sábado, 8 de dezembro de 2012

ENTREVISTA PUBLICADA em "A Expansão do Direito: Estudos em Homenagem a Willis Santiago Guerra Filho" (2002)






                        ENTREVISTA COM WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
EFETUADA SANTOS, SP, EM 21 DE JUNHO DE 2001, FEITA POR VALÉRIA ÁLVAREZ CRUZ (falecida em 2005) E PUBLICADA IN:
“A Expansão do Direito: Estudos em homenagem a Willis Santiago Guerra Filho”. Haradja Torrens et al. (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.




            NO SEU MODO DE ENTENDER, O QUE SERIA A FILOSOFIA?



            A Filosofia, no geral, pode ser reconhecida, basicamente, por três características principais: a reflexividade, a circularidade e a dogmaticidade.

            A reflexividade significa que ela se coloca como objeto a ser conhecido por si mesma, implicando em auto-reflexão e em uma filosofia da filosofia.

            Todo filósofo precisa firmar uma posição sobre o conceito da filosofia, sobre o que ele vai fazer, enfim, filosofar sobre a filosofia, antes de filosofar propriamente, sobre o que for.

            Tornar-se objeto de si mesma é uma característica que a filosofia compartilha com outros saberes, mas não com o saber científico tradicional. Apenas ciências com um modelo mais recente, como a Teoria dos Sistemas, tem também como peculiar essa reflexividade – tomar a si própria como objeto –, o que termina superando a distinção clássica entre sujeito e objeto do conhecimento.

            A filosofia como objeto de si mesma envolve como conseqüência uma segunda característica, que podemos denominar “circularidade”, isto é, a espiral da reflexão, porque esta se volta sobre si mesma. Porém, deve-se evitar que a mesma se estiole em um círculo vicioso.

            Com referir a circularidade da filosofia também pretendemos indicar o fato de que não há nela o que se entende que há na ciência, um progresso do conhecimento, pois sempre se volta às mesmas questões, que, em tempos e lugares diversos, requerem respostas diversas, sem que por isso se perca o interesse pelas respostas dadas anteriormente. Tal contraste foi apontado, inclusive, por Karl Jaspers, em obra de introdução à filosofia.

            A filosofia também busca totalidade nas explicações, ao contrário da ciência, com sua marcada tendência à especialização e ao reducionismo, enquanto que se pode dizer, ainda, que a primeira possuí um caráter aporético, decorrente de sua circularidade e reflexividade, pois coloca a si mesma como uma questão para ela própria resolver.

            Daí a termos de postular sua dogmaticidade, que implica em uma tomada de posição, para iniciar o filosofar, lembrando que essa natureza dogmática distingue-se do dogmatismo, do qual devemos nos prevenir. Aliás, um passo importante para nos acautelarmos no tocante a esse dogmatismo seria justamente essa assunção do caráter dogmático da filosofia.

            Essa característica da dogmaticidade a filosofia compartilha com o saber jurídico, o qual também “circula” para o lado do seu objeto.  Afinal de contas, o que é o direito enquanto objeto de estudos, senão aquilo que percebemos como tal? O Direito muda de acordo com a forma de conhecimento que adotamos para compreendê-lo, e aplicá-lo. Então, é indissociável do Direito enquanto objeto e do modo como ele é conhecido, a forma de encará-lo - por exemplo, aquela de um jusnaturalista para um positivista. Dependendo da posição filosófica ou epistemológica que tenhamos, ela influenciará o entendimento do Direito, ainda que este seja o mesmo objetivamente.

            No Direito nós aceitamos com maior tranqüilidade a dogmaticidade, que causa certo escândalo dentre os filósofos, quando apontada em sua disciplina, que surge justamente se afirmando contra a opinião comum, que é a doxa, em grego, donde o “dogma”. Não há, no entanto, sem a dogmaticidade, como se escapar do ceticismo, da dúvida total a respeito de tudo, pois isso também é um dogma: o de que nada é verdade. O dogmatismo, contudo, deve sempre ser superado. A dogmaticidade, enquanto necessidade de se firmar uma posição, a partir da qual se desenvolve todo um pensamento, deve englobar o estar disposto também a rever essa posição, para evitar o mencionado dogmatismo.

            Sem firmar alguma posição, não se tem como desenvolver qualquer pensamento, que evite aquele círculo vicioso que em filosofia é representado pelo ceticismo, e que pode redundar na afirmação de que a verdade não existe, e em um relativismo cognitivo, e também ético, moral, que é ameaçador, pois envolve uma espécie de vale tudo, tendência e risco do pensamento contemporâneo.

Precisamos repensar, e ousar, como dizia o velho Kant, ousar saber – “sapere aude”, era sua divisa -, o que hoje em dia é cada vez mais ousar firmar uma posição, aberta a uma revisão.  Mas, se não se firma nada, se não há uma posição, não há também a possibilidade de revisão, ficando-se ao sabor dos acontecimentos, e com isso não há pensamento filosófico – nem pensamento algum, digno desse nome, mas apenas reações intelectuais a estímulos do ambiente, por mais complexas que sejam tais reações, por igualmente complexo ser o ambiente, em grande parte já resultante delas mesmas...

            Portanto, a filosofia pressupõe não só indagações, mas também posições, apresentando características que, como asseveramos, a distinguem da ciência e de outras formas de saber, com a arte, a religião e o direito, embora também compartilhe com elas algumas características.


            E COM RELAÇÃO À FILOSOFIA E À CIÊNCIA DO DIREITO?

            Em certo texto eu falei que o Direito é filosofia aplicada, porque ele tem as características da filosofia, e outras, como aquele sentido mais prático, voltado para a solução necessária de casos, de problemas, que é um aspecto da dogmaticidade de que falamos, bem mais clara no Direito do que na Filosofia.

            O Direito tem que dar soluções. A Filosofia também precisa avançar, e buscar soluções, especialmente onde não há a possibilidade de respostas científicas, que são mais valorizadas e esperadas na nossa sociedade.

            Não podemos ficar inertes, temos que oferecer soluções, até porque a ciência tem colocado questões que não podem ser respondidas por ela mesma, questões para além do limite da ciência, causadas pela ciência, como as da bioética.

            Em tal situação, o Direito tem que dar as respostas, como por exemplo, no caso da clonagem.  É preciso, assim, uma reflexão filosófica que venha subsidiar aqueles profissionais do Direito, os quais por sua vez se confrontam, concretamente, com essas questões.

            O fato da dogmaticidade no Direito ser bem mais presente decorre de nele não se exigir apenas um ponto de partida, mas também um de chegada. Na busca de soluções, necessariamente, no âmbito do Direito, haverá o oferecimento de respostas, para resolver os casos jurídicos concretos. Já da filosofia, se exige mais um ponto de partida, se bem que uma filosofia que parte de algum lugar e não chega a lugar nenhum, não é uma filosofia muito satisfatória.

            Uma outra preocupação para mim sempre foi, desde os meus primeiros textos, a epistemologia, sobretudo a jurídica, ou a reflexão sobre a ciência do Direito, sobre a possibilidade de se ter um estudo científico do Direito e suas implicações.

            Há toda uma discussão sobre o que é ciência, e deve-se ter uma que seja adequada ao fenômeno jurídico, a partir de um modelo para estudo científico dos fenômenos em geral. Este seria um modelo diferente daquele em que se baseou a ciência inicialmente, e que vem se desenvolvendo para dar conta de uma complexidade que a própria ciência permitiu que se percebesse, e que abrange u’a malha intrincadíssima de interações entre fenômenos. Isso vem, igualmente, forçando o estabelecimento de uma dimensão interdisciplinar que seja intrínseca ao próprio saber científico – daí que eu diria até, se me permitem o neologismo, ser um dimensão “intradisciplinar”, pois não se trata apenas de se relacionar uma disciplina com a outra, mas hoje em dia uma disciplina  que não inclua muitas outras vai acabar trabalhando mal em seu próprio campo de saber, e até distorcendo bastante as coisas.

            Então as exigências para um saber jurídico que possa ser considerado científico dentro desse modelo atual de ciência do Direito são muito grandes, mas precisam ser enfrentadas, para dar lugar a uma ciência do Direito superior, com as características da ciência contemporânea, mais ampla, e necessária também do ponto de vista político, no sentido de que a política, a meu ver, não trata de algo como intrigas palacianas, mas sim da nossa sobrevivência, donde terem filósofos como Foucault e Sloterdejk referido, com muita propriedade, à “biopolítica”, a política da vida, algo, portanto, de suprema importância para nós.

            Que cientificidade se deve e se pode pretender para o Direito?  A questão da ciência, ou da opção por ela, é uma questão ética. Qual o significado da ciência? Devemos, ou podemos, abdicar da ciência? Em resumo, a ciência nos levou a um abismo e é preciso construir uma ponte com o seu próprio auxílio para cruzar esse obstáculo.

            O Direito pode não ser adequado a um certo modelo de ciência, mas não podemos abdicar da ciência, e haverá de se construir um modelo, então, adequado ao Direito. Eu aposto nisso e venho me empenhando nessa construção.
                       

            E NO TOCANTE À FILOSOFIA APLICADA AO DIREITO PROCESSUAL E À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO?


            Esse tema foi discutido em meu livro “A Filosofia do Direito”. Há toda uma tradição processualística de negação da filosofia, da axiologia, dos valores acreditando que o processo é um ramo extremamente técnico, que prescinde de considerações dessa ordem, em uma visão que apenas ao Direito material, eventualmente, caberiam os frutos  do pensar filosófico. Porém, em direito processual há uma temática muito propícia para uma reflexão filosófica, que não é feita em geral, mas que pode trazer muitas contribuições, inclusive demonstrando que ocorre a realização de valores através do processo. Não se pode dissociar uma reflexão sobre o Direito, sobre os valores, de uma reflexão a respeito de sua realização mediante o processo.

            Assim, o processo fornece matéria para reflexões filosóficas, como por exemplo, a natureza da coisa julgada, a necessidade do contraditório, para constituir a estrutura dialética do processo, a um só tempo maleável e voltada para a fixação de uma decisão, além de outros temas. É assim que hoje em dia muitos filósofos tem se colocado em busca de um conhecimento mais técnico no âmbito jurídico, de que são exemplos Habermas e, dentre nós, Marcos Nobre, um colega da USP, que está fazendo o curso de graduação em Direito, para melhor elaborar seu pensamento jusfilosófico.

            Com relação à Teoria da Constituição, é um tanto diferente, pois esta não fornece apenas u’a matéria, mas também reflexões muito sofisticadas, do ponto de vista filosófico, desenvolvidas, inclusive, de um modo institucional, e não somente pessoal.

            Lembrando um livro de Mary Douglas, pode-se dizer que as instituições pensam. Então, que instituições tem dado uma grande contribuição para as reflexões de valor filosófico, confrontando-se com questões aquelas questões maiores, enquanto questões constitucionais? Os Tribunais Constitucionais contemporâneos, sobretudo o alemão, que ocupa um lugar de destaque nesse cenário.

            Infelizmente, o nosso STF não tem esse mesmo destaque. Não podemos considerar que ele tenha dado uma grande contribuição institucional para a reflexão sobre o Direito e a Constituição em nosso país, o que é uma grande perda para todos nós, tendo em vista o que o Tribunal Constitucional alemão efetuou nestas últimas décadas, como o verdadeiro condutor da transição desse país de uma ditadura para uma democracia, que nós, na realidade, não passamos ainda.  Se não plena, que talvez nunca exista, mas uma democracia, sem dúvida alguma, bem melhor do que a que temos entre nós, mais efetiva, por exemplo, no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais.

            Novamente recordo Habermas e seu livro sobre Direito, “Faticidade e Validade”, onde se nota claramente a grande influência e até a admiração que esse autor tem pelos trabalhos desenvolvidos pela instituição do Tribunal Constitucional alemão, trabalho prático, com uma função social e política, de resolver conflitos sobre direitos fundamentais, e de conflitos de competência entre os diversos poderes de Estado.

            Ser um bom tribunal é estar aberto, justamente, a um diálogo com a doutrina, assim como esta, vice-versa, também deve estabelecer um diálogo com as instituições. De todos esses contatos, o Direito só pode se beneficiar, pois tanto ele como as citadas instituições serão tanto melhores, conforme os trabalhos de elaboração teórica que sejam feitos, por elas, a partir delas e para elas.


            QUAL O FUTURO DA FILOSOFIA?


            É uma pergunta complicada, pois o presente da filosofia já é tão delicado, que se torna difícil pensar no seu futuro. Um saber tão combalido, tão ameaçado, dado por encerrado por filósofos proeminentes contemporâneos, como Wittgenstein e Heidegger, poderá ainda se pensar em algum futuro para ele?

            Esse dois filósofos, considerados por Rorty os maiores filósofos contemporâneos – enquanto este último, para muitos, é o maior filósofo vivo -, pensaram sob o signo do fim da filosofia.  Wittgenstein achava que com o seu “Tractatus” tinha resolvido todas as questões filosóficas – pelo menos, aquelas que seriam passíveis de ter uma solução -, e que, portanto,  acabava-se ali a filosofia. Já Heidegger, em seu célebre texto sobre a questão do pensamento e o fim da filosofia, diz que esta última acabou, ou seja, aquela filosofia que começou com os gregos, com Platão, e que acabou com os alemães, mais precisamente com Hegel.  No entanto, segundo ele, esse fim da filosofia pode reverberar mais tempo até do que o tempo de duração que ela teve. 

De qualquer modo, para o filósofo da Floresta Negra, a filosofia explodiu, acabou, e migrou para a ciência, completamente, e o término final dessa anulação foi a Cibernética.  A Cibernética toma o lugar da velha filosofia, enquanto forma de conhecimento da transmissão e controle da comunicação, em qualquer de suas formas.

            Eu acho que o futuro da filosofia está no passado. Precisa haver uma retomada de questões que ficaram esquecidas, ocultas, um pouco como que disse o próprio Heidegger.  Só que essa retomada, para ele, significa retomar o pensamento inicial, sendo que foi bom a filosofia ter acabado, pois como era (ou é, ainda) escondia a reflexão original, permitindo que uma outra forma de conceber o mundo ficasse reprimida, recalcada.  O fim da filosofia, em sua ótica, assim, inclui a possibilidade de que se retorne a uma senda perdida, inclusive aquela que se escondeu no tempo, com o aparecimento da filosofia conceitual, metafísica, que predominou a partir de Sócrates, graças a seu discípulo, que depois se tornou mais proeminente, isto é, Platão. Whitehead chegou a falar que toda a filosofia posterior pode ser considerada como notas de rodapé ao pensamento de Platão.

            Portanto, se discute e se vislumbra hoje a possibilidade de superação da filosofia platônica, em todas as suas modalidades, inclusive aquelas que representam a sua inversão, como a de Nietzsche.  Platonismo invertido ainda é platonismo - embora de cabeça para baixo se possa ver as coisas como não se veria de cabeça para cima...
                       
            Voltando ao tema mais central da pergunta, a filosofia há de ser pós-metafísica, pós-científica, forma de pensamento que restará ainda quando a ciência deixe de ocupar o lugar predominante que hoje ocupa, onde antes já esteve a Teologia, e a própria Filosofia, dentre os diversos saberes da Civilização Ocidental – aquela que agora se torna mundial, universal, como pretendem essas formas de saber, no que lhes é mais peculiar.

            Uma filosofia que será muito mais como foi nos seus primórdios, do que tem se demonstrado até hoje, ao longo de sua história. Uma filosofia como nostalgia de uma sabedoria perdida, como diz o próprio termo “filosofia”, “amor à sabedoria”, que eu considero uma forma de amor nostálgico pelo saber, apesar do fracasso em obtê-lo.

            A filosofia, como já ressaltou Farias Brito, ainda hoje o principal filósofo genuinamente brasileiro, é uma atividade permanente do espírito humano, e existirá sempre, ainda que no interior das pessoas, pois implica a capacidade de pensarmos, repensarmos e revisarmos, com afinco, as questões que nos são essenciais, onde se incluem aquelas, em um âmbito mais específico, que dizem respeito ao Direito e à sua problemática.
                       

                       
           

           




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