quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Tempo(s) em Hedwig Conrad-Martius


Tempo(s) em Hedwig Conrad-Martius

Willis Santiago Guerra Filho

Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas

da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Convidado nos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes e PUC-SP




1.     Dados Biográficos

Nascida em Berlim, em 27.02.1888, filha do médico Friedrich Martius, professor em Rostock, que apoiou a vocação demonstrada pela filha para os estudos e carreira acadêmica, ainda inusuais para mulheres na época. Tanto que inscreveu a filha em Berlim para cursar a única escola para moças que dava acesso à universidade, concluindo-a com o Abitur. E assim ela se tornou uma das primeiras mulheres da Alemanha a ingressar no ensino superior, inicialmente seguindo cursos de literatura e história, em Rostock e Friburgo, ingressando depois em Munique, para estudar filosofia, já em 1909, na recém-fundada, por Theodor Lipps, Associação Acadêmica de Psicologia, juntamente com nomes que na época estudavam com entusiasmo as “Investigações Lógicas” de Edmund Husserl, uma alternativa ao transcendentalismo neokantiano que então imperava, nomes que viriam a se destacar no movimento fenomenológico, como os de Moritz Geiger, Adolf Reinach, Alexander Pfänder e seu futuro marido, Theodor Conrad, sendo por recomendação do primeiro, seu orientador, que ela veio a se transferir para a Universidade de Göttingen, a fim de estudar diretamente com Husserl, há exatos 100 anos, no semestre de inverno de 1911... Ali encontraria, em 1920, Edith Stein, com quem manteria estreitos laços de amizade e colaboração intelectual pelo resto da vida. Em Göttingen Hedwig organiza, fora do ambiente universitário, uma Sociedade de Filosofia, que girava em torno da figura de Adolf Reinach, nesse meio-tempo também estabelecido em Göttingen, que depois se notabilizará por sua contribuição para a fenomenologia do direito, autor de “Os Fundamentos apriorísticos do Direito Civil”, tendo outras direções de seu pensamento ficado sem maiores desenvolvimentos em razão de sua morte prematura, em 1917, no campo de batalha da I Guerra Mundial, ao qual acorrera voluntariamente.  Hedwig manter-se-á fiel à proposta fenomenológica dita “realista” de Reinach, vindo a desenvolver sugestões suas, uma delas, das mais intrigantes, justamente na obra a ser aqui enfocada, sobre o tempo (Die Zeit, 1954, abrev.: Z): o estudo da antevisão premonitória (zeitliches Hellsehen), a clarividência temporal ou o “ver claro-temporalmente”, para traduzir de modo mais fiel a expressão alemã. A “visão” (das Sehen), porém, Hedwig dizia ter lhe sido ensinada por Husserl, de quem vai divergir em sua abordagem, do que seria uma recaída do Mestre no transcendentalismo ou, mesmo, no psicologismo, na obra posterior às “Investigações”, sendo que a ela interessava prosseguir, nos passos de Reinach e outros discípulos de primeira hora de Husserl, como Jean Hering, uma pesquisa designada como “ontologia essencial” (Wesensontologie), também diversa, como a simples designação indica, da outra grande corrente divergente da fenomenologia, aquela encabeçada por Heidegger, da ontologia dita (por ele) fundamental, que em contraste com aquela se pode também dizer existencial, pois tem como escopo a investigação no ser que somos os que existimos sabendo dessa condição, finita, como somos os humanos, do que é isso, o ser, a “coisa mesma” por excelência – para referir o “princípio dos princípios”, quase um grito de guerra husserliano, de que nos voltemos para as coisas mesmas, às quais o veto kantiano teria tornado inacessível ao conhecimento, limitado deste então as suas manifestações fenomênicas no tempo e no espaço da física hoje clássica, aquela mecânica, quando para Hedwig do que se trata, para dizer em seu próprio idioma, é de obter Wesenserkenntnis aller Dinge, auch der vom Denken unabhängigen Welt (em vernáculo:conhecimento essencial de todas as coisas domundo inidependentemente do pensamento), ou, em suas próprias palavras, die radikale Sachlichkeit, um welche Gebiete es sich immer handeln mochte, das unbeirrbare, stets neue Anfangen angesichts irgendeiner aufgegriffenen Problematik(em vernáculo:a radical objetividade, seja em que campo for, o inquestionável, obtida recomeçando sempre de novo a consideração da problemática visada)essa necessidade de recomeçar sempre para ir corrigindo os equívocos é uma tarefa a ser atendida dirigindo cada vez maior consideração às coisas tal como as percebemos, valorizando a percepção como sendo o que o termo alemão expressa, uma Wahr-nehmung, umtomar como verdade, sem importar se o percebido existe ou não, pois o que ela busca é sua essência, uma essência que independe de existência, podendo mesmo ser mais difícil de se perceber enquanto existente,ex-sistente, ou seja,sendo fora, transcendente, sobretudo em se tratando do sujeito do conhecimento apegado a seus modos de existência e de consciência rotineiros.  Ora, são exatamente essas condições de limitação do acesso ao ser que Hedwig investigará, muito bem informada pelos desenvolvimentos contemporâneos das ciências naturais, na sua trilogia dedicada ao estudo, por ordem de aparição das obras, do tempo, já referida, do ser (Das Sein, 1957), e do espaço (Der Raum, 1958), das quais a primeira será aqui sucinta e (espero) didaticamente abordada.

Mas voltando ao escorço biográfico de nossa A., temos que, em 1912, ela vence um concurso na Faculdade de Filosofia da Universidade de Göttingen com a obra “Die erkenntnistheoretischen Grundlagen des Positivismus” (“Os fundamentos epistemológicos do positivismo”). Impossibilitada de prosseguir seus estudos em nível doutoral nesta universidade, por não constar a língua grega em seu exame vestibular, o Abitur, termina obtendo o título em Munique, com o referido trabalho premiado, onde o sucessor de Lipps e seu antigo colega Alexander Pfänder havia assumido a cátedra, o que já não seria possível a Hedwig, por sua condição de mulher, àquela altura, lhe vedar o acesso ao pré-requisito, que seria a livre-docência – na época, só se concebia como portadoras desse título às esposas de livre-docentes,  título meramente honorífico, como o de embaixatriz ainda hoje, quando se é casada com um embaixador...

Seu marido, o também filósofo, fenomenólogo pioneiro do que viria a ser a Escola Realista de Munique e Göttingen, Theodor Conrad, diante da impossibilidade da esposa de fazer carreira acadêmica e de sua dedicação às plantas, adquiriu, ainda antes de começar a I Guerra Mundial, um pomar em Bad Bergzabern, no Pfalz, donde ela poderia auferir ganhos, fazendo algo que sabia e gostava, o cultivo do solo, mas daí extraiu também material para escrever uma obra filosófica, Die Seele der Pflanze. Biologisch-ontologische Betrachtungen (1934),  sobre a alma das plantas, como indica o título, a qual ela conclui que se mostra através das flores, por serem elas os olhos de suas plantas se abrindo. O sítio logo se tornou um local de encontro entre os amigos, fenomenólogos, havendo Spiegelberg em seu texto sobre a história da fenomenologia chegado a referir-se a um “Círculo de Bergzabern”. Ali, uma das visitantes mais assíduas, a hoje Santa Edith Stein, converteu-se ao catolicismo. Em 1937 o casal vendeu a propriedade e mudou para Munique, onde a situação política impedia que publicassem seus trabalhos. Em 1938, Hedwig ainda consegue publicar na Áustria “Ursprung und Aufbau des lebendigen Kosmos” (“Origem e Construção do Cosmo vivente”), republicada em 1949 com o título “Die Abstammungslehre” (“A doutrina da evolução”, notoriamente anti-evolucionista), mas em seguida é impedida pela censura política, em vista de sua origem judaica, de continuar publicando. Só após a II Guerra começam a vir a luz seus novos trabalhos, em filosofia natural, matéria em que veio a assumir a docência na Universidade de Munique, em caráter honorário, poiss já havia ultrapassado a idade-limite para habilitar-se como professora regular, catedrática. Faleceu em 1966, em Starnberg, na companhia de seu marido e de uma filha adotiva.

2.     Aprofundamento da caracterização geral de sua postura filosófica

Como integrante da corrente dita realista da fenomenologia, Hedwig Conrad-Martius (de agora em diante, HCM) entende terem as essências intuídas, empaticamente percebidas, uma subsistência e validade próprias, totalmente independentes do sujeito que as conhece, correspondendo a ambos como que duas formas de existência subsistente, “hypokamenomênica” (do grego hypokamenon, termo filosófico para denominar a substância a tudo subjecente) e, logo, formas distintas de conhecê-las, por nós humanos, em que ambas se fundem, a saber, a hilética (do grego hylé, literalmente, “madeira”, mas tecnicmente, em filosofia, a matéria) e a pneumológica (do grego pneuma, literlamente, ar, e no contexto, “espírito”). Um ser puramente material tem uma consistência já pronta e acabada, enquanto aquele espiritual tem como característica a possibilidade de transformação, desde que não seja ele próprio um produto já, como por exemplo os personagens de uma obra de ficção, aos quais, no entanto, apesar de dotados de existência, falta aquela consistência hilética. Daí se poder falar, com o importante fenomenólogo polonês pertencente ao Círculo de Göttingen, como HCM,  Roman Ingarden  – de quem Karol Woytila (o Papa João Paulo II, que canonizou a colega de seu conterrâneo, Edith Stein) foi discípulo -, de uma “incompletude ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura são os autores das obras ficcionais (cf. Barry Smith, “Meinong vs. Ingarden on the logic of fiction”, in: Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss., disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e Josef Seifert, “The truth about fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingarden zum 100. Geburtstag, W. Galewicz et al. eds., Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1994, p. 97 ss.). Assim, os juízos realizados no âmbito deste universo ficcional diferem daqueles feitos a respeito da realidade propriamente dita, a ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingarden, “quase-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou “falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se referem a um possível “estado de coisas” (state of affairs, Sachverhalte), tal como destacado por Reinach, em contributo que hoje vem sendo retomado. Isto não é de se considerar uma simulação da realidade, mas uma outra realidade, de uma outra natureza – deontológica, por exemplo, no caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente construída, sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo, difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não apenas podemos, se quisermos -, e isso para evitar que, em razão do descrédito, se venha a sofrer conseqüências, bem reais, como são as sanções jurídicas.

         Já os objetos pertencentes ao campo designado por HCM realidade efetiva (wirkliche Wirklichkeit) são reais não por existirem no tempo e no espaço, mas antes, existem espácio-temporalmente por pertencerem essencialmente desse modo ao mundo (HCM, Realontologie, in: Jahrbuch für Philosophie und Phänomenologische Forschung, 6, 1923, § 7). O esforço a ser realizado – que HCM certa feita descreveu como uma obsessão pelas coisas (Sachbesessenheit) -, então, é de se tornar receptivo para “deixar as coisas” como que falarem por si mesmas, para aprender com elas, percebendo-as em seu ser, para além – ou aquém, de qualquer modo, fora – das referências, de resto, subjetivas, por transcendentais, de tempo e de espaço, o que requer que a compreensão filosófica – e que só pode ser filosófica, por escapar ao escopo de qualquer ciência – do que é tempo, espaço e, claro, do que é ser, objeto de tratamentos em separado por nossa autora, na já referida trilogia, de maneira específica. Autoras que se ocuparam do trabalho de HCM e de outras filósofas, como Angela Alles Bello (v. “A fenomenologia do ser humano”, Bauru, 2000) e Ursula I. Meyer (“Die Welt der Philosophin”, esp. vol. IV, Aachen, 1998), vêem nessa postura de maior abertura para a percepção do – e no – mundo sem como que agredi-lo com nossas idéias preconcebidas a seu respeito,  algo tipicamente feminino. Entendo que, mesmo em assim sendo, não haveria aí algo como com que uma predestinação anatômica para tal, aludindo ao conhecido dito freudiano, de que a anatomia é um destino do qual não escapamos os seres linguageiros que somos, pois em um poeta como Francis Ponge, autor do célebre livro de poemas programático já em seu título, “Le parti pris des choses”(1942), podemos encontrar essa mesma disposição para deixar ver as coisas em seu próprio mundo, recuperando uma capacidade de expressá-las e expressarmo-nos que nos liberte do desgaste a que o modo como costumamos falar a respeito nos submete. Deixemos que ele fale por si mesmo, em uma passagem bem representativa, encerrando seu texto “Cristais Naturais”, de 1946 (contido em “Métodos”, RJ: Imago, 1997, p. 85), um dos que produziu não para atender o que considera o reclamo absurdo dos filósofos, desde Sócrates (segundo Platão, claro), de pedir aos poetas que digam de outro modo, explicando, o que disseram do modo que lhe era possível, em sua poesia, mas para dizer o move e co-move ao fazer isso, a poesia: (...) “Tenho medo de que tudo isso seja bem subjetivo! // Outra coisa que me parece essencial, que gostaria de dizer. Vocês sabem que o que me sustenta, me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos...//Por que não dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavras, são tão mudos quanto as carpas ou os pedregulhos? Na verdade que eles não dizem nada, que quando falam o que dizem é nada – que não exprimem nada de sua natureza muda?// E ao contrário, quando eles tentam realmente exprimir alguma coisa – pois muito bem, só o que temos é a impressão de que conseguiram; mas quanto a entender, não entendemos nada. Parece que estão falando sânscrito, chinês. Incomunicabilidade das pessoas, das mônadas. Por quê? Porque o sistema de referências nos é obscuro...” (grifos do A.). Do que se trata, então, é de compreender tal sistema de referências – e propor outros, com os quais possamos nos entender, concordar, discordar sobre o que com eles buscamos captar.

         Na(s) matemática(s) temos exemplo(s) típico de um tal sistema de referências, que é como uma malha que tramamos para envolver ao que percebemos, a fim de nos situarmos em face do que nos deparamos. E na matemática tem-se também um excelente exemplo de como podemos nos ocupar deste meio de percepção como um fim em si mesmo, praticando um construtivismo formalista, contra o qual Husserl se insurgiu, ao advogar uma postura dita intuicionista.

Para os intuicionista, Luitzen Brouwer a frente, tendo ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o seu mestre, Weierstraß, a prática da matemática, como explica Jairo José da Silva (em Filosofias da Matemática, São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152), “não se constituía na derivação de teoremas, no interior de uma lógica determinada a priori, como para os logicistas e formalistas, mas no exercício criativo de uma consciência matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o intuicionismo, enquanto vivência de uma consciência moldada pelo sentido interno, que é o tempo, a investigação matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-determinado. Toda construção que extrapole a intuição fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica, concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre com os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e abusa, sem que deles possa oferecer um verdadeiro conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de momentos – e também por vivermos, até onde  nos é dado perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um evento singularíssimo, o assim chamado “big bang”, e cada vez mais se confirma a hipótese de que marchamos rumo a um “big crunch”, um colapso cósmico – que pode gerar novo “big bang” quando se der o fim da expansão de um universo que, estando em desaceleração, então pararia, chegando assim, literalmente, o fim dos tempos, ou melhor, do tempo, e a morte cósmica – um cosmos que contém entre suas propriedades a vida, e a consciência, tal como se revelam, ambas em nós, e a quem nossa A. atribui, explicitamente, a primeira dessas qualidades (v. já a obra antes referida, publicada em 1938, cujo título contém a noção de um universo vivo, lebendiges Kosmos) e, de modo subentendendido, também a segunda, ao referir, ao final do livro sobre o tempo, a uma “imaginação (do) real”  (reales Imaginatio) e uma “intencionalidade objetiva(da)” (objektive Intentionalität), mesmo sem explicar exaustivamente o que seriam, sobretudo esta última. Daí HCM associar o tempo com a vida, pois em ele faltando, com o correspondente imobilismo, ocorreria o que também conhecemos como sendo a morte. Ela também vai dizer que esse momento inicial e o outro, final, se considerados de ponto de vista onticamente temporal, podem ser aproximados até o momento presente, ou seja, o que já não o é, não é e o que ainda não o é, também não, sendo, ambos, nada, tal como seria antes da origem e depois do final...

3.     Do tempo e suas espécies: a duração indefinida transcendental-imaginativa (ou intencional-subjetiva), a temporalidade instantânea metafísico-real (ou intencional-objetiva) e a eternidade presente transfísico-eônica (ou imaginóide-etérea).

Um ponto, então, para começar, e eis o que melhor mesmo representa o começo, como também já a beira do fim, tanto que o “corte de Dedekind” em uma reta, ou seja, o que corta uma linha, é como se define matematicamente, na atualidade, o ponto. E com esse ponto, como seu desdobramento, “explicação”, se pode imaginar o que seria tudo o que se desdobra no tempo e no espaço, alterando e movimentando-se, a partir desse primeiro e já definitivo ponto. O ponto não tem dimensão, ou melhor, tem dimensão zero, pois não ocupa nenhum lugar no espaço, espaço que, também, não há, onde só há um ponto, ou melhor, o ponto. Ele também se encontra fora do tempo ou, dito de outra maneira, nele não há tempo, pois não há diferença, mudança, se não há sequer movimento. Lembremos, como o faz HCM, que o tempo, para Aristóteles, é a medida, o número do movimento como relação entre o anterior e o posterior. E uma das consequências da postura anti-subjetivista adotada por ela será, justamente, recuperar a possibilidade de se debater com pensadores antigos, digamos, tal como se tivessem formulado em nossos dias seus argumentos, pois se afasta a imposição moderna do sujeito como máximo fundamento securitário do conhecimento. No que diz respeito à discussão filosófica sobre o nosso tema, o tempo, segundo ela o primeiro a referi-lo à subjetividade e interioridade humanas, sob evidente influência do cristianismo, foi Santo Agostinho, o qual, em conhecida passagem das “Confissões” (XI, 14), diz só saber o que é o tempo no interior de si, não podemos exteriorizar esse conhecimento: “Se me perguntam, sei o que é, mas se me pedem para explicá-lo, já não consigo”.

Fora do espaço e do tempo, lá onde talvez qualquer um alcance em sonhos, ou quem seja especialmente dotado para a criação artística, religiosa, bem como de clarividência, há esse ponto, em que se tocam as esferas do tempo do mundo e daquele oniabrangente e supramundano, dito eônico (abrev.: Än) por nossa autora pode ser o ponto – estar neste ponto seria estar onde teologicamente se poria a divindade, por ser lá onde o sem nome e sem número, eterna e imutavelmente pode "in-(e)sistir". Ter atingido esse ponto é como interpreta nossa autora a iluminação de Buda, tal como Mircea Eliade a teria dado a conhecer, posto que de lá declarou revogada, para com ele, a terrível lei da irreversibilidade do tempo, dizendo-se contemporâneo do início do universo, assim como a chegada desse tempo seria o que, para ela, se pode estar anunciando na mensagem cristã da ressurreição dos mortos no final dos tempos, ou deste tempo (Die Zeit, pp. 282/283).  Nós, os que simples e atualmente "ex-sistimos" – e para HCM, contra Heidegger, essa não é uma característica apenas dos humanos, por saberem que sua vida tem no seu desaparecimento, na morte, sua destinação, assim como antes de nascer não existia, sendo a vida essa via indo do nada ao nada, um entre-nadas de nada, pois todo ente está sempre, do ponto de vista ôntico-temporal, a todo momento, saindo do nada, o que já não é, o que é passado, e se dirigindo, ou sendo tragado pelo outro nada, o que ainda não, que é o futuro - parece que fomos expulsos, por outro lado, dessa condição, de sermos sem sabermos que não somos, pois ser é ser desde sempre e para sempre, e assim estamos, “sendo fora”, “ex-sistindo”, mas a ela, a condição pré-natal, retornaremos, se é que não é nela que já estamos, ou continuamos, sem perceber, por não tematizarmos o chamado tempo eônico (Än). Este é o antípoda do tempo real, pois se ele (e nele) é sempre, só, o agora, (n)aquele, ao contrário, é já presente tudo o que aconteceu e acontecerá no mundo abaixo ou melhor, dentro dele: é o que nos sugere a imagem do ponto, se o pusermos em movimento, para fora da sua a-dimensionalidade, lançando-o em uma primeira dimensão, que assim se cria, onde (e quando) então ele aparece como uma linha. Estendendo-se, com o passar do tempo, em um espaço, que é essa extensão mesma, da linha, cortando um plano que ela, também, cria, gerando assim, numa segunda dimensão, a superfície.

O espaço, real, por onde se estende a linha, com o tempo, cronotopicamente (expressão de Bahktin, cunhada para designar a quarta dimensão, do espaço-tempo, da teoria relativística einsteiniana), irá encurvá-la, o que nos apresenta uma quarta dimensão: o espaço-tempo, segundo a teoria da relatividade, à qual melhor corresponde uma geometria não-euclidiana, como a de Riesman. A reta, no real, portanto, é o segmento de um círculo, e só é uma reta no plano imaginário, da superfície bi-dimensional. Já no plano simbólico, podemos convencionar que o círculo, real, assim como a reta, imaginária, seriam como um ponto, infinitesimal, próximo de nada, do vazio, do zero. Sua proliferação, numérica, resultaria em tudo quanto tomar forma, tal como delineado, intuitivamente, no plano geométrico euclidiano, como uma folha de papel composta de pontos. Nesse papel/plano, se introduzirmos dois eixos ortogonais referidos por coordenadas, normalmente designadas por x, para o eixo horizontal, e y, para aquele vertical, então os valores numéricos  de x e y se prestarão para localizar e nomear qualquer ponto, que seriam esses números, combinados, sem ser nenhum deles, exceto se forem definidos como número que não é igual a si mesmo, ou seja, o zero, na conhecida definição de Frege. Então, são esses conjuntos de nulidades que configuram tudo o que é, que só é por haver quem, vindo a existir, ilude-se com o começo e o correspondente fim de si, quando melhor seria entender, como o poeta, filosofando, que “each is at once the centre and the circumference; the point to which all things are referred, and the line in which all things are contained” (Percy Bysshe Shelley, “On life”, in: A defence of poetry and other essays, S.P.: Landmark, 2008, p. 16. Trad.:  “Cada um sendo por sua vez o centro e a circunferência; o ponto ao qual todas as coisas são referidas e a linha na qual todas as coisas estão contidas”).

O avanço da matemática, que é de se considerar como o avanço da própria imaginação humana criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o avanço da investigação  da matéria e do espaço físicos, permitindo que se sofisticasse e ampliasse muito nossa apreensão do estado do mundo em que nos encontramos, forjando a cosmologia relativística e a microfísica quântica, sobre as quais estava muito bem informada HCM. Nesta última, por exemplo, já se sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo cartesianismo da (primeira ou mais recuada) modernidade. Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo, reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”, já referido – um abismo na reta. A imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração redutora diante dela.

O movimento de um ponto produz uma reta, o movimento circular da reta produz o círculo e assim por diante. Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na práxis empírica, determinando aquelas formas em sua identidade absoluta, com propriedades absolutamente idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas formas de maneira metódica, com um método que garante verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura literalmente circular desta forma de pensamento fica evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um círculo diminuto, na tentativa de forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às pesquisas da física quântica sobre a estrutura do real. Quanto a saber se haveria continuidade entre os dois mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que de maneira alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação imaginária das formas sensíveis (Cf. “Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die tranzendentale Phaenomenologie”, 1936, § 9, passim). Por isso que a reta será melhor representada como uma continuidade imaginária dos pontos em que se tocam, na série de círculos que são os pontos,  postos lado a lado, pois assim fica evidenciada a verdadeira descontinuidade, que a imagem da reta nos oculta, assim como o conceito vulgar de tempo, como um contínuo retilíneo infinito ou ilimitado, quando é, antes, ao contrário circular, logo limitado, e descontínuo.

Eis que aparece sob nova luz a desgastada e desvalorizada definição de Euclides para o ponto, como “aquilo que não tem partes”, se combinada com seu quinto postulado não-geométrico, de que o todo é maior do que as partes, o que faz o ponto escapar do todo, de toda e qualquer representação ou manifestação no real, mas permanecendo na consciência imaginativa. Da mesma forma, o tempo adquire essa condição que HCM chama de “transcendental-imaginativa”, bem diversa do tempo real (abrev.: Rz), pois enquanto aquela existe na consciência, subjetiva, este existe no mundo real (abrev.: W) ou do real, também espacial, sendo o tempo de agora, o da atualidade (= Aktualitätszeit, abrev.: Aj) esse corte ou furo que atravessa o tempo real num mundo em contínua descontinuidade. O tempo no direito, por exemplo, sobre o que escreveu densas páginas o filho de Husserl, Gerhard, exemplificaria muito bem esse caráter imaginário e (intra-)subjetivo da temporalidade irreal, humana, beneficiária da descontinuidade do tempo real, pois expressando a liberdade a que assim temos acesso, podemos fazer o tempo, com o direito, retroceder ou ser diferido de acordo com disposições normativas, tanto legais como contratuais... Em conclusão, temos que não há, pela investigação de HCM, o tempo, mas sim, tempos, que são também lugares onde acontecem mundos - autopoieticamente, para utilizar uma expressão que não era empregada ainda na biologia em seu tempo, ou mesmo na teoria do conhecimento, mas que ela já anteciparia, quando desenvolvia idéias como a de auto-constituição da natureza, tal como aparece já no título de uma obra sua publicada em 1944, a saber, Der Selbstaufbau der Natur, Entelechien und Energien.




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