberg em A Ordenação da Realidade, trad.: MARCO ANTÔNIO
CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009 [1942], em que vemos uma
convergência, ao que parece ainda inexplorada, com o pensamento de Herman
Dooyoweerd, há pouco referido.
[68] Aqui, novamente,
beneficiei-me do ms. antes referido de José Dantas, na parte sobre teoria dos
conjuntos, bem como de contato pessoal com o A., na data registrada acima.
[69] Cf. Pronto-Socorro
para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa, Mimeo.,
Departamento de Filosofia: UNICAMP, 2001, in:
www.filosofia.pro.br, “Escola
de Frankfurt”.
[70] Para uma introdução
a esta teoria v. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, cit., pp. 193 ss.
[71] Nesse sentido, JULIO
CABRERA et al., Ética Negativa: Discussões e Problemas, Goiânia: EdUFG, 2008. V. tb. http://e-groups.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/etica.html.
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