quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

DIREITO E RELIGIÃO


DIREITO E RELIGIÃO
WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
Livre Docente em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. Doutor em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (CE). Professor dos Programas de Pós-Graduação “stricto sensu” em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisador da Universidade Paulista (UNIP)

Pensar o Direito filosoficamente é pensá-lo a partir do fundamento que, oculto, o gera e gere, sua arkhé, como diziam os gregos antigos, já no período dito pré-socrático. E isso seria como arte uma de composição de idéias e conhecimentos das mais diversas origens, inclusive – e, talvez, principalmente - sobre nossas origens, sobre o que é originário em nós e de nós, como é o Direito. Em diversos de seus muitos sentidos literais, originais, então, pode-se dizer que é, em primeiro lugar, de algo entre o mito e a religião que assim se pratica. O saber daí decorrente é de se entender, portanto, como produtivo do que dá a conhecer, tal como uma forma de arte. Assim, tanto nos interessou re-colher, re-ligar, re-articular campos diversos do saber e instâncias diferenciadas da vida, como também nos ocuparmos com re-leituras, ou de leituras pouco usuais, no esforço de filosofia do direito apresentado.
Segundo autores clássicos latinos, como LACTÂNCIO o “religar” da religião quer dizer “vincular-se a Deus(es), enquanto para CÍCERO e VIRGÍLIO vem de “reler”, ou seja, “observar conscienciosamente”, respeitar a “palavra de(os) Deus(es)” Outros mais antigos, como Sérvio SULPÍCIO, à palavra religio faziam derivar de relinquere, isto é, deixar, abandonar, relegar. Para SANTO AGOSTINHO religião vem de “re-eleger”, isto é, “converter-se a um novo discernimento”. Da mesma forma, em SÃO TOMÁS DE AQUINO, religio será entendida em um sentido mais próximo a este, mas com uma conotação  menos intelectual e mais emocional, de adoração. O que teria originado esta prática, tão propriamente humano, de se pôr em adoração, de se submeter, respeitar algo como sagrado, obedecer a ditames, como aqueles que formam a própria linguagem e tudo o mais que a pressupõe, como o direito?
Lembremos, a esse respeito, do mito concebido por FREUD, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico. Na origem de tudo, para FREUD, estaria um crime, o primeiro, o assassinato de um pai, que só depois de assassinado os assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos, como filhos – e parricidas.  Esse pai teria sido morto por não partilhar nem limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e ab-usava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, que é um parricídio, uma conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que seria justificável, e de fato veio a ser até por padres da Igreja Católica, teólogos-juristas medievais, os “regicidas”. Só que o tirano, depois de morto, revelou-se como pai.
Na situação que podemos imaginar como sendo aquela dos "filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que cresciam, eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus próprios meios o sustento e as suas mulheres. Ora, essas criaturas - de acordo com a explicação dada em teoria recente sobre o surgimento do humano, devida ao biólogo chileno de renome internacional, HUMBERTO MATURANA -, se eram seres "proto-humanos", então já conheciam o amor e eram cooperativos numa escala jamais atingida por seus "primos" não-humanos, os chimpanzés, que por serem tão agressivos não evoluíram no sentido de uma hominização. A meu ver, isso torna ainda mais consistente o mito-fundador da sociabilidade humana, concebido por FREUD, mito em que encontramos, como veremos em seguida, as características próprias da tragédia, o seu telos, tal como se acha definido por ARISTÓTELES, nos capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a poética: provocar piedade e temor.
Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que os filhos expulsos ficam inconformados com a perda do convívio na horda, onde aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia que os levou a pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os expulsaria, e que, morto, ausente, se revelará como o pai. Eis que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", donde terem  instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que LÉVI-STRAUSS considera a lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira, a que proíbe o incesto... com a mãe.
Na situação em que se encontraram nossos antepassados parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o instrumento de purgação e apaziguamento de semelhantes paixões, pela catarse provocada com a encenação das tragédias: o temor – a primeira obra de Deus: "prius in terram deus facit terror" - e a piedade (inclusive, auto-piedade).
Assim é que, como para complementar o mito do assassinato do pai primevo, a outra grande invenção de FREUD, para estabelecer o estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui, inspirou-se na tragédia de SÓFOCLES, "Édipo-Rei", apontada por ARISTÓTELES, no capítulo décimo quarto de sua obra por último citada, como exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmo-nos. Ali, também um filho assassina, inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ou seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual com a mãe, acompanhado de um gozo letal. Em ambas as hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela se toma consciência, é o reforço da interdição, com a invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto, revela-se como condição do gozo, ao acenar para a sua possibilidade, anunciada no  além  dela,  isto  é,  na sua trans-gressão.
Em uma outra  narração do que teria ocorrido naquele tempo mítico, o que é conceituado por LÉVI-STRAUSS, em sua "Antropologia Estrutural", como abrangente do passado, presente e futuro, aquele em que se deu (dá e dará) o assassinato do pai primevo, pode se ver os filhos como "expulsos do paraíso". A mesma coisa, portanto, pode-se considerar como articulada no livro do Gênesis, no mito do paraíso perdido, onde a transgressão da Lei de Deus-Pai, Todo-Poderoso, aparece como condição para que o primeiro homem e a primeira mulher conheçam o sexo, pois só assim percebem que estão nus; conheçam a morte, ao tornarem-se mortais; conheçam a limitação à sua possibilidade de conhecer, por não poderem  conhecer a Deus ou à realidade única, numênica (devo ao saudoso amigo LUIS ALBERTO WARAT, em conversa no dia 16/12/2007, no Rio de Janeiro, a compreensão disso); e conheçam as leis, que lhes permitirá estabelecer a diferença entre o bem e o mal. Portanto, graças ao desejo de transgredir a ordem divina, dada para que eles conhecessem o desejo, é que se tornaram sujeitos, separados de Deus e, ao mesmo tempo, mais próximos d'Ele, de ser como Ele. A mesma idéia é detectada por LACAN em uma epístola de S. PAULO, quando em determinada passagem afirma que não teria conhecimento do pecado, antes de conhecer a lei que o proíbe.
Na Bíblia, portanto,  também podemos encontrar apoio para nossa hipótese mítica de que o primeiro pai foi assassinado: imaginem por qual pecado ou crime original se exigiria o sacrifício de JESUS, do "filho do homem" e “filho d'Ele”, se não fosse, de acordo com aquela lei que rege o direito penal primitivo, a "lei de Talião", o assassinato do pai, o assassinato de Deus, o mesmo Deus que exigiu o sacrifício do filho de ABRAÃO apenas para comprovar sua fé n’Ele, dispensando-o, ao final, do cumprimento da promessa.  Como NIETZSCHE fará seu personagem perguntar, em seu diálogo com o “último Papa”, na quarta e última parte de "Assim falou Zarathustra", para saber como Deus morreu: “É verdade, como se fala, que a compaixão O sufocou, que Ele viu, como o Homem foi pregado na cruz, e não suportou, que Seu amor pelo Homem foi Seu inferno e, por fim, Sua morte?” -  ao  que o “último Papa” reagiu com mutismo, com uma expressão envergonhada e dolorosa....
Com Deus morto, para LACAN, dá-se o contrário do que SARTRE supõe, em seu manifesto existencialista "O Existencialismo - É um Humanismo?", retomando a fórmula dostoiévskiana: "Se Deus está morto, tudo é permitido". LACAN entende que, ao contrário, com Deus morto, nada é permitido. Quando Ele estava vivo, presente, existente, nos edênicos tempos adâmicos, é que tudo era permitido, ou melhor, tudo menos uma coisa: comer o fruto da árvore do conhecimento. Agora que ele foi comido, assim como o Deus-Pai do banquete totêmico, Ele morreu para nós, ausentou-se, não existe, mas “ek-siste”, “está fora”; nos tornamos seres desejantes, sexuados e mortais; nada mais na vida é permitido, só uma coisa é permitida: morrer. Daí que entre os existencialistas penso que LACAN daria  mais razão a CAMUS, quando inicia seu ensaio "O Mito de Sísifo" colocando o suicídio como a questão filosófica fundamental.
 Nesse contexto, é inevitável lembrarmos Antígona, filha (e meia-irmã) de Édipo, o símbolo da firmeza ética, para todas as éticas possíveis, inclusive a ética da psicanálise, de LACAN, cujo imperativo categórico é: "não ceda de seu desejo". Disso resulta a negação de toda ética universalista, tal como aquelas propugnadas na modernidade, em prol da ética de cada um, a ética individual e situacional, a ética da amizade e do cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu por último FOUCAULT.
Dependendo do ponto de vista, ANTÍGONA pode aparecer como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito positivo; santa, para o direito meta-positivo, de origem religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem santa, nem criminosa, duas ilusões provocadas por duas ficções diferentes: a religião e o direito.
Para a psicanálise, ANTÍGONA apenas agiu conforme o seu desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era permitido escolher a morte que teve, como condição de seu gozo. Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu corpo para ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria em paz, na paz que não teve um outro seu irmão, seu pai, ÉDIPO. Eis aí representada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por ROGER CAILLOIS, condição da vida e porta para a morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial e a re-sacralização estetizante crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos” (MAFFESOLI).
Na base de toda essa ilusão (ou ficção) coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões, está a ilusão individual de que somos um ser, fixo, acobertando com isso o vazio que realmente somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta “aquilo” – o objeto “a” de Lacan - que julgávamos ser (por exemplo, nossa mãe, “onde” “éramos” antes de nascer), nos leva a falar. Adquirindo a linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu. Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir “(a)lgo” que preencha-nos o vazio de ser, terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa. Se não nos voltarmos para a arte em alguma de suas mais diversas formas, onde se inclui a arte da política e mesmo a religião – uma forma de religião artística, criativa, prazeirosa, festiva, à qual OSWALD DE ANDRADE, "A Marcha das Utopias",  qualificava como “órfica”, em tudo diversa daquelas religiões cultuais, repressoras e subordinadoras -, para daí fazermos o fundamento do mundo em que vivemos e que vive conosco: do contrário, não haverá salvação possível para ele – e,  conseqüentemente, para nós também.  
Nas primitivas comunidades, a diferenciação social incipiente, agregada a outros fatores, tais como a natureza do poder social, acarreta o conhecido fenômeno que se pode denominar de "sincretismo normativo", pois as normas que regulam a vida social acham-se condensadas num agregado indiviso, onde é impossível discriminar quais teriam natureza moral, jurídica, religiosa ou de mero trato social. Neste sentido, costuma-se apontar para o caráter religioso de que se revestem as primeiras manifestações jurídicas no seio social, por serem as instituições religiosas aquelas dotadas de maior autoridade, em grupos sociais onde a especialização de funções e divisão do trabalho ainda não ensejou o aparecimento de algo como o Estado. Assim, em obra hoje clássica, já sustentava FUSTEL DE COULANGES, em "A Cidade Antiga",  que "entre os gregos e romanos, como entre os hindus, a lei surgiu, a princípio, como uma parte da religião. Os antigos códigos eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas". Adiante, explica que a razão pela qual "os mesmos homens eram, ao mesmo tempo, pontífices e jurisconsultos, resulta do fato de direito e religião se confundirem, formando um todo”. Daí que o Direito podia ser concebido como estudo ao mesmo tempo de coisas divinas e humanas - “Jurisprudentia est rerum divinarum atque humanorum notitia”, rezava uma definição antiga, de ULPIANO, conservada no corpo legislativo justinianeu.

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