terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Extensão Psicanalítica




ENSAIOS DE PSICANÁLISE APLICADA



Willis Santiago Guerra Filho*








São Paulo, Abril de 2005
Ø
APONTAMENTOS INICIAIS DE PSICANÁLISE

Em 1891, FREUD escreveu o primeiro dos seus estudos sobre as paralisias cerebrais em crianças, e começou a investigar a teoria da afasia. Enquanto observava o trabalho de BERNHEIM com seus pacientes no hospital, começou a pensar com mais intensidade acerca da possibilidade de haver “poderosos processos mentais que, não obstante, permaneciam escondidos da consciência dos homens. É assim que, embora não constem de suas “Obras Completas”, por entenderem seus editores de ali só incluírem obras psicanalíticas, já naqueles estudos neurológicos se pode rastrear elementos do pensamento freudiano posterior, o que é ainda mais explícito no abandonado “Projeto de uma Psicologia Científica para Neurólogos”, com seu modelo energicista.
Em “Uma breve descrição da psicanálise”, o próprio FREUD afirma que ela nasceu no século XX, em 1900, com o aparecimento da obra “A interpretação de sonhos”, embora tenha afirmado, em ocasiões anteriores, serem seus “Estudos sobre a Histeria”, realizados com BREUER, os primeiros de cunho psicanalítico – no que parece ter sido repelido até por BREUER. A todo nascimento, no entanto, antecede um “período de geração”. Assim foi, também, com a psicanálise. É necessário, pois, chamar atenção acerca das influências que determinaram sua origem, assim como a época e as circunstâncias que precederam sua criação. Não se sabia muito a respeito das “doenças nervosas funcionais”. Não existia, na verdade, um tratamento médico adequado para elas. Os médicos da época, somente começavam a tratar a paralisia histérica quando a doença já se encontrava em estágio avançado, tendo danificado gravemente o cérebro e levado a paralisias orgânicas. Foi, então, que FREUD concluiu que, durante a hipnose, havia a manifestação de processos mentais inconscientes. Ele  concluiu isso com base no comportamento dos pacientes, após a hipnose: eles não tinham consciência do que haviam dito ou sentido.
CHARCOT utilizava-se da hipnose para curar pacientes histéricas, mas não direcionou seus estudos no sentido da compreensão psicológica da histeria. Seu discípulo, PIERRE JANET demonstrou que os sintomas da histeria eram dependentes de certos pensamentos inconscientes (idéias fixas). Atribuiu, no entanto, a histeria a uma suposta “incapacidade constitucional”.
O “caso Anna O.”[1] serviu bem para ilustrar a relação entre os sintomas da histeria e o período de enfermagem. Em outras palavras, pode-se relacionar a vida emocional do paciente aos sintomas que aparecem na histeria.
Para BREUER e FREUD, nos casos de histeria, o afeto passava por uma inervação somática fora do comum (conversão), o  que gerava o sintoma - mas se lhe podia dar uma outra direção e ver-se livre dela, se a experiência traumática fosse revivida sob hipnose. Esse “redirecionamento” foi chamado de “método catártico”, sendo considerado o “precursor imediato da psicanálise”, onde está contido o seu “núcleo essencial” [2].
Após a publicação de “Estudos sobre a Histeria”, FREUD e BREUER se separaram: FREUD resolveu dar mais um passo no sentido do desenvolvimento do método psicanalítico. Ele achava que a hipnose não era a forma mais adequada de tratar pacientes histéricos, em primeiro lugar porque ela não funcionava com todos os pacientes: muitos não conseguiam entrar em transe. Em segundo lugar, porque ele não estava satisfeito com os resultados terapêuticos da catarse baseada na hipnose: o paciente não tinha consciência dos processos inconscientes pois, quando ocorriam, ele se encontrava “em transe” - portanto, não consciente. Notou, também, que o bom resultado do tratamento dependia muito da “boa relação entre paciente e médico”.
        Era necessário, no entanto, substituir a hipnose por outro mecanismo que possibilitasse ao paciente recordar aquilo que ele havia “esquecido”. Foi nesse contexto que surgiu a idéia de utilizar a “livre associação” como principal mecanismo substitutivo da hipnose. A livre associação consistia no compromisso dos pacientes “de se absterem de qualquer reflexão consciente e se abandonarem em um estado de tranqüila concentração, para seguir as idéias que espontaneamente (involuntariamente) lhe ocorressem – a escutarem a superfície de suas consciências.” [3] Cumpre ressaltar que, para que as idéias fluíssem com espontaneidade era necessário que se estabelecesse um vínculo emocional entre paciente e terapeuta – a transferência. A este caberia interpretar as idéias “importantes” que fossem surgindo na fala do paciente. As idéias que seriam consideradas “importantes” para a terapia, dependiam da interpretação (particular) do terapeuta[4] e estariam vinculadas a cada caso concreto: a história pessoal do paciente. Dessa forma, a transferência, a livre associação e a interpretação do terapeuta substituíram a técnica de hipnose.
        Nesse processo interpretativo era necessário levar em conta, principalmente, as “resistências” do paciente. Resistência, recalque ou repressão, Verdrängung em alemão, consiste em uma sensação que de incômodo ou sufoco, que leva o paciente a “desalojar” o material que o incomoda. “Contudo, apesar de ter sido afastado, tal material permanece junto ao sujeito, pressionando pelo retorno e exigindo a mobilização de esforço para mantê-lo longe.”[5] O chamado “retorno do reprimido” se refere à “pressão pelo retorno”, que gera os “sintomas”  apresentados em pacientes histéricos, por exemplo.    
A causa da repressão pode ser encontrada em valores morais, religiosos, sociais, etc. Os impulsos sujeitos à repressão dependem sempre da “história pessoal” do paciente e estão sempre ligados à idéia de erro, de mal dos impulsos sexuais vivenciados na infância.  Apenas em conseqüência da repressão é que os fatos se tornam patogênicos, “isto é, haviam tido êxito em manifestar-se ao longo de caminhos fora do comum, tais como os sintomas.”[6]
Ao contrário do que se pensava até então, FREUD defendia que os processos mentais são em si mesmos inconscientes. Apenas uma pequena parcela “escapa para o consciente”. A maioria dos processos mentais se tornam conscientes “pelo funcionamento de órgãos especiais (instâncias ou sintomas).”[7]
FREUD defendeu que, se todas as condições postuladas pela psicanálise fossem implementadas, seria possível estender o tratamento psicanalítico a outros “fenômenos”, além da histeria. Na  obra “A Interpretação dos Sonhos” – publicada em 1900, conforme já salientado - FREUD já defendia que os sonhos eram construídos exatamente da mesma maneira que os sintomas neuróticos. O sonho, com sua linguagem figurativa, aparece como uma realização disfarçada de um “desejo reprimido. “O estudo do processo que transforma o desejo latente realizado no sonho – processo conhecido como trabalho do sonho – ensinou-nos a maior parte do que sabemos sobre a vida mental inconsciente.”[8] Também as parapraxias ou “atos fallhos” (Fehlschlüsse) – esquecer coisas, lapsos de língua –tão freqüentes na vida cotidiana, são vias de acesso ao inconsciente. Dessa forma, a psicanálise poderia ser relacionada à vida normal, criando, então, uma nova psicologia.
A partir de então – ano de 1909 -, sua obra começou a ser divulgada e foram fundados periódicos dedicados exclusivamente à psicanálise, principalmente em países da Europa e Estados Unidos[9].
Entre 1911 e 1913, C.G. JUNG[10], em Zurique, e ALFRED ADLER, em Viena, chamaram atenção da comunidade científica da época, na tentativa de atribuir uma nova interpretação à teoria psicanalítica, na tentativa de “suavizá-la”, livrando-se dos rigores e exigências da psicanálise, em respeito a seus princípios. Muitos depois de JUNG tentaram conferir uma nova interpretação à psicanálise, muitas delas distorcidas e equivocadas – principalmente na Inglaterra e Estados Unidos.
A teoria psicanalítica não está, no entanto “completa”. Muitas de suas teorias – e a psicanálise pode ser descrita antes como um conjunto dessas teorias (teoria do narcisismo, das pulsões etc.), ao invés de uma só teoria -, como aquela relativa à libido, não estariam absolutamente completa. 
Com a implementação de novas pesquisas em psicanálise foram descobertos fenômenos humanos bastante importantes e interessantes, como o fenômeno de que “nos estratos mais profundos da atividade mental inconsciente, os contrários não se distinguem um do outro, mas são expressos pelo mesmo elemento.”[11] Em pesquisa realizada por um filólogo, KARL ABEL, em 1884,  havia-se descoberto que as línguas mais antigas, conhecidas por nós, tratam os contrários da mesma maneira – a palavra alemã Boden, significa ao mesmo tempo sótão e chão, ou seja, a parte mais alta e mais baixa da casa. Com base nesses fatos, pode-se afirmar que a “equivalência dos contrários nos sonhos constitui um traço universal do pensamento humano.”[12]
Também foi “descoberta” a vinculação do sentimento religioso à relação com o pai, como sua raiz mais profunda; as expressões artísticas – literatura, pintura, etc. - mostram, na verdade, a vinculação delas ao “inconsciente incompreensível”, permitindo a “construção de uma ponte” entre o mito e a realidade: o complexo de Édipo. O complexo de Édipo é o “correlativo psíquico de dois fatos biológicos fundamentais: o longo período de dependência da criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida, e depois, passado um período de inibição, reinicia-se na puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma terceira parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a parte criadora das grandes instituições da religião, do direito, da ética e de todas as  formas de vida cívica, tem como seu objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de suas ligações infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas.”[13]
A divisão do aparelho psíquico em EGO (Ich), SUPEREGO (Überich) e ID (Es), bem como em uma região dominada pela consciência (Bewußtsein) e outra, bem mais vasta, de contornos indefinidos, onde prevalece o inconsciente (Unbewußt), faz com que possamos definir a psicanálise como a psicologia do ID e de seus efeitos sobre o EGO, mediados pelo SUPEREGO. Daí ter FREUD consagrado como objetivo maior de sua técnica tornar consciente o que está insconsciente: “Wo Es war, soll Ich werden”.[14]
        Os estudos de teoria psicanalítica vem contribuindo significativamente para que se compreenda a ação constitutiva que tem o desejo em relação à subjetividade humana. Para que chegássemos a nos conceber como sujeito, no entanto, fez-se necessário um longo percurso, no qual influenciaram sobretudo contribuições de proveniência religiosa, filosófica e jurídica.
A contribuição maior da religião, especialmente aquela de origem semita, monoteísta, reside na produção de um primeiro sujeito, Deus todo-poderoso e onisciente, pois o sujeito tal como o concebemos e com o qual nos identificamos, é um sujeito de saber e um sujeito de poder, de vontade de poder (Nietzsche), de vontade de vontade (Heidegger), ou, simplesmente, um sujeito de vontade, pois a vontade já implica um querer se impor aos outros e/ou ao mundo. A filosofia, desde sua origem grega, vem contribuindo com o desenvolvimento do sujeito de saber, tendo reforçado esta vertente da religião semita, quando de seu encontro histórico, do qual resultou a teologia medieval, origem mais próxima da subjetividade moderna, com suas implicações econômicas, políticas etc. O direito, especialmente desde sua elaboração pelos romanos, sob o influxo já da filosofia grega, revela-se a terceira matriz fundamental da configuração de nossa subjetividade, conferindo-lhe a forma para sua expressão institucional, definindo, por exemplo, nosso modelo de filiação, vinculação matrimonial, apropriação e disposição de bens etc. A concepção jurídica romana já se faz presente, assim como última grande corrente filosófica grega, o estoicismo, que tanto a influenciou, na origem mesma do cristianismo, através de seu primeiro sistematizador, Paulo, sendo a versão cristão da religião monoteísta semita, por sua adoração de um Deus que se fez homem, fator absolutamente decisivo para realização de nossa subjetividade atual, pois Cristo foi o primeiro sujeito humano, com características que agora se atribui a todos, em obediência a sua doutrina. Um momento em que se dá o entrelaçamento mais firme entre o direito, a religião e a filosofia/teologia, tendo como pano de fundo uma renovação dos estudos da linguagem, e que assume particular importância para o que se sucedeu – ou seja, nossa Civilização -, foi aquele do chamado primeiro renascimento, na última passagem de milênio, nos séculos XI e XII, portanto. Este período marca o início do que se pode denominar “primeira modernidade”, quando a Escolástica medieval se constitui, sob a influência do nominalismo dialético representado exemplarmente no pensamento de Abelardo, mais conhecido por ter sido protagonista do que se pode considerar o primeiro caso de amor romântico – e, logo, moderno -, sendo que seu pioneirismo se deu também no campo das idéias, que, de todo modo, é indissociável daquele das emoções e sentimentos, como hoje sabemos, graças, também, à psicanálise.



I
De tragédias, mitos, direito e outras ficções
contempladas pela metapsicologia freudiana.

Ao comparar manifestações mais tradicionais de ordens simbólicas e normativas, como a religião, a ética e o direito, com a psicanálise, ressaltam os contrastes. Por exemplo, entre a miríade de regras que constituem os primeiros, regras com caráter genérico e abstrato, e aquela uma só regra, concreta e individual, que constitui a última: a da associação livre, para revelar-nos os desejos, sempre pessoais. A psicanálise, portanto, não se prestaria a fundamentar um discurso que tenha por objeto algo da ordem do coletivo.
Vale esclarecer que aqui seguimos a Freud e Lacan,[15] quando insistem em tratar do  coletivo  não  como  uma entidade com "id-entidade" própria, mas sim, como projeção do individual. G. Pommier ressalta que "embora não exista inconsciente coletivo, existem ficções coletivas, que retiram sua força do inconsciente de cada um".[16] Por outro lado, é bom lembramos que, se o inconsciente não é coletivo, tampouco é individual, mas sim "transindividual", enquanto constituído por um Outro, efeito sobre o sujeito de uma ordem simbólica, que o antecede e transcende,[17] por estar no começo, tanto da espécie (filogênese), como de cada indivíduo (ontogênese). Inclusive, como destaca Enrique Mari,[18] Freud enfatizou isso tendo em vista uma leitura de sua obra "Psicologia das Massas e Análise do Eu" (v. esp. cap. X),[19] naquele primeiro sentido, feita por Hans Kelsen,[20] quando no final de seu longo percurso teórico irá concluir que o fundamento no qual o direito se assenta é uma norma fictícia – sendo ele, portanto, assim como a religião, a moral e, porque não dizer, a própria psicanálise, grandes ficções, que construímos individual e coletivamente para tornar possível nossas vidas em comum, o que termina sendo enormemente favorecido se nos damos conta desse seu caráter fictício, simbólico, convencional: se não esquecermos que estamos para efeitos práticos assumindo como verdadeiro o que não é (ou não se sabe se é)  - desenvolver racional e conscientemente uma ilusão não é melhor do que se iludir com a racionalidade e a consciência?
De forma convincente, a partir de uma série de estudos dedicados ao assunto, Joel Birman sustenta que o intento de Freud, de fundar em bases científicas a psicanálise, teria esbarrado em obstáculos epistemológicos intransponíveis,[21] os quais, no entanto, serão superados, por meio daquilo que o próprio Freud denominará sua “metapsicologia” – a ela, em estudo célebre de 1937, sobre o fim da análise, se referirá como a “feitiçaria” que usou, para atravessar aqueles obstáculos. Já em seu estudo “Uma neurose diabólica do século XVII”, de 1923, Freud demonstrará seu respeito pelo enfoque demonológico da loucura, superior ao da ciência oficial de então, assim como na segunda série de palestras introdutórias à psicanálise, de 1933 - que, como é sabido,  jamais vieram a ser pronunciadas, devido à saúde de seu autor -, naquela que teria sido a 30ª palestra (a segunda da nova série), ele fará em relação às práticas ocultistas, especialmente a telepatia, considerando possível que o futuro avanço da ciência a revelasse plausível, enquanto, por hipótese, um resquício de quando nossos antepassados se entenderam sem possuírem a linguagem para se comunicarem. Ao que parece, portanto, Freud teria chegado a conclusão semelhante àquela de Lévi-Strauss, quando o antropólogo afirmou não poder diferenciar o estudo dos mitos feito por ele desses mitos mesmos...
Certa feita disse Jacques Lacan, em um de seus Seminários,[22] "o que vem lá do começo tem um nome: é o mito". Myeîn, em grego antigo, significava iniciar. No mito, mascara-se a verdade. Mas ela está lá, só que mascarada, enfeitada. Talvez isso seja preciso por não ser tão bela e agradável olhar para ela; por não suportarmos vê-la diretamente, sem anteparos, assim como não suportamos olhar de frente, por muito tempo, o sol - ou a morte. Como Nietzsche, que em sua obra “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música” (1872) atribui à extrema sensibilidade do grego antigo para a dolorosa verdade da existência que pode se acabar violenta e abruptamente sua capacidade a criação das tragédias, podemos ver aí a fonte de sua rica mitologia, bem como, posteriormente, da transformação de ambas em filosofia, mãe de toda ciência.
        Então, no mito, a verdade é dita, mas não toda a verdade: uma verdade pela metade, isto é, literalmente, em símbolos. O mito é da ordem do simbólico. Aqui, vale observar que não há uma só explicação para a origem etimológica da palavra "símbolo" -  como, aliás, ocorre com freqüência, em etimologia -, mas penso que aí, mesmo quando fantasiosa uma explicação dada, ela não perde seu valor como expressão do imaginário - e a explicação real, do real, de qualquer forma, é impossível de ser dada, pois ele se define -  em Lacan -, precisamente, como o que nos escapa. Para nós, nesse contexto, mito é uma fantasia estruturante do sujeito, uma verdade, que, como toda verdade, "tem uma estrutura de ficção",[23]  e "só pode ser concebida se enunciada em um semi-dizer".[24]
        Lembremos, portanto, nessa perspectiva, do mito concebido por Freud, para figurar o surgimento da religião e de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico. Na origem disso tudo – onde se inclui, é claro, o próprio direito - estaria um crime, o primeiro, o assassinato de um pai, que só depois de assassinado os assassinos o perceberiam como pai, e a eles, os assassinos, como filhos.  Esse pai teria sido morto por não partilhar nem limitar o seu gozo, pois só ele detinha, usava, fruía e ab-usava das mulheres da chamada "horda primitiva", em que viviam agrupados. Há, portanto, nesse assassinato, uma conotação de reivindicação de direitos, de tiranicídio, o que seria justificável, e de fato o foi, dadas certas circunstâncias, até por padres da Igreja Católica, teólogos-juristas medievais, regicidas. Só que o tirano, depois, revelou-se como pai.
        Na situação que podemos imaginar como sendo aquela dos "filhos" nessa horda primitiva, eles, à medida que cresciam, eram expulsos pelo "pai", para que conseguissem por seus próprios meios o sustento e as suas mulheres, o que bem pode ser entendido como “trágico”: No mito-fundador da sociabilidade humana, concebido por Freud, encontramos, como veremos em seguida, as características próprias da tragédia, o seu telos, tal como se acha definido por Aristóteles, nos capítulos sexto e décimo terceiro de seu tratado sobre a poética: provocar piedade e temor. Retomando a narrativa do mito freudiano, tem-se que os filhos expulsos ficavam inconformados com a perda do convívio na horda, onde aprenderam as vantagens da cooperação, para atingir o que sozinhos não conseguiriam, donde ter-lhes ocorrido a idéia que os levou a pactuar, tacitamente, o assassinato de quem os expulsou, e que morto, ausente, se revelará como o pai.[25]  Eis que, porém, esse primeiro contrato, um pacto de sangue, o verdadeiro "contrato social", não resultará muito benéfico para as partes contratantes, pois eles terminaram ficando, de qualquer modo, sem aquele que os protegia e alimentava. Além disso, ao invés da aprovação, devem ter despertado a indignação de suas "mães", que aí também ficaram sem essa proteção e, de resto, sem um "homem de verdade", donde terem  instaurado o matriarcado, em que o gozo do direito às mulheres e a tudo o mais foi organizado pelas mulheres, reforçando aquela Lei que Lévi-Strauss considera a lei fundadora da sociedade, lei ao mesmo tempo natural e social, a primeira: a lei que proíbe o incesto com a mãe.[26] Após o assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por todos, havendo neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que um sentido de incorporação do poder e de recolhimento em si do morto, a finalidade de instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”. 
        Na situação em que se encontraram nossos antepassados parricidas, é fácil imaginar que tenham experimentado os sentimentos que, na Grécia Clássica, foram considerados o instrumento de purgação e apaziguamento, pela catarse provocada com a encenação das tragédias, de semelhantes paixões: temor - "prius in terram deus facit terror" - e piedade (inclusive, auto-piedade). Assim é que, como para complementar o mito do assassinato do pai primevo, no dizer de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está morto",[27] a outra grande invenção de Freud, para estabelecer o estatuto da fantasia inconsciente que nos constitui, inspirou-se na tragédia de Sófocles, "Édipo-Rei", apontada por Aristóteles, no capítulo décimo quarto de sua já citada obra, como exemplar para nos dar o prazer próprio da tragédia: nos fazer "tremer de temor" e apiedarmos.[28] Ali, também um filho assassina, inconscientemente, o pai, que o expulsara do convívio familiar. Só que Édipo, ao contrário dos filhos da horda primitiva, vai realmente possuir sua mãe, ainda que sem o saber (inconscientemente), ou seja, da eliminação do pai não vai decorrer, como para aqueles "filhos primevos", a abstinência, mas sim, o oposto, a realização do ato sexual com a mãe, acompanhado de um gozo letal.[29] Em ambas as hipóteses, contudo, o resultado da transgressão, quando dela se toma consciência, é o reforço da interdição, com  a invocação do pai morto e de sua Lei. A interdição, portanto, revela-se como condição  do  gozo, ao acenar para a sua possibilidade, anunciada no  além  dela,  isto  é,  na sua trans-gressão.
Eis aí representada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contido pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial e a “re-sacralização” crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos”.[30]
        Há, então, para a psicanálise, um pai-morto na origem da sociedade, da religião, da ética e do direito, assim como na origem da própria psicanálise, só que aí não é um pai-mítico, mas um pai real, o pai do pai da psicanálise, o pai de Freud, cuja morte, segundo atesta ele próprio, o teria levado a escrever o seu primeiro trabalho puramente psicanalítico, "A Interpretação dos Sonhos", a partir da interpretação que elaborou para os sonhos que tinha com seu falecido pai. Depois, com a postulação do complexo de Édipo e do mito da horda primitiva, Freud vai pôr um pai-morto na estrutura de nossa organização psíquica. Por fim, em sua última obra, “Moisés e o Monoteísmo”, Freud pretende descobrir um patriarca assassinado pelos seus na origem da nação e da religião monoteísta judaica. Então, como dirá Lacan, tudo gira e é amarrado pelos "Nomes-do-pai" - e ele dará vários nomes ao Pai, pois o conceberá como uma "função", mais dessubstancializado do que em Freud, por quem era tido como uma "posição". O significante "Pai" é equivalente ao significante "Lei", no mesmo encadeamento ao qual pertencem outros significantes, como "Deus" e "Falo", por entre os quais o sujeito se constitui, e pelos quais é representado. [31]
Tendo referido à lenda de Édipo para caracterizar, segundo a psicanálise, a associação da Lei, em suas diversas modalidades, com a função paterna, vale fazer uma alusão à filha de Édipo, Antígona, o símbolo da firmeza ética, para todas as éticas possíveis, inclusive a ética da psicanálise, cujo imperativo categórico é: "não ceda de seu desejo".[32]  Disso resulta a negação de toda ética universalista, tal como aquelas propugnadas na modernidade, em prol da ética de cada um, a ética individual e situacional, a ética da amizade e do cuidado de si, sobre a qual falou e escreveu o último Foucault.[33]
        Dependendo do ponto de vista, Antígona pode aparecer como santa ou criminosa. Criminosa, na perspectiva do direito positivo; santa, para o direito natural, tradicional, meta-positivo, de origem religiosa. Para a psicanálise, porém, ela não seria nem santa, nem criminosa, duas ilusões provocadas por duas ficções diferentes: a religião e o direito.
        Para a psicanálise, Antígona apenas agiu conforme o seu desejo, inconsciente. Desse ponto de vista, só lhe era permitido escolher a morte que teve, como condição de seu gozo.[34] Sua liberdade é a necessidade de sua morte, dando seu corpo para ser o túmulo de seu irmão, que assim descansaria em paz, na paz que não teve um outro seu irmão, seu pai, Édipo – reza a lenda que ele teria sido muito mal-tratado por seus filhos-irmãos, após a revelação que o desmoralizou, tendo lançado sobre eles a maldição de que jamais se entenderiam, como de fato ocorreu, pois se enfrentaram na disputa do trono de Tebas, donde adveio o falecimento daquele a quem Antígona insistiu até a morte para enterrar condignamente, perante seu tio e (ex-)futuro sogro, Creonte.[35]
Na "metáfora paterna" psicanalítica, o pai aparece como "outro", uma figura estranha ao Um que são mãe e filho, um estrangeiro, "étranger", "étre-anje" - "ser-anjo", sempre por perto, que de tanto aparecer e reaparecer se torna familiar, mas que em dado momento, de anjo da guarda torna-se anjo-exterminador, e corta a relação “umbilical” entre mãe e filho, fazendo a castração simbólica do Falo que um representa para o outro. Com isso, instaura-se a falta, a falha, que possibilita a fala do filho, para preenchê-la -  a fala e tudo o mais que é da ordem do simbólico, do humano e do sublime, como as leis. A castração simbólica, portanto, repristina aquela Lei primordial, proibindo o excesso, o incesto. Mas nem todos a aceitam, donde além dos neuróticos haverem os que se põem acima dessa Lei ou fora dela: os psicóticos e os perversos.
        Daí ter Freud falado na necessidade de sublimar nossas pulsões no processo civilizatório, e Lacan, por seu turno, tenha enfatizado a importância da simbolização dos desejos produzidos em nosso imaginário, que são espectros, fantasmas, a atormentarem o sujeito, sempre em busca do objeto causa de seus desejos, apesar de ser barrado no seu acesso a ele. Por isso Lacan representa esse sujeito por um "S" cortado, S', para representá-lo como barrado, castrado simbolicamente, enquanto aquele objeto, causa de seu desejo, ele o chama "objeto a minúsculo", reivindicando-o como sua única descoberta em psicanálise. Esse (a) remete ao conjunto vazio (ø), pois inexiste onde o sujeito pretende encontrá-lo, o que se explica naquilo que Lacan propôs como a "fórmula do fantasma": S' ◊ a.[36] Decompondo-a, tem-se que, ao mesmo tempo, S' ‹ a (S' menos que a), S' › a (S' mais que a), S' ^ a (S' inclui a) e S' v a (S' exclui a).
        Na base de toda a ilusão coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões, portanto, está a ilusão individual de que somos, o vazio que somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta “aquilo” que julgávamos ser – nossa mãe, onde “éramos” antes de nascer -, nos leva a falar. Adquirindo a linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu.[37] Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir “algo” que preencha-nos o vazio de ser – o “objeto a” de que nos falou Lacan, objeto perdido do desejo, inexistente, no sentido em que Heidegger se refere a “das Ding[38] - terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.
Como o tipo de discurso que aqui desenvolvemos é de se considerar, em um sentido amplo, um discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético”, podemos imaginar várias versões para a história da origem do humano, permanecendo sempre o mesmo desfecho.
        É assim que podemos partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi recolher em Rousseau, no “Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a qual iremos em seguida desenvolver, para verificar uma outra forma de situar a origem do que é mais propriamente humano, isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. – em uma palavra o cultural ou simbólico – nas paixões, nos afetos, no corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo (humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela Lei, pela Letra.
O que se está propondo agora é iniciarmos com uma releitura de um texto clássico a partir da “desleitura” - ou “desconstrução” - que dele fez Derrida em sua obra “Da Gramatologia”. Não pretendemos aqui, propriamente, contribuir para uma melhor compreensão daqueles textos de outros autores, ou desses autores, mas sim que eles contribuam para o desenvolvimento do que iremos pensar, ao pensar no sentido em que estavam pensando os que antes escreveram – o que importa é a ajuda que poderemos receber de outros que, anteriormente, se aventuraram em busca do que nós também estamos buscando: compreender melhor este mundo onde nos encontramos jogados, pro-jetados, pro-jetando-o.
        A origem mais remota da sociedade, segundo Rousseau, não é o contrato social, tal como ele expõe em sua mais célebre obra – ou nos fez supor, com sua leitura. No “Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação musical”, publicado postumamente, em 1781, e escrito após o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1754) – cuja leitura pode desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias de Rousseau, a saber, que o homem no estado de natureza seria bom, quando na verdade dele não se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não possuía, a rigor, uma consciência moral, tal como os animais -[39], antecipa-se, corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da espécie humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
        E Rousseau chega a essa conclusão por considerar que a humanidade surgiu em razão de contatos entre hominídeos onde mais escassa e necessária se tornou a água. Não foi, portanto, o fogo que fez surgir os homens, quando o domesticaram, nem o calor das fogueiras que nos forjou a consciência, mas sim o frescor das águas de rios e lagoas, com as quais se saciava o corpo por dentro e o acariciava por fora, fazendo acender um outro fogo, “um fogo sagrado que conduz ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade”, e que depois nos atrairá para o fogo que aos outros animais assusta. E também em torno do fogo serão galvanizados os laços sociais que primeiro serão gerados na água, como a própria vida o foi. Mas agora deixemos com o próprio Rousseau a palavra:
                “...nos lugares áridos, onde só os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para cavá-los, ou pelo menos entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a origem das sociedades e das línguas, nas regiões quentes.
        Aí se formaram os primeiros laços entre as famílias, aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. (...) Olhos acostumados aos mesmos objetos desde a infância aí começaram a ver outros, mais doces. (...) Atraíam-se gradativamente uns e outros; esforçando-se por se fazerem entender, aprenderam a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras festas: (...) o prazer e o desejo, confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes brotaram os primeiros fogos do amor” (cap. IX).
        Eis que a origem de tudo o que nos diz respeito mais de perto, enquanto humanos, é a festa. Note-se como foi no encontro com desconhecidos e desconhecidas que a necessidade carnal se tornou paixão, a vontade se tornou desejo, e nosso corpo adquiriu consciência, consciência de que não é apenas um corpo, carne, mas um local de prazer, de onde se fala para obtê-lo. Seria a partir desse encontro, então, que assim como a carne crua passou a ser desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o sexo com os iguais e conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um primeiro momento, desinteressante, e, em seguida, proibido. Eis-nos novamente diante de uma possibilidade de surgimento da “primeira Lei”, aquela que Lévi-Strauss considera, a um só tempo, natural e social, e que para Freud nos constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto – especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido por este último, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico, antes referido.

Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar nisso, não nos conscientizamos, propriamente, de nossa situação existencial em toda a sua precariedade – e beleza. É preciso, portanto, espaços privados para se falar disso, que é mais do que falar de si – como na clínica psicanalítica e psicológica em geral -, pois é falar do que somos todos nós, e nesse discurso moldarmo-nos, eticamente. A ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que confrontamos com a verdade fundamental de que toda moral é invenção coletiva, geral, e também, em certa medida, particular, individual, singular, feita para justificar nosso desejo de preservar-nos a vida, sem que saibamos porque.
        Cabe ao direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana. Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano – artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias – e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito.
        A positividade do direito é sua existência afirmada como independente de qualquer transcendência, ou seja, como resultado da deliberação humana, garantindo a submissão a esta deliberação sem apelar a nada diverso da própria vontade que o põe, sobre ele dispõe, e o impõe. Dessa forma, o direito não é uma entidade, não existe, como existimos os seres humanos e demais seres – que, a rigor, não são “seres”, mas “sendos”, entes -, nem tampouco “eksiste”, “existe fora”, como Deus ou o transcendente. Trata-se de uma ficção necessariamente coletiva, que se nos impõe e mesmo, nos constitui, como seres sociais que somos, mas que, ao mesmo tempo, depende de nós para existir, ou de nossa crença nele. O objetivo da presente investigação é examinar como se constroem ficções, na vivência pessoal e convivência social, dentre as quais se inclui, com destaque, o Direito, que desde há muito vem operando cognitivamente com esse registro ficcional.[40]
        O ordenamento jurídico é formado por normas e condutas humanas; atos de vontade que estabelecem normas, de acordo com outras, preexistentes, e normas que conferem um sentido jurídico àqueles atos. Esta é a concepção clássica do positivismo jurídico, aquela kelseneana.[41] Para Kelsen, em sua “Teoria Pura do Direito”, haveria uma “norma (hipotética) fundamental” (Grundnorm), que em sua teoria fornece a consistência lógica do sistema jurídico, bem como a base última em que se assenta a estrutura hierárquica (Stufenbau) do ordenamento jurídico, não sendo ela própria – ao contrário das demais - o resultado de um ato impositivo de vontade, mas sim uma condição a priori do conhecimento jurídico, no sentido transcendental kantiano. Fica-se, então, sem saber como um ato “meramente pensado”, uma hipótese com função heurística, pode se constituir no fundamento de validade de uma ordem coativa (Zwangsordnung), como seria para Kelsen a ordem jurídica, formada por normas imperativas, que fornecem o “sentido objetivo de atos de vontade para o Direito”.[42] Já no final de sua longa carreira, porém, abdica do próprio fundamento de sua monumental construção teórica. "Em obras anteriores", escreveu ele, "falei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato de vontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempre concebida como uma norma que não era entendida como o conteúdo significativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta por nosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuar mantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me, não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durante décadas: a abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser o correlato de uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é uma norma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na norma fundamental se concebe um ato de vontade fictício, que realmente não existe".[43] Eis como até de uma perspectiva positivista, a mais clássica, pode se chegar à conclusão de que o direito é, essencialmente, fictício – ou seja, não “é”.



II
FILOSOFIA E PSICANÁLISE
ou Avesso da Introdução a J. Lacan, O Seminário, livro 17, "O avesso da psicanálise".

        Introdução é a iniciação com seu ritual preparatório de uma revelação que assim se (re)produz. O avesso da iniciação: uma vez conhecidos os mistérios, querer mais é propagá-los aos quatro cantos, acabando com eles.
        Introduzir, levar alguém para dentro do círculo de iniciados, mas não diretamente para o meio do círculo - antes, fazer um circunlóquio, dar voltas com o neófito em torno da matéria para que ele possa compreendê-la, envolver-se abrangê-la, e depois assenhorar-se dela, "dominar a matéria".
         O avesso da introdução vai para fora do círculo e direto ao seu ponto central, nada de metalinguagem, coincidência entre enunciado e enunciação, a pergunta é a resposta. Ir lá p'rá fora, hinausgehen, dizia Hegel, para falar da saída do diabólico círculo vicioso (Teufelskreis) dialético, para o Além (Jenseits), o outrem da contradição - Jenseits do bem e do mal, em Nietzsche, dos princípios do prazer e da realidade, em Freud, percebido na brincadeira de seu neto para suturar a falta da mãe: o-o-o-o-For(a)t-Da.[44]
        Então, assim como as palavras primitivamente têm sentido antitético, intoduzir é entrar e também sair, entrar para sair, com-e-fora, (without); é como percorrer a faixa de Moebius, sem avesso nem começo, onde o que está no centro está dentro e fora; o nó borromeano, "a coisa" lacaniana, em cujo campo "se projeta algo para além, na origem da cadeia significante"[45]: "S1", significante sem significado, auto-fundamentado, vazio.
        Direto ao assunto, sem introdução, introduzindo-o: o avesso da psicanálise é a filosofia, enquanto essa última for discurso de domínio da verdade toda, no qual somos, pedagogicamente, conduzidos, introduzidos - ainda que pelo avesso.
        A filosofia é episteme, o avesso do saber comum, da doxa, donde dokein, que deu docere, doutrinar, ensinar, e dogma. Mas o saber comum é o avesso do saber-que-se-ensina, por ser saber-já-desde-sempre-e-por-todos-sabido.[46] A psicanálise é o avesso-do-avesso-do-avesso, e o seu avesso é a filosofia. A cadeia se fecha com um nó borromeano.[47]
        Psicanálise e filosofia estão, portanto, amarradas uma à outra. Pode-se dizer que são as duas faces de uma mesma moeda. Melhor, porém, dizer que são como verso e anverso ("envers") da mesma página. Essa é a imagem proposta por Ferdinand de Saussure para que se figure as duas vertentes do signo, a de uma folha de papel com duas faces mas que é um todo, estando ambas no mesmo plano: S(ignificante)/s(ignificado). Isso se lê: "significante sobre significado, o sobre correspondendo à barra que separa as duas etapas".[48]
        Ora, se para F. de Saussure significante e significado estão no mesmo plano e se encadeiam linear e horizontalmente para formar o discurso, isso parece ser válido sobretudo se o considerarmos enquanto "escritível", escritura, texto - e do qual se quer saber apenas o enunciado, mas  não a enunciação: se quisermos mais ainda, se quisermos interpretar o discurso, então não basta considerá-lo em seu desenvolvimento no eixo sintagmático, em sua superficialidade, onde os signos se relacionam "in presentia", mas sim, também naquele paradigmático, onde se verificam relações "in absentia", na profundidade, em que os signos se articulam,[49] e da frase, a partir de suas raízes, seus radicais, se forma a "árvore" dos sintagmas, o indicador sintagmático de Noam Chomsky[50] - há que se levar em conta essa árvore, essa "arbre", e, por metonímia, seu anagrama, a "barre", a barra, o Real, que é responsável pelo desnivelamento, pelo deslizamento incessante do significado, que está sob o significante, o qual “pesa na barra”, e se impõe portanto.[51]
        Então, S/s vira f(S)1/s,[52] para simbolizar a incidência do significante sobre o significado, verticalizando o seu encadeamento, que se ramifica, na profundidade, em duas estruturas básicas, a metonímica e a metafórica. A primeira é simbolizada por f(S1...S2)S =~= S(-)s, onde o lado esquerdo indica a conexão de um significante com outro significante, que produz o efeito de metonímia, o qual é equivalente (=~=) a uma determinação do significado, do efeito significante, por uma falta (-) de ser, de realidade, de "adequatio rei", de relação (semântica) entre  signo e objeto da denotação, o que é suprido pelo desejo (de que assim seja).
        Já a estrutura metafórica é simbolizada pela fórmula f(S2/S1)S =~= S(+)s, indicando a possibilidade de substituição do significante que determina o significado para produzir um efeito criativo, conotativo, como aquele obtido na poesia - ou na análise: é essa a função do sujeito, que é sujeito de significante ("assujeitado"), ocupando o lugar de sujeito do significado, deixando assim, esse sujeito, de (apenas) ec-sistir, "ficar de fora", para (também) ex-sistir, entrar no processo de produção de significado, ser o que um significante (S2) representa para o Outro (S1).[53]
        Agora, chega-se ao ponto em que se tem de examinar a "subversão (da filosofia) do sujeito e dialética do desejo (nas relações discípulo/mestre/subordinado,  analisando/analista/ histérica) no inconsciente freud(o-lacan)iano".[54]
        Ali, há  o Grande Outro, "O", o outro do sujeito do conhecimento, do consciente, que é o sujeito do significante, o inconsciente. "O" simboliza o lugar onde se rompe a correspondência unívoca de um signo a uma coisa, possibilitando o encadeamento vertical, em profundidade, dos significantes, numa "reunião sincrônica e enumerável em que cada um se sustenta apenas pelo princípio de sua oposição a cada um dos outros".[55] O resultado, a significação - simbolizada s(O) -, reafirma a submissão do sujeito ao significante, havida desde que um significante primeiro, S1, deixou nele a marca de um traço unário ("einziger Zug"), cindindo-o, alienando-o da realidade na fala do ser desejante[56] pela "falta do Outro" - simbolizada S(Ø)[57] e, na identificação primeira, que forma o "Ichideal", I(Ø) -, (im)pondo-lhe a barra que o divide (S') e a ausência (a) de um objeto "a", causa de desejo, no lugar privilegiado do gozo: (Ø).[58]
        Assim, tem-se que "o desejo do homem é o desejo do Outro", i.e., "é como Outro que ele deseja",[59] querendo ser o Outro de alguém: desejo --- Outro. Sob o domínio do Outro dá-se a perda (do gozo) e a possibilidade do mais-de-gozar ("Mehrlust", como em "Mehrwert", "mais-valia) do saber, gozo do Outro: Outro/perda. Daí que o desejo se impõe à verdade: desejo/verdade. Por outro lado, a perda (no plano real, a privação) leva a que se procure supri-la (no plano imaginário, a frustração) por o que se acha, se descobre (no plano simbólico, a castração): a verdade.[60]
desejo_ ------ Outro                                                                         
verdade        perda
        Chegamos, então, ao ponto central de nosso trabalho, no qual se apresentam os discursos do mestre (M), da universidade (U), da histérica (H) e do analista (A). Em M, S1 ocupa o primeiro posto, em cima a direita, o lugar do desejo, ficando abaixo dele o sujeito barrado (S’), no lugar da verdade, enquanto o lugar do Outro é ocupado pela cadeia discursiva, S2, e abixo dela, no lugar da perda, como excedente de produção (mais-valia, ou mais-de-gozo), está o objeto pequeno “a”. Com um quarto de giro, mudando as posições, obtém-se o discurso da histéria (S’/a --- S1/S2), mais um quarto de giro, e aprece o discurso do analista (a/S2 --- S’/S1) e, por fim, com mais um quarto de giro, tem-se o discurso universitário (S2/S1 --- a/S’). Se pusermos esses discursos no “quadrado lógico”, em-se que M e U são contraditórios, assim como H e A, isto é, excluem-se mutuamente, enquanto U e H, da mesma forma que M e A são contrários, mas não se excluem, podendo ser ambos, simultaneamente, “verdadeiros”, isto é, complementam-se.
        O discurso do mestre, do senhor, se transmite, repercute por repetição, no discurso universitário, burocrático, com o(s) significante(s)-[do(s)-]mestre(s) "S1" no lugar da verdade, dando suporte ao encadeamento de significantes "S2". Passar do discurso universitário para o discurso da histérica, passá-lo por uma "histericização", é evitar a sua esterilização, reativando-o pelo outro-gozo do desejo de saber: "a" no lugar da verdade. Do discurso da histérica há que ser dado o "passe" para o discurso do analista, com o "a" assumindo o lugar dominante para, assim, mostrar sua inacessibilidade, sua "inapossessibilidade". Daí, completa-se o giro, a revolução - no sentido  original,  celeste, do termo, que é o preferido por Lacan -, retornando-se ao discurso do mestre, depois dele passar por seu inverso, o discurso analítico, de modo que ele agora assume uma nova forma, superior, a qual pode bem se chamar de "maestria", enquanto discurso praticado pelos "mestres dos mestres", os "grandes mestres",[61] categoria em que se pode situar um Sócrates, Lacan e, segundo esse último, Salomão; os que "não cessam de repetir o fracasso (...), o fracasso das tentativas de uma sabedoria de que o ser seria o testemunho".[62]
        Nos quatro discursos, então, se identifica as famosas "impossibilidades": governar, ensinar, analisar e saber o que quer uma mulher, o que faz a histérica desejar (saber).[63] Ali também se pode identificar quatro práticas, associando-as aos quatro discursos: análise pessoal/discurso da histeria (ou da histérica), teoria/discurso universitário, supervisão/discurso do mestre, formação/discurso do analista. Percorrendo cada um desses discurso, fazendo-os circular, em uma banda de Möebius, pode-se propor a seguinte seqüência: U---H---A---M---U’---...GRANDE MESTRE.
        A idéia central de "O avesso da psicanálise" me parece ser a de captar o significado desses discursos a partir do seu encadeamento, relacionando-os uns com os outros, naquilo que os liga e distingue. Daí a intenção declarada de "pegar a psicanálise pelo avesso e, talvez, justamente, dar-lhe seu estatuto no sentido jurídico do termo".[64] Ora, o estatuto jurídico das pessoas, seu status, se define, precisamente, a partir das relações básicas que elas estabelecem entre si, por contraste e oposição. Assim, o status de marido co-implica o de esposa, do mesmo modo como o de solteiro e solteira se opõe ao de marido e esposa; o de pais (legítimos ou não) co-implicam o de filhos (legítimos ou não) etc. Dessa forma, o discurso, com seu encadeamento de significantes que se definem mutuamente por oposição, pelo direito (e pelo avesso), estrutura o mundo real.[65]
Por fim, examinemos mais de perto o discurso com a estrutura básica, que representa o avesso da psicanálise, como ele se constitui "miticamente" a partir  da dialética senhor/escravo.[66]
Para designar os quatro lugares que as letrinhas podem ocupar em nosso algoritmo estamos autorizados a empregar os seguintes termos, além daqueles acima referidos:[67] agente/ verdade ----- trabalho/produção      
        Agente não é apenas quem faz, mas também a quem se faz agir, e é nessa posição que aparece o significante primeiro, S1, o significante-mestre, na fórmula que é o ponto de partida de nossa cadeia algébrica, e que representa o discurso do mestre. O que o faz agir é a verdade que lhe sustenta. Sua ação é o trabalho, que resulta na produção.
        No discurso M, então, a verdade do mestre é S', indicando que ele é barrado, marcado para morrer, por ser sexuado, gozar, e saber disso. "S1" é o significante que representa esse sujeito para "S2", é o significante da marca, do traço unário, que está no lugar do desejo. "S2", o outro significante, o que está no lugar do Outro, é na verdade toda uma bateria de significantes, na qual "S1" intervém, sobre a qual atua, trabalha, deixando como produção - ou melhor, como "excedente de produção", para levar adiante o paralelo com a "mais-valia" - o "a", o "mais-de-gozar", que para o sujeito barrado "S'" representa a perda do "gozo absoluto", restando-lhe o "outro-gozo", separado por sublimação do gozo sexual.[68]
        O escravo, literalmente, sustenta o mestre com seu saber(-fazer), o qual se apropria de seu mais-de-gozar (Mehrlust), do "mais-de-saber" (Mehrwissen) e do "mais-de-valor" (Mehrwert) ou mais-valia, deixando para o primeiro o trabalho, o saber e o gozo. Ao escravo é ordenado (- S1) que ele saiba (- S2) o que fazer para satisfazer o desejo (- a) do senhor (- S').[69] 
        O status libertatis do senhor, portanto, depende daqueles que se encontram em status subjectionis, que nada possuem - sendo, eles próprios, posse -, situação que favorece o aparecimento nele de uma consciência independente das coisas - enquanto "coisa" entre as coisas, e também "não-coisa", ser vivo, literalmente, sujeito. Canetti, por exemplo, recusa a validade heurística da definição jurídica do escravo como "coisa", achando mais adequado compará-lo ao animal doméstico, com o qual teria em comum o traço fundamental da "singularização", por serem isolados do convívio dos seus.[70] Em Aristóteles já se tem, contudo, a consciência clara de que a percepção do escravo como coisa tem caráter fictício - no sentido que Bentham atribui à ficção, que, como mais de uma vez refere Lacan, não é algo ilusório, enganador, mais sim um elemento estruturador do real, donde sua importância para o direito, que pode ser concebido, na esteira daquele que representa para a filsofia do direito continental européia contemporânea o mesmo que Bentham para a tradição anglo-saxônica, H. Kelsen,  como fundamentado, em última instância, numa "norma fictícia", em sua obra póstuma "Teoria Geral das Normas".[71] 
        O conceito econômico de "escravo" que Aristóteles apresenta na "Política", Liv. I, nos caps. 2 e segs, esp. no cap. 5, como um "instrumento vivo", ministro da ação de atendimento às necessidades vitais da família da qual integra o patrimônio, não o impede de, do ponto de vista ontológico que é o seu, afirmar que a relação natural entre senhor e escravo seja a de amizade, já que há uma convergência entre seus interesses. Já na "Ética a Nicômaco", Liv. VIII, cap. II, in fine, o estagirita esclarece que não pensa ser possível a amizade para com um escravo qua escravo, que é como se fora um objeto ou animal, desempenhando sua função econômica, mas que, na realidade, é um outro sujeito, um ser humano, a quem são inerentes os princípios de justiça, pelos quais se pautam relações de amizade. Já Platão, em sua última obra, "Leis", Liv. VI, in fine, referira que aos escravos, por serem inferiores, se deve tratar com mais justiça ainda que aos iguais, "pois quem natural e genuinamente reverencia a justiça, e odeia a injustiça, se revela ao lidar com quem possa facilmente praticar a injustiça".[72] O requisito necessário para que se dê a diferenciação entre sujeito e objeto, pela qual se estabelece o saber como domínio da verdade.[73]
        O senhor, então, "num-quer-nem-saber", quer e pronto.[74] Ao escravo cabe atender esse desejo, saber desse desejo, saber não só como atendê-lo, mas até saber qual ele é. O senhor não quer saber de nada, apenas quer. O escravo não quer nada e tem que saber de tudo. Eis como o escravo é obrigado a se tornar um ser pensante e um ser moral, um filósofo, a serviço do senhor,[75] sob o domínio de significantes-primeiros (S1), absolutamente vazios de significado, que dizem, interrompendo antes do termo significativo: "Eu quero...", "Tu deves...".[76] Cria-se, assim, o espaço a se tentar continuamente preencher pelo deslizante encademento metonímico (S2), o vazio que é do próprio sujeito (S'), o qual por isso impulsiona sempre a cadeia de significantes para ver se atinge o que lhe preencheria, esse objeto impossível, inacessível, simbolizado por "a", a res, a "coisa", o Real.


III
S(Ø)riso: o Riso e o Gozo
ou
De que(m) s'(i) goza quando se(i) ri(r)?


                A questão que deu motivo a esse trabalho é o avesso daquela colocada por FREUD no Cap. IV de sua obra sobre a relação do inconsciente com o chiste (Witz),[77] retomada por LACAN na 5a. sessão do Seminário sobre formações do inconsciente, do dia 04.12.1957. Aqui importa, portanto, considerar a piada como fonte de desprazer, perguntando que(m) (se) incomoda naquelas que se diz serem "de mau gosto", "besta" ou "sem graça", e que levam a reações que vão desde o enrubescimento, passando pela "cara feia", até chegar ao paroxismo da agressão física.
                Nessas situações, se diz algo sem ser na hora e/ou lugar apropriado, quando e onde até se poderia contar uma piada ou fazer um trocadilho, mas não a que foi contada ou o que foi feito. A que se poderia contar ou o que se poderia dizer, para fazer graça ou ridicularizar, provocaria riso ou, no mínimo, um sorriso condescendente, revelando uma formação do inconsciente de quem a contou. Já a piada ou trocadilho que provoca o "mal-estar" nos ouvintes, de acordo com a hipótese que se quer aventar, revelaria uma formação do inconsciente deles. Nesse caso, não são mais eles que gozam com ou do que conta a piada ou faz o trocadilho, mas sim, ao contrário, eles se sentem gozados por ele, pois descobririam que "ele sabe que (eu sei que (ele sabe que (eu sei)))" (A. DIDIER-WEIL, “Inconsciente Freudiano e Transmissão da Psicanálise, Rio: Zahar, 1988, cap. XII).
                Esse tipo de Witz, que ofende ou insulta, se inclui normalmente na categoria daqueles que FREUD, no Cap. III da obra referida, chama de "tendencioso", como são as piadas picantes, por oposição àquelas "inofensivas", "inocentes" ou "abstratas". Para ele, a "essência do chiste", que lhe interessa determinar, com sua investigação, seria mais fácil de se captar através dessas piadas inocentes, do que por intermédio daquelas outras, em geral "maldosas" ou "cerebrinas". Isso porque a piada inocente teria como que um fim em si mesma, não se pondo a serviço da manifestação de algum pensamento, donde ser uma expressão mais fiel do que se passa no inconsciente de quem a faz. Assim é que, no capítulo seguinte, após reconhecer que em toda anedota se pode perceber um certo grau de "tendenciosidade", isto é, uma "segunda intenção" -, pois assim é que ela cumpre a sua função de reforçar um pensamento contra o "poder limitador e coercitivo" do juízo crítico - FREUD destaca que mais importante de se observar não é o efeito, mais evidente, da piada em quem a ouve, mas sim, naquele que a conta - ou a quem ela ocorre. Isto porque o efeito em quem  ouve seria um mero reflexo de processos que ocorreram em quem fez o trocadilho ou a piada.
                No capítulo dedicado especificamente às "tendências do chiste", o terceiro dessa sua obra, FREUD observa que essas anedotas "tendenciosas" ou "maldosas" são fáceis de se identificar e diferenciar daquelas "abstratas" ou "inocentes", a a partir da reação que provocam em quem as escuta, na medida em que aquelas do primeiro tipo sujeitam quem as faz a esbarrar com pessoas que se mostrem incomodadas ao escutá-las, ao mesmo tempo em que são aquelas capazes de provocar uma irresistível explosão de riso, enquanto as anedotas do segundo tipo, as "inocentes", têm um efeito nos ouvintes que não costuma passar de um ligeiro sorriso ou uma outra forma qualquer de assentimento.
                 O móvel típico da anedota tendenciosa ou "maldosa", como se sabe, é praticar uma velada agressão sexual, realizando como que um desnudamento da pessoa do outro sexo, a quem se dirige. Trata-se, portanto, de uma operação de desvelamento e re-velação do sexo, que vem acompanhada da sensação de prazer experimentada naquela "cena original", em que o desmascaramos pela primeira vez, descobrindo que a mãe não o tem - e o faz. Daí o riso, essa forma originária de comunicação,  com a qual manifestamos aos presentes nossa satisfação. Não se ri, porém, quando "portas são batidas em nossa cara" e "sob a máscara, uma outra máscara aparece(...)", como diz LACAN, no Seminário de 16 de abril de 1958.
                Retomando o texto de FREUD de onde o tínhamos deixado, é importante destacar sua observação de que a anedota tendenciosa, em geral, necessita de três pessoas para surtir efeito, ou seja, além da pessoa que a faz, e que não ri, há aquela outra, de quem se goza, objeto do desnudamento e do ataque sexual, perpetrado pela primeira, e há uma  terceira pessoa, que vai realmente rir e gozar do efeito prazeiroso da anedota, sendo, com isso, "subornada", para que represente esse papel, que permite a quem faz a piada romper seus constrangimentos sem causar constrangimento.
                A partir do que  ALAIN DIDIER-WEIL elaborou, a pedido de LACAN, no seminário "L'insu que sait de l'une bévue s'aile a mourre", pode-se considerar essas três pessoas, esse trium actum personarum,[78] enquanto internalizadas no sujeito, isto é, como estruturantes de seu inconsciente. Isso se revela, por exemplo, quando o sujeito enrubesce ao dizer ou ouvir algo, ao cometer um lapso ou fazer uma piada "infeliz". É que aí ele (1) lembra que ele (2) esqueceu de que a ele (3) foi escondida alguma coisa, o seu não-saber do sexo, do desejo. Daí a surpresa, o enrubescimento e, também, o mal-estar daquele que pela piada ou trocadilho "é despertado da apatia em que se encontrava, na sonolência da mesmice, por algo que se passa numa fração infinitesimal de decurso de tempo" (FRANCISCO PACHECO), e do que não é mais possível retroagir, negar, re-negar ou de-negar, pois mostra que "eu (1) não sabia que eu (2) escondia que alguma coisa em mim (3) estava escondida". E o pior é que isso é revelado publicamente, exposto ao olhar observador, que expressa um saber absoluto, quando então nos vemos na situação de poder dizer "eu sei (que eles sabem (que eu sei (que eles sabem)))".
                É assim que, de repente, somos levados a vivenciar o grande Outro como esse saber de que não se sabe nem falar, apesar d'Ele se mostrar.
                Como bem explicita LACAN, no seminário sobre formações do inconsciente, o prazer que sentimos com a piada - ou, como ele prefere dizer, o "traço de espírito" -, esse prazer passa necessariamente por esse Outro, o terceiro além do primeiro, o que diz a piada, e do segundo, que a ouve ou é vítima dela, que é gozado por ela - e por quem a fez. Esse terceiro é quem dará a garantia de que esse gozo não será sancionado, apesar da transgressão que implica. Quando essa garantia falta, o chiste fracassa, na realização de seu objetivo de dar prazer. É quando ele causa desprazer, o mal-estar típico da piada de mau-gosto, que apesar de ser dita com a intenção de fazer graça, móvel de toda piada, resulta sem graça. O sujeito, agente da piada, torna-se então seu paciente, vítima de si mesmo, e tenta escapar para a posição do terceiro, rindo, sozinho, de sua própria piada - o que, normalmente, como observou FREUD, ele não faz, na posição de primeiro.
                O sujeito, nessa situação, barrado pelos outros em seu desejo de fazer graça com eles e para eles, gozar deles, apresenta-se como um "impertinente", como alguém que não conhece o seu lugar, o lugar ao qual ele pertence, indo ocupar outro lugar, no qual os outros não se reconhecem como iguais, "egoais", pertencentes à mesma ordem de um mesmo pai fundador, pertença essa que é  re-afirmada,  re-conhecida  pela  exclusão  do  que des-conhece esse re-conhecimento. É isso o que RICARDO GOLDENBERG, no artigo "Assim é se lhe parece", publicado no ante-penúltimo número de 1994 do Boletim da Pulsional, identifica, quando se lhe recriminam que ele, judeu, ache engraçadas piadas racistas  sobre judeus, no que, segundo ele, o mais divertido - e paradoxal -  é que, em nome do combate ao racismo, é por ser judeu que o mandam calar a boca. É interessante lembrar aqui como no livro sobre o chiste e sua relação com o inconsciente, FREUD constantemente recorre a piadas de judeus, sintoma de seu mal-estar como membro dessa comunidade, da qual, com isso, se excluiria. Algumas dessas piadas, que segundo ele, em carta a FLIEß, de 12 de junho de 1897, teriam um "sentido profundo", aparecem já em sua primeira obra psicanalítica, sobre interpretação dos sonhos. Afinal de contas, o Witz remete ao wissen, ou seja, ao saber, e a um saber da constituição, de "como é", wie ist, que é concreto e particular, como o momento presente, wie jetzt, "como agora". É daí que, como destaca MAX KOHN, já na primeira página de sua obra "Freud e o Iídiche: o Pré-analítico" (Rio: Imago, 1994), em seu livro, FREUD não vai empreender uma análise propriamente da comicidade no Witz, mas sim, sua relação com a linguagem, como no exemplo do "familionário", destacado por LACAN.
                Passando agora à segunda e última parte dessa exposição, quero indagar sobre o significado da interpretação em uma análise que tivesse o mesmo efeito da piada de mau-gosto. Note-se que aí estamos nos defrontando com uma situação, a analítica, que se revela também uma formação do inconsciente, mas que seria o oposto do chiste, se considerarmos esse, com FREUD, como "a mais social e menos privada" dessas formações.
                FREUD mesmo, no livro mencionado, no capítulo sexto, em que trata da relação do Witz com o sonho, refere a reação, bastante comum, de o analisante rir, quando por meio da interpretação, revela-se o incosnciente para ele. É que, como bem explica ROBERTO HARARI, em artigo sobre o chiste, de seu livro "Discorrer a Psicanálise", a interpretação bem sucedida teria as mesmas características de uma manifestação chistosa, tais como (1) a "ocorrência involuntária", resultado da atenção flutuante; (2) a "brevidade", para utilizar um dos recursos da própria formação do inconsciente, a "condensação", para assim "fazer eco" no sujeito; (3) o "caráter alusivo" de ambos, a boa interpretação e a boa piada, que, assim, dão margem a que o sujeito mesmo perceba o que se quer dizer, pois não é dito logo, diretamente; (4) a "surpresa", que não ocorre quando o sujeito reage à interpretação exclamando com satisfação: "É isso mesmo o que eu pensava", no que demonstra que ele apenas reforçou o lugar narcísico e a posição egóica por ele ocupado.
                Há, por outro lado, a situação referida por FREUD, no local por último citado, de que comumente, à interpretação psicanalítica de um sonho, alguém não familiarizado com essa técnica reage dizendo que só pode se tratar de uma piada - mas não demonstra nenhuma satisfação com ela, e sim, mal-estar. Essa, aliás, foi uma reação que FLIEß teve, quando leu o manuscrito de "A Interpretação dos Sonhos", tal como se acha registrado no próprio livro, no sexto capítulo, mais ou menos na metade da segunda parte do item "A".
                Para FREUD, essa conotação de "piada sem graça", suscitada pela interpretação psicanalítica dos sonhos, se explicaria pelo fato de que, apesar da semelhança entre os mecanismos de elaboração do sonho e do chiste -  o que, inclusive, constitui seu ponto de partida, na investigação da relação deste último com o inconsciente -, no sonho o emprego desses mecanismos ultrapassa os limites que na brincadeira chistosa são demarcados por aquele øutro, o terceiro, para quem se faz a piada ou trocadilho, a gozação, de modo transferencial.
                Então, ocorre que, sem transferência, ninguém gosta que brinquem com seu sintoma, mas o que se precisaria alcançar, com a análise, seria justamente a ridicularização e conseqüente rebaixamento do que atribuímos importância desmesurada, pondo "acima de tudo e de todos", como sendo o mais importante na vida, e que não alcançamos. Daí experimentar-se a sensação de viver uma tragédia, quando na verdade, como disse LACAN no seminário "Momento de Concluir", a vida não é trágica, ela é cômica, donde em "Televisão", no final do terceiro capítulo, falando do "saint-homme", o "santo-homem", o "homem-são", ele ter dito que quanto mais somos santo - isto é, sãos -, mais rimos, e quanto mais desses formos, maiores as chances de escaparmos dos tentáculos do discurso capitalista - de nos salvarmos, portanto.



IV
Processo e Inconsciente

                O desenvolvimento de uma escuta analítica representa um esforço de dar conta das necessidades de uma prática calcada na percepção diferenciada das manifestações de perplexidade de sujeitos, que despertam para uma consciência, permanecendo sob a influência decisiva de processos que nele se passam, sem que sobre ele tenham conhecimento pleno – ou mesmo, em certas circunstâncias, conhecimento algum. O sujeito, ao final da análise, se apropriaria de tal modo de seu próprio desejo, que aprende a lidar melhor com o desejo, e o “desejo do desejo do outro”, que o constitui(u), sem se assujeitar a ele(s). Não estranha, portanto, que uma das principais inovações lacanianas em psicanálise, a noção de “gozo”, tenha sido extraída do vocabulário jurídico, onde o termo se refere à disponibilidade do sujeito sobre certos bens, sendo estes entendidos, também em seu sentido jurídico, como dotados de um sentido também imaterial, enquanto objeto possível de um direito qualquer do sujeito, derivado do interesse (ou necessidade – em psicanálise se diria, melhor, “desejo”) na fruição desse objeto. É da forma como se busca a satisfação (“gozo”) dos “direitos” que nos damos aos próprios desejos que se organiza o psiquismo
                Os processos que (n)os constituem se desenvolvem a partir de uma estrutura formalmente similar em todos os sujeitos, uma estrutura que guarda semelhança com aquela dos processos judiciais, na esfera do direito. No processo judicial, inicialmente se tem um sujeito, que se apresenta como autor de uma demanda, dirigida a um outro, o juiz, queixando-se perante ele com relação a um terceiro sujeito, o réu. Esta estrutura triádica, como diziam os medievais, configura um trium actum personaram, um ato envolvendo três pessoas, tal como ocorre nos primórdios de todo sujeito humano, que se constitui como indivíduo a partir da relação que estabelece com as figuras parentais, onde a figura paterna representa aquela do juiz, e a materna é o réu, acusado de nos subtrair o bem, o objeto, capaz de nos satisfazer os desejos. Há, ainda, como pressupõe a psicanálise, uma estrutura triádica situada internamente em todo sujeito, na qual o juiz é representado por uma “super-consciência”, o “super-ego”, que reforça na consciência (“ego”) a oposição que faz às demandas oriundas do inconsciente.
        A “queixa” do paciente, em psicanálise, é o sintoma, que aparece em sua enunciação, mas sempre como que “entre aspas”, disfarçado, sem ser nomeado devidamente – de certa forma, o que se está buscando é uma nomeação para afetos incompreendidos, e isso desde há muito, desde quando nossa capacidade de expressão – e, logo, também de compreensão - era mínima. O sintoma é como um carvão, que pegou fogo, e por isso virou cinza, devendo, então, como a fênix mitológica, renascer dessa cinza, reacender.
                A análise, então, a diferença do processo judicial, triádico, vai se constituir como um ato a dois, presentes, mas que evoca muitos outros, ausentes, que se manifestam na fala do analisando e para a escuta do analista, sendo revelados seja pela simples enunciação do primeiro, seja pela intervenção do segundo. O que aí vai aparecer é transferencial, e na transferência o paciente faz como faz no “mundo lá fora”, sendo isso o que se vai interpretar, desentranhar.
        A encenação do enredo, do drama humano, por mais que em geral contenha os mesmo elementos, é sempre diversificada, singular. A análise vai tratar dessa singularidade, das singularidades, confrontadas com os padrões teóricos, sem pretender amoldá-las a eles, mas antes, pelo contrário, ressignificá-los a partir delas. Afinal de contas, o campo de trabalho da psicanálise é o inconsciente, o qual é construído singularmente em cada um de nós, com as marcas inscritas pelos pais, parentes e todos os portadores da cultura, a partir das quais se estrutura um discurso, o qual sempre se subjetiva diferentemente, assim como ocorre, diferentemente, recorrentemente, a cada sessão.
        Tanto no processo analítico como no processo judicial a encenação, a interpretação, se dá por oposições, por negação do dito, por contra-di(c)ções, buscando-se uma de-finição, uma de-cisão, que é uma “des-finição”, uma “des-cisão”, por restabelecer limites, vínculos partidos. Ambos os processos, é interessante notar, começam com uma demanda, uma queixa, formulada, no caso do processo judicial, ao juiz, e no caso do processo analítico, ao analista. Do juiz se espera que nos dê razão, em nossa demanda, nossa queixa, julgando-a em nosso favor. Do analista, ao contrário, não se espera julgamento, e é fundamental que isso fique bem claro, para que ocorra, na análise, um de seus requisitos, e que não está presente no processo judicial: a transferência. De uma transferência no processo judicial até se poderia falar, mas em um sentido oposto àquele da análise, pois a transferência no processo judicial se daria por ocasião da fase de execução, quando se transfere, manu militari, bens do patrimônio do devedor para o do credor, ou ainda, em se tratando de processo penal, se transfere o condenado para a prisão. Aliás, retomando a afirmação feita há pouco, de que na análise não há julgamento, talvez seja melhor reformulá-la, para dizer que na análise não há condenação,  sentença, mas julgamento, em se tratando de uma atividade humana e sobre o sujeito humano, certamente haverá na psicanálise, e pode mesmo ser considerado um de seus objetivos, pois aí julgamento e análise seriam quase como que sinônimos.
        Uma categoria tipicamente jurídico-processual, que foi apropriada pela psicanálise, por influência de sua vertente francesa, lacaniana, é aquela de “preclusão” (forclution), que no processo judicial significa a clausura da possibilidade da prática de um ato, por ter passado o momento adequado, ou porque ele já foi praticado, donde se considerar preclusa esta prática, levando a que o processo avance, sendo praticado um outro ato. Em psicanálise, ao contrário, a “preclusão” - ou “foraclusão”, como às vezes ela aparece grafada, utilizando-se um neologismo que é mais fiel ao sentido dado ao termo por Lacan – não impulsiona o sujeito a um desenvolvimento “normal”, mas antes o paralisaria, ou desviaria, na prática de ato cuja motivação lhe escapa, por ter ficado pedido um elo na cadeia de significantes por entre os quais se constitui o sujeito e seu(s) significado(s), seu desejo, o que nos cabe em análise investigar, fazer aflorar. E aqui, novamente, outro ponto de divergência com o direito, pois em face dele do sujeito não importará os desejos, mas apenas os “interesses juridicamente protegidos”, conforme uma definição clássica de seus direitos, os direitos subjetivos (isto é, dos sujeitos). Para ficar nos limites que se pensou para o presente texto, encerraremos com essa analogia entre processos jurídicos e de psicanálise, que para mim resultou em um exercício bastante frutífero e revelador, assim como vem sendo todo esse outro processo, em que estamos envolvidos, de formação em psicanálise, apesar de nos ressentirmos da ausência de uma prática, para podermos concretizar as impressões, sobretudo teóricas e, por isso, abstratas, aqui reportadas.


V
UMA CRIANÇA É BATIDA, OUTRA TORNA-SE MULHER.
(Ein Kind wird geschlagen, ein anderes wird zur Frau).

        “Ein Kind wird geschlagen”. “Uma criança é batida” ou “bate-se numa criança”. Essa é a fórmula de um fantasma (Phantasie) encontrado por FREUD nas “confissões” que lhe fizeram um sem-número de histéricas e obsessivos, identificando aí o seu “traço primário de perversão”. (FREUD, 1991: 26) A frase é tida, portanto, como característica da versão do (nome- do-)pai, da “pére-version”, perpassando os diversos tipos clínicos e passível de ser encontrada mesmo “noutras pessoas que não foram forçadas a tomar esta decisão (de dizê-lo em análise - WSGF) por motivo de doença manifesta” (: 23).
        A hipótese, levantada por FREUD, é a de que se trata de uma representação que aponta para uma experiência daquelas que nos constituem, enquanto seres sexuados e, logo, com sexualidades diversas, às vezes, perversas. No presente trabalho, então, parte-se da idéia  de que é possível estabelecer uma associação entre o bater na criança e o advento de sua feminilidade.
        A representação desse fantasma da criança batida, como se sabe, desenrola-se em três atos. Vejo aqui uma indicação de que estamos diante de uma versão daquele drama originário e constitutivo do sujeito que é o Édipo.
        No primeiro ato, quem é batida é uma outra criança, um irmão ou irmã do sujeito, e quem bate é um adulto, a quem FREUD dá o nome de Pai (:30). A criança batida, como pontua LACAN, na lição de 12/02/58, é reduzida a um nada de nada, é de-negada, e, nesta denegação, ao mesmo tempo em que há sua afirmação como sujeito, assujeitado à lei paterna, há a confirmação, para a criança que a assiste ser batida, de que ela é o objeto do amor incestuoso e exclusivo do pai e, também, do desejo da mãe: “a mensagem, que em um momento quis dizer: ‘o rival não existe, ele é nada de nada’, é o mesmo que dizer: tu existes e, inclusive, és amada”. (LACAN, ib. V. tb. FREUD: 32 ss.)
        Passando ao segundo ato, quando a própria criança, autora do fantasma,  é batida, temos que ele é, nas palavras de FREUD, o “mais importante e de mais graves conseqüências”. Interessante, ainda, de se observar, nessa mesma passagem, é que para ele, essa primeira surra não tem uma existência real, mas que é uma “construção da análise”, uma formação do inconsciente, algo que, no entanto, não deixa de ser “uma necessidade”. (:31) Na verdade, a “porrada” pode ser de uma outra ordem, que não a física, pois há diversos modos como a pessoa pode se esbarrar no Real, ser barrado, pelo corte que o faz um ser idêntico apenas a si mesmo, diverso da mãe e do pai. De dois ou três sujeitos é impossível fazer um. Daí haver esse corte ou traço unário, esse Ein einziger Zug, do que resulta a unificação ou “unicidade” (Einzigkeit), “unidade distintiva”, da qual nos fala LACAN em lições do Seminário IX, “A Identificação” (de 21 e 28/02/62), como o que nos torna uma exceção, únicos. Antes, o que havia era o Um enquanto “unidade unificante” (Einheit), o qual se mostra já naquele primeiro momento, em que o sujeito presencia a negação de um outro, o que o revela, porém, sua existência.
        O terceiro e último ato é aquele em que, tal como no primeiro, não é mais o sujeito que é batido, mas outro, ou melhor, outros, sempre rapazes, por pessoa que não é o pai, mas um substituto seu, como o professor. A posição masoquista e passiva assumida na situação anterior é substituida por uma outra, sádica e ativa, fonte de “inequívoca excitação sexual” (FREUD: 31).
        Ao que parece, quem é batido, nos três tempos, é sempre o sujeito do fantasma, que se apresentaria, primeiramente, com sua identidade sexual indiferenciada, passando depois para uma posição feminina e, finalmente, desempenha um papel masculino. Mesmo no primeiro tempo ele já se sente batido, pois sabemos como nesse momento a criança ainda não distingue-se das outras, chorando quando outra cai, por exemplo. Por isso que o segundo tempo não precisa ter existência real, uma vez que já é antecipado no primeiro. No terceiro, por fim, o próprio FREUD (: 37) destaca que mesmo para os sujeitos do sexo feminino quem é batido são rapazes,  e isso se explica pelo fato de, havendo elas rompido com o amor genital incestuoso pelo pai, “rompem facilmente com o seu papel feminino, dão vida ao seu ‘complexo de virilidade’ (Van Ophuijsen) e, a partir daí, só querem ser rapazes”.
        Esse “complexo de virilidade” (Männlichkeitskomplex), para o sujeito-mulher, precisa ser superado, para que advenha a feminilidade. A escolha do objeto amado precisa recair sob o pai, para que se consume o drama edípico. A hipótese que se quer levantar, então, é a de que esse fantasma da criança batida atua, nas mulheres, já naquela fase dita pré-edipiana, sua “protohistória”, estudada por FREUD no ensaio sobre a sexualidade feminina, de 1931. Daí a idéia de que se relaciona com isso de  uma criança ser batida o tornar-se mulher, quando não é mesmo o que marca o início desse processo, nunca completado: não existe A mulher, ela é não-toda (submetida à castração). Concluindo, haveria nessa “Phantasie” de ser batida um traço marcantemente feminino, constitutivo da feminilidade – e, logo, do humano.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FREUD, S. - Uma criança é batida. Contribuição para o conhecimento da génese das perversões. In: “Esquecimento e Fantasma”, J. MARTINHO (org.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1991.

A letra comemora um legado da lei?

Resumos:    
              A  letra não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim, filológico. Neste nível, ela é uma herança, na medida em que ela é o nome próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai e sua lei, o "nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à diferença da mãe, que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir com ele um vínculo filológico, ou melhor, "filialógico", sendo a letra que constitui primariamente a subjetividade do ser de linguagem que somos nós. E se biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão definitiva com o natural - e o real.

              La lettre n'a pas, au premier lieu, un sens phylogénétique, mais philologique. A cette niveau, la lettre est un héritage, dans la mesure où elle est le nom propre, transmit par nous parents et, principalement, le père et sa loi, le "nom-du-père", puisque c'est vis-à-vis de lui, le père, en contraste avec la mère, dont la filiation n'est pas évident, d'où le besoin de constituer avec lui une liaison philologique, ou mieux encore, "philialogique". Et si d'une point de vue biologique il y a ci longtemps que cela se reproduit, à chaque naissance d'un autre membre de l'espèce humaine, au point d'étre déjà pré-(in)scrit génétiquement l'ordre qui permet/oblige au nouveau né de devenir un être parlant, "parlêttre", est-que cette ordre a été produit d'abord par des traces qui firent les premièr êtres humaines sur eux-même, instituant une rupture définitive avec le naturel - et le réel.

            A palavra “letra” é utilizada aqui no sentido consagrado por Jacques Lacan em seus “Escritos”, enquanto "la lettre". Embora a palavra aponte para algo da ordem da escritura, filológico, o sentido que se lhe atribui aqui é melhor captado situando-a ao nível da inscrição ou “inscritura”, o qual se verifica mesmo em sociedades iletradas, pois, como se defende no presente trabalho, é a letra, "la lettre", que constitui primariamente a subjetividade do ser de linguagem que somos nós.
            O tema que aqui nos propomos a desenvolver, sobrescrito de forma interrogativa, há de ser, em primeiro lugar, interrogado ele próprio. Primeiramente, em que sentido poderia ser "la lettre" um legado, uma herança, que nos permite comemorar e “co-memoriar” os mortos que nos deram a vida? E, por outro lado, em que sentido ela pode não ser esta herança? Sim, porque se há dúvida é porque há um dubio, dupla possibilidade, de que "la lettre" seja tal herança e, também, que ela não seja - bem como que ela, ao mesmo tempo, seja e não seja motivo de comemoração... Tudo vai depender dos sentidos que atribuímos a "la lettre", a "herança" e “comemoração”.
            "Herança", por exemplo, pode ter um sentido biológico, genético, que aponta para algo da ordem do real. Herdaríamos, nesse sentido, "la lettre", quando nossos pais nos transmitem a bagagem genética que nos constituiria, enquanto membro de determinada espécie biológica. "La lettre" seria, então, uma das letras de nosso código genético? Há pesquisas que apontam nesse sentido, em que "la lettre" assume um caráter filogenético. A própria mídia já anunciou tais desenvolvimentos, do que se poderia chamar "psicobiolingüística". Esse seria um ramo da lingüística que teria por fundador Noam Chomsky, enquanto seu colega de departamento - e, portanto, seu êmulo - no M.I.T., Steven Pinker seria o principal representante na atualidade. Suas descobertas, anunciadas no livro de 1994, "O Instinto da Linguagem", de grande sucesso, conforme veiculado em princípio de 1997 no "Libération" e na "Folha de São Paulo" (caderno "Mais" de 5.1.97, p. 14), indicam ser inata ao ser humano a capacidade de falar, i.e., de "dominar" uma (ou mais) linguagem(ns), possuir o que Lacan chama, glamorosamente, "lalangue" - como quando referimos a uma grande diva do cinema, em italiano chamando-a “la Cardinale” -, ou, simplesmente, expressar-se. Isso porque nós disporíamos de uma aquisição evolutiva filogenética, uma estrutura mental que nos leva a procurar instintivamente as regras que dão sentido à massa sonora a que estamos expostos desde sempre, no contato com nossos pais e demais seres falantes que nos cercam. Nascemos, então, com um comando gerado na luta da espécie para sobreviver, que nos permite - e obriga a - utilizar "lalangue", como (mais) um artefato. Mas "lalangue" nem "la lettre"  - ou "lalettre" -, que não são o mesmo, também não são apenas meio de satisfação de necessidades, pois resultam já de - e em – uma abertura para uma dimensão além, tão própria do humano – portanto, nada “sobre-humana” ou “sobrenatural” -, que é aquela do desejo, insaciável, do gozo .
            "La lettre" não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim, filológico. Ela é, desde sempre, como defende Derrida em sua “Gramatologia”, escritura e, antes disso, inscrição, "inscritura", marcas como as que nossos antepassados mais remotos deixaram em paredes de cavernas onde co-habitaram, as quais lhes permite fixar acontecimentos do passado, comemorá-los, projetando-se para além da dimensão natural, na dimensão temporal; marcas que lhes re-(a)presentavam uns para os outros, às quais associaram certos sons, fixando-os, e atribuindo, os sons e suas marcas, aos sujeitos falantes, dando-lhes nomes, como às coisas (cf. Hobbes, "De natura humana", cap. V). E esses nomes, se muitas vezes identificavam os sujeitos com as coisas, os diferenciava entre si, ao mesmo tempo em que estabelecia ligações entre eles, por sua "nomeação": a filiação, expressa em nomes e sobre-nomes. Eis que assim, do filológico somos levados a pensar o "filialógico", como o que há de mais fundamental: literalmente, a origem.
            Ao nível "filialógico", "la lettre" é uma herança, na medida em que ela é o nome próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai e sua lei, o "nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à diferença da mãe, que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir com ele um vínculo filológico, ou melhor, "filialógico", e através dele com a mãe, agora um outro vínculo, e assim por diante. Não é (da constituição) desse tipo de vínculo que em geral se trata na clínica psicanalítica? E não é para garanti-lo que se tem, por exemplo, algo como o direito e a Lei?
            "Herança", não esqueçamos, no plano simbólico é noção jurídica, e para o direito ela é o patrimônio que recebemos após a morte de nossos pais ou parentes, por transmissão legal, o legado, que a eles pertencia. "La lettre", nesse sentido, não é herdada, pois a condição de a recebermos não é que aqueles que nos geraram morram, mas sim, que nós vivamos. Ao mesmo tempo, como "la lettre" foi transmitida aos que nos a transmitem por quem não vive mais, ela pode ser, também, nesse sentido, uma herança, uma marca de mortos que representa a morte aos que nascem para viver como seres temporais e linguageiros.
            E se biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão definitiva com o natural - e o real. Aí, desde a (nossa) origem já se tinham produzido as estruturas que vão gerar a escrita, esta técnica contábil, surgida com a passagem das comunidades arquetípicas, igualitárias, às sociedades hierarquizadas, diferenciadoras.
                 O caráter em si mesmo repressivo da escritura, especialmente aquela fonética, com alfabeto, é discutido por Derrida em "Da Gramatologia", contestando os “Tristes Trópicos” de Lévi-Strauss, na esteira de J.-J. Rousseau: "Mais racional, mais exata, mais precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do canto, isto é, da origem viva da linguagem.(...) Correspondendo a uma melhor organização das instituições sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a presença soberana do povo reunido" (Derrida, "Gramatologia", trad. Renato Janine Ribeiro e Míriam Schneiderman, São Paulo: Perspectiva, 1973, pp. 368/369). A representação abstrata através da escrita é empregada na elaboração de normas jurídicas na forma de decretos redigidos por representantes políticos que "falam", i.e., escrevem, enquanto os representados "emudecem", i.e., lêem. Nessas condições, "o corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de sua destruição" (Rousseau, "Du contrat social", Livro II, cap. XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363). É assim que podemos partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi recolher em Rousseau, no “Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.”, a qual iremos em seguida desenvolver, apresentando uma outra forma de situar a origem do que é mais propriamente humano, isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. – em uma palavra o cultural ou simbólico – nas paixões, nos afetos, no corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo (humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela Lei, pela Letra.
               A origem mais remota da sociedade, segundo Rousseau, não é jurídica, com o contrato social, tal como ele expõe em sua mais célebre obra – ou nos fez supor, com sua leitura. No “Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação musical”, publicado postumamente, em 1781, e escrito após o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1754) – cuja leitura pode desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias de Rousseau, a saber, que o homem no estado de natureza seria bom, quando na verdade dele não se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não possuía, a rigor, uma consciência moral, tal como os animais -, antecipa-se, corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da espécie humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
            E Rousseau chega a essa conclusão por considerar que a humanidade surgiu em razão de contatos entre hominídeos onde mais escassa e necessária se tornou a água. Não foi, portanto, o fogo que fez surgir os homens, quando o domesticaram, nem o calor das fogueiras que nos forjou a consciência, mas sim o frescor das águas de rios e lagoas, com as quais se saciava o corpo por dentro e o acariciava por fora, fazendo acender um outro fogo, “um fogo sagrado que conduz ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade”, e que depois nos atrairá para o fogo que aos outros animais assusta. E também em torno do fogo serão galvanizados os laços sociais que primeiro serão gerados na água, como a própria vida o foi. Mas agora deixemos com o próprio Rousseau a palavra:
                        “...nos lugares áridos, onde só os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para cavá-los, ou pelo menos entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a origem das sociedades e das línguas, nas regiões quentes.
            Aí se formaram os primeiros laços entre as famílias, aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. (...) Olhos acostumados aos mesmos objetos desde a infância aí começaram a ver outros, mais doces. (...) Atraíam-se gradativamente uns e outros; esforçando-se por se fazerem entender, aprenderam a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras festas: (...) o prazer e o desejo, confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes brotaram os primeiros fogos do amor” (cap. IX).
            Eis que a origem de tudo o que nos diz respeito mais de perto, enquanto humanos, é a festa, a comemoração. Note-se como foi no encontro com desconhecidos e desconhecidas que a necessidade carnal se tornou paixão, a vontade se tornou desejo, e nosso corpo adquiriu consciência, consciência de que não é apenas um corpo, carne, mas um local de prazer, de onde se fala para obtê-lo. Seria a partir desse encontro, então, que assim como a carne crua passou a ser desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o sexo com os iguais e conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um primeiro momento, desinteressante, e, em seguida, proibido. Aqui estamos diante de uma possibilidade de surgimento da “primeira Lei”, aquela que Lévi-Strauss considera, a um só tempo, natural e social (cf. “Les structures élémentaires de la parenté”, Paris: P.U.F., 1949, p. 38 ss.), e que para Freud nos constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto – especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido por este último, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico, o mito do assassinato do pai primevo, seguido do banquete totêmico – também uma festa -, que seria, no dizer de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está morto” (cf. “A Ética da Psicanálise”, trad. A. Quinet, 2a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 216 e s.) De se notar, portanto, é a alusão de Freud ao banquete no qual os filhos comem a carne do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René Girard, em “A Violência e o Sagrado” (trad. Martha C. Gambini, São Paulo: Paz e Terra/EDUNESP, 1990), irá situar na origem da religião e de toda sociedade – esta pressupondo a primeira -, enquanto excesso permitido e violação ritualizada de proibições, exceções que garantem a persistência das regras e da ordem social, da Lei.
               Já o jurista francês Jean Carbonnier (em “Derecho Flexible. Para una sociología no rigurosa del Derecho”, prólogo e trad. Luiz Diez-Picazo, Madri: Editorial Tecnos, 1974, p. 87 e seg.), refere a tese lévi-straussiana, mas não entende que haja nas sociedades ditas primitivas a consciência de um caráter especificamente jurídico da regra que torna "tabu" o incesto. Para os membros dessas sociedades, a coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se esse fosse "uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física, frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vivido, e não simplesmente uma máxima pensada". Tal vivência se dá ao nível corporal.
            O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder social vigente, de “inscritura” da letra e da marca de que estamos aqui a tratar. São clássicas já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em "La société contre l'État", quando considera os rituais de passagem e iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas" (melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de mutilação ou "investida" dolorosa sobre o corpo do seu paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma forma de inscrição no corpo de cada um das leis da comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam dizer os pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas pela ação disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez sofrida interiormente, marcas indeléveis também na memória, que se prestam à identificação mútua dos que a possuem como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente iguais entre si, sem que um seja melhor ou pior do que o outro, donde não poder nenhum pretender dominar o(s) outro(s).
             Bem diferente, então, seriam as coisas em sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel. Seja como for, fica registrada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por R. Caillois (“El Hombre y lo Sagrado”, 2ª ed., México: Fondo de Cultura Económica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.), condição da vida e porta para a morte.
             A eficácia de toda prática mágica e a autoridade das idéias que a fundamentam repousa sobre uma tradição sacramental (cf. Roger Caillois, ob. cit., p. 14), velada por fortes sanções sociais, de que certas palavras apropriadas e gestos específicos possuem um poder secreto sobre as coisas. Em obra bastante conhecida de filosofia da linguagem, Ogden e Richards explicam que "classificar as coisas é dar-lhes nomes e, para a magia, o nome de uma coisa ou grupo de coisas é a sua alma; conhecer os seus nomes é dispor de poder sobre as almas delas. Nada, seja humano ou sobre-humano, está acima do poder das palavras. A própria linguagem é um duplicado, uma alma-sombra, de toda a estrutura da realidade" (C. K. Ogden/I. A. Richards, “O Significado de Significado”, Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 51 s.). Daí, não é de estranhar o fato de o estudo da formação infantil do significado, assim como o do significado selvagem ou iletrado se depararem como uma mesma atitude mágica em relação às palavras e, por intermédio destas, em relação ao mundo (v. tb. B. Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, col. Os Pensadores, Abril: São Paulo, 1979, p. 309 ss.).
             A percepção da resistência do mundo em aceitar o seu domínio mágico, pela conseqüente falibilidade de seus rituais, atestada pelo malogro de experiências sucessivas, termina por acarretar a submissão às forças misteriosas e sobrenaturais que não consegue controlar - como escreveu Marcel Mauss, o homem então “après avoir été dieu, il a peuplé le monde de dieux” (Mauss/Hubert, "Esquisse d'une théorie générale de la magie", in: id., “Sociologie et Anthropologie”, C. Lévi-Strauss (ed.), Paris: P.U.F., 1969 [1898], p. 11). Vale assinalar o significado político dessa submissão a entes superiores, donde resultaria a submissão também àqueles que se diziam capazes de entender e tratar com eles, isto é, as castas sacerdotais. Estas, como se sabe, fornecem o sustentáculo ideológico para a concentração do poder, inicialmente distribuído entre os membros do grupo social. A noção do supra ou sobrenatural, que é própria da religião, introduz a representação de forças que escapam ao poder humano, a serem controladas através de um relacionamento amistoso, proporcionado pelo culto com oferendas, sacrifícios e coisas do gênero. Assim, enquanto a magia envolve operações que se revestem de um caráter coercitivo para com os espíritos, forçados a agir no sentido indicado pelo praticante dos atos mágicos, na religião é estabelecida uma espécie de aliança para impedir a arbitrariedade na ação divina, revestindo o relacionamento entre homens e divindade de um caráter, por assim dizer, jurídico (cf. Marcel Mauss, "Pour une sociologie des religions archaïques", in: id. ib.,  p. 112).
             Em seus estudos pioneiros na Polinésia, Malinowski chegou à conclusão de que toda a estrutura da sociedade trobiandense repousa sobre o princípio do estatuto jurídico (status), combinado com aquele outro princípio maior da organização jurídica dos povos originários ou primevos, que é o princípio da reciprocidade (cf., v.g., Malinowski, “Moeurs et Coutumes des Mélanésiens, Paris, 1933, p. 37). Pesquisas realizadas em épocas mais recentes, por cientistas de diferentes países, efetivamente corroboram esta tese, de que a organização social neste nível mais “primitivo'” se assenta sobre as pilastras da posição ocupada por razões hereditárias pelos indivíduos (status) e na forma econômico-jurídica dominada pela reciprocidade, o que permite uma classificação de tais sociedades como 'sociedades igualitárias', em oposição à nossa, que se poderia denominar ‘sociedade competitiva'. Aqueles dois padrões estruturadores da vida social em estágio, por assim dizer, selvagem, fornecem os critérios determinantes das obrigações mútuas dos membros da comunidade, isto é, de suas 'relações jurídicas', e em ambos se pode identificar a presença catalisadora da magia.
            A consideração deste mecanismo de troca recíproca conduz igualmente a especulações extremamente elucidativas quanto à formação das sociedades antípodas daquelas em que ele vigora — a sociedade competitiva -, onde a submissão e a propriedade privada aparecem de forma marcante. Assim, é possível imaginar que indivíduos com maior capacidade produtiva doassem uma quantidade cada vez maior de excedente, criando para quem recebia os 'presentes' a necessidade de praticamente trabalhar para os primeiros, no afã de conseguir manter em equilíbrio as suas relações, tornando-os cada vez mais abastados e poderosos. Até o ponto de que estes se sentiam capazes de desprezar as regras da reciprocidade, escravizando as pessoas, que a partir de então deviam lhe prestar reverência e obediência, pagando-lhe taxas e produzindo para satisfazer sua sede de acumulação e entesouramento, sem retribuição equânime.  Eis que a reciprocidade, levada ao extremo, torna-se o seu contrário, ensejando a quebra da reciprocidade...
            Um momento particularmente propício para a doação de presentes, donde decorreria, posteriormente, a “servidão” da maioria a uma minoria (inicialmente) mais pródiga, é precisamente aquele das festas e ritos sacrificiais, em que se troca presentes e faz oferendas, até a exaustão, como no potlach, num desperdício anti-econômico, se considerarmos apenas a economia dos bens. Ainda hoje, em nossas sociedades estatais, como nos evidencia o jurista, professor de direito medieval e psicanalista francês Pierre Legendre, o poder dos governantes se exerce sobre os governados seduzindo-os pela distribuição de “presentes”, os cargos e serviços públicos em geral, pois tudo o que recebemos, mesmo tendo pago impostos, como não há uma relação direta entre o pagamento e o que é entregue em troca, será percebido (e recebido) como um presente: “Si nous recevons quelque chose, ce ne peut être qu’un cadeau” (P. Legendre, Jouir du Pouvoir”, Paris: Les Éditions de Minuit, 1976, p. 189, grifos do A., que continua nos seguintes termos: “Ce que l’Etat nous doit, ce sera donc toujours, malgré tout, une sort de cadeau. Le sujet-objet de lamour dEtat peut en chaque occasion se convaincre de ceci: je lai échappée belle, un peu de plus je navais rien, finalement jai de la chance, je reçois ma part damour”).
               Encaminhado-se para concluir, pode-se dizer que as reflexões aqui desenvolvidas revelam uma matriz comum às diversas formas de ordenação social da conduta humana, como são a política, o direito e a religião. Esta matriz comum se constitui historicamente, como parte de nossa filogênese, mas se reproduz também, com variações e regularidades, no processo de formação de cada sujeito, individualmente. A partir da constatação da imensa dificuldade do direito em regular, com as normas gerais e abstratas que são as leis, o comportamento cada vez mais diversificado dos membros de sociedades que se transformam com a velocidade das atuais, ditas “pós-modernas”, vale recordar a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma re-sacralização crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos” (cf. G. Balandier, “Antropologia e crítica da modernidade”, in: id., “Antropo-lógicas”, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao, Poder e Secularização”, São Paulo: EDUNESP, 1995).
                Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano – artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias – e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o Direito. Cabe ao Direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.
                Afinal, somos uma ilusão de ser, pois apenas estamos, existimos, não somos realmente, já que ser é ser para sempre. Se somos, somos nada. É esse nada, esse vazio interior, que nos horroriza, por mais que o evitemos, quando com ele nos deparamos, ao pensarmos com radicalidade nossa existência e verificamos o que somos: não-ser, mera existência.
            Se em ética nos ocupamos da determinação do que é bom e do que é mal na vida, já dando como resolvida a questão do bem de viver e da própria necessidade da ética, ela está colaborando para dificultar a vida do ser moral que somos nós, ao invés de nos ajudar, pois se a vida é que é o bem e a morte é o mal, tudo o mais só pode ser mal, já que vamos morrer - o que, a rigor, pode acontecer a qualquer momento e, na verdade, estamos morrendo a cada dia, a cada segundo, enquanto vivemos. Então, seria preferível não termos ética: a ética deve ser negativa, por ser afirmativa do impossível, isto é, o dever de viver, o nosso bem maior.
            Tudo o que fazemos, especialmente o que nos dá prazer – desde as coisas tidas como mais simples: comer e fazer amor, conversar e fazer amigos, até as mais sofisticadas, como a arte e a ciência, passando por aquelas em geral condenáveis moralmente, como a busca da glória, do poder, de dinheiro, drogar-se, cometer crimes – não passam de tentativas vãs de ocultarmos de nós mesmos nossa falta de ser, preencher ou ornamentar o vazio fundamental que somos nós: eis o mal radical. A ética nos força a optar pelo ser, quando não somos – ou somos não-ser -, e com isso, nos leva a sofrer ainda mais do que sofreríamos, se não tivéssemos ética nenhuma (cf. Julio Cabrera, “Crítica de la moral afirmativa”,. Barcelona: Gedisa, 1996).
            O sofrimento de existir é considerado melhor do que o nada de não existir. Será que é mesmo? Mas se existindo já somos esse nada? O fato intransponível que a todo custo a ética tenta escamotear, por não assumi-lo com todas as suas conseqüências, é que nós não existimos sempre nem existiremos para sempre. Por que este que nos parece o estado normal, o de não-existência, que é o estado de ser e, logo, do ser supremo, é o estado considerado excepcional e associado ao mal? Em ética, o bem não é a regra e o mal, a exceção? Estar vivo não é uma exceção? Então por que esta consideração a priori de que estar vivo é que é bom e não estar vivo, mau?  Sofremos nessa vida e, em grande parte por isso mesmo, também fazemos outros sofrerem, quando poderíamos muito bem usufruí-la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de obediência rígida a regras universal e eternamente válidas, que pressupõe um estado de ser que nunca alcançaremos em vida, mas apenas, possivelmente, após a morte: o de ser para sempre. Daí ter A. Badiou (em “L´éthique. Essai sur la conscience du Mal”, Paris: Hatier, 1993, p. 33) afirmado que a ética é niilista, por se basear na convicção de que “a única coisa que pode verdadeiramente acontecer ao homem é a morte”, o que a remete à inefabilidade do que é totalmente diverso, denominação ética de Deus, instância decisória da morte, onde se gera o mal: ética, “nome último do religioso como tal” (ib.: 23). Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar nisso, não nos conscientizamos, propriamente, de nossa situação existencial em toda a sua precariedade – e beleza.
            É preciso, portanto, que haja espaços privados para se falar disso, sendo isso mais do que falar de si, como na clínica psicanalítica, em geral, pois é falar do que somos todos nós, e nesse discurso moldarmo-nos, eticamente. A ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que confrontamos com a verdade fundamental de que toda moral é invenção coletiva, geral, e também, em certa medida, particular, individual, singular, feita para justificar nosso desejo de preservar-nos a vida, a nossa e a dos outros, sem que saibamos porque. Essa é nossa herança, o legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se comemorar.



*  Professor Titular do Centro de Ciências Juridicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor de Filosofia do Direito dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC-Sp e Universidade Candido Mendes (RJ). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Doutor de Filosofia do Direito nos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em Direito (Bielefeld, Alemanha). Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia – UFRJ/IFCS. Formação em Psicanalista no Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), S. Paulo.  Ex-Professor Titular de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
[1]  Anna O., como é sabido, foi uma paciente de BREUER que adoeceu,  com sintomas de histeria, enquanto servia de enfermeira para o pai, moribundo, com quem tinham uma intensa relação emocional.
[2]  Cf. FREUD, S. “Uma Breve descrição da Psicanálise”, O. C., vol. XIII, p.243.
[3]  Cf. FREUD, S. “Uma Breve descrição da Psicanálise”, cit. p.244.
[4]  A “interpretação particular do terapeuta” encontra-se diretamente vinculada à sua postura frente ao conceito psicanalítico de inconsciente, o reconhecimento da sexualidade infantil, a importância do fator sexual na vida mental, dentre outros.
[5]  Cf. HANS, Luiz. Dicionário Comentado do Alemão de Freud, p. 354.
[6]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.244.
[7]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.247.
[8]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.249.
[9]  Como exemplo podemos citar: o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (1909-1914); Zentralblatt für Psychoanalyse (1911), Psycho-Analitic Review (1913).
[10]  Não se pode, no entanto negar o mérito de JUNG quando, em 1907, explicou os sintomas mais excêntricos dos estágios finais da dementia praecox a partir das histórias individuais de vida dos pacientes. Assim como o estudo da esquizofrenia, realizado por BLEULER (1911) demonstrou a justificação da esquizofrenia por um ângulo psicanalítico.
[11]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.255.
[12]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p.256.
[13]  Cf. FREUD, S. Uma Breve descrição da Psicanálise, p. 258.
[14]  Cf. FREUD, S. “Nova Série de Conferências Introdutórias à Psicanálise” (1933), Conferência n° 31: “A dissecção da personalidade psíquica”. Obras Completas, Vol. XXII,  p. 102. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Vorlesung XXXI: “Die Zerlegung der psychischen Persönlichkeit”, Frankfurt am Main: Fischer, 1991, p. 81.
[15]  “Escritos”, trad. Inês Oseki-Depré, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 86, nota 6.
[16]  "Existiria um sentido psicanalítico da ‘História’?", in: Palavração. Revista de Psicanálise, n. 2. Curitiba: Biblioteca Freudiana de Curitiba, 1992.
[17]  Cf., v.g., J. Birman, “Psicanálise, Ciência e Cultura”, Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 63, 166/167.
[18]  "Una lectura freudiana de Hans Kelsen", in: id. et al., Materiales para una Teoria Critica del Derecho, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1991, p. 22 – o A. foi um querido amigo, recentemente falecido, a quem rendo aqui minhas homenagens.
[19]  “Massenpsychologie und Ich-Analyse”, in: Gesammelte Werke, vol. XIII, 9a. ed., Frankfurt am Main: Fischer, 1987 [1921], cap. III, (última) nota, p. 94.
[20]  “Dio e lo Stato”, Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiani, 1988, p. 139 ss.
[21]  Cf. “Indeterminismo e incerteza do sujeito na ética da psicanálise”, in: Ética, Psicanálise e sua Transmissão, Maria Inês França [org.], Petrópolis: Vozes, 1996, p. 53 ss., passim.
[22]  Cf. “O Avesso da Psicanálise”, trad. Ari Roitman, Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 102.
[23]  Lacan, “A Ética da Psicanálise”, trad. A. Quinet, 2a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 22. Como diziam os juristas-teólogos medievais, “fictio figura veritatis”. Cf. Ernst H. Kantorowicz, 1998, p.  185 ss., passim.
[24]  Id., “O Avesso da Psicanálise”, cit., 1992, p. 97.
[25]  De se notar, ainda, é a alusão de Freud ao banquete no qual os filhos comem a carne do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René Girard, em “A Violência e o Sagrado”, irá situar na origem da religião e de toda sociedade – esta pressupondo a primeira -, enquanto excesso permitido e violação ritualizada de proibições, exceções que garantem a persistência das regras e da ordem social.
[26]  Cf. “Les structures élémentaires de la parenté”, Paris: P.U.F., 1949, p. 38 ss., passim. A propósito, há o conhecido texto de Lacan sobre a família, publicado em 1938 na “Encyclopédie française”, tomo VIII, onde ao tratar do complexo de édipo, refere o "apoio sociológico" que as teses de Freud sobre as fantasias do inconsciente receberiam dos estudos enfeixados por Frazer em sua célebre obra "The Golden Bough", onde se reconhece no tabu da mãe a "lei primordial da humanidade".  Em sua  investigação não menos célebre sobre as estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss sustenta ter a proibição do incesto sua origem na natureza, embora seja consagrada em uma regra, emanada do ambiente sócio-cultural, e que seria a primeira norma jurídica.
[27]  Lacan, “A Ética da Psicanálise”, cit., 1991, p. 216 e s. O mesmo foi dito por ele no Seminário "O Desejo e a sua Interpretação", na última das sete lições sobre Hamlet, em 29 de abril de 1959, acrescentando: "Este mito indica-nos uma ligação essencial - a ordem da lei apenas pode ser concebida na base de algo mais primordial, um crime. É também o sentido freudiano do mito de Édipo" (J. Lacan, “Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce”, J. MARTINHO (org.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 104).
[28]  Para J. Hillman (em id./K. Kerényi, “Variazioni su Edipo”, Milão: Raffaello Cortina, 1992, p. 113), "a análise é edípica no método: a pesquisa como interrogação, a consciência como olhar, o diálogo para descobrir, a descoberta de si através da rememoração dos primeiros anos de vida, a leitura oracular dos sonhos...".
[29]  Cf., nesse sentido, Ricardo Goldenberg, “Ensaio sobre a moral de Freud”, Salvador: Ágalma, 1994, p. 30
[30]  Cf. G. Balandier, “Antropologia e crítica da modernidade”, in: id., Antropo-lógicas, S. Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao “Poder e Secularização”, São Paulo: EDUNESP, 1995; S. Martelli, “A Religião na Sociedade Pós-Moderna”, São Paulo: Paulinas, 1995.
[31]  Para uma apresentação particularmente esclarecedora sobre esse aspecto do pensamento lacaniano consulte-se J. Dor, “Introdução à leitura de Lacan”, 2a. ed. revista, Porto Alegre: Artes Médicas, 1991, esp. a segunda parte, pp. 69 ss., texto que tomamos como ponto de partida para o presente estudo.
[32]  Cf. J. Lacan, “Ética da Psicanálise”, cit., 1991, p. 382 ss., bem como o comentário à "Antígona", ib.: 295 ss.
[33]  Cf., a respeito, por exemplo, Francisco Ortega, “Intensidade: Para uma história herética da filosofia”, Goiânia: Editora UFG, 1998, p.  62 ss.
[34]  Nesse sentido, M. Safoan, apud H. Yankelevich ("A morte de Antígona, ou Do gozo trágico", trad. Ari Roitman, in: “Letra Freudiana”, n. 7/8, Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, s/d, p. 47).
[35]  Sobre a lenda de Édipo cf. J.-P. Vernant, “O Universo, os Deuses, os Homens”, São Paulo: Companhia Das Letras, 2000, p. 162 ss., esp. 177 ss., a respeito dos filhos do herói grego.
[36]  Cf. Lacan, “Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce”, J. MARTINHO (org.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, P. 74 ss.
[37]  Cf., a propósito, Francisco J. Varela, “Sobre a Competência Ética”, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 66.
[38]  Martin Heidegger, “Das Ding”, in: id. “Vorträge und Aufsätze”, II, Pfullingen: Neske, 1954.
[39]  Esta conclusão sobre o pensamento rousseauniano resultou de seminário que freqüentei em princípio da década de 1980, em Fortaleza (CE), ministrado pelo saudoso professor da USP, Luiz Roberto Salinas Fortes.
[40]  Cf., v.g., “Droits. Revue Française de Théorie Juridique, vol. 21: La Fiction, Paris: PUF, 1995. À “fiction opératoire aui représente le discours juridique” se reportam Michel van de Kerchove e François Ost, em “Le droit ou les paradoxes du jeu”, Paris, 1992, p. 160, na esteira da filosofia jurídica da linguagem do oxfordiano Herbert Hart, bem como da semiótica jurídica pragmático-narrativa greimasiana de Bernard Jackson, situando-se em posição intermediária entre o realismo escandinavo, que denuncia o caráter mágico do direito, e o “psicanalismo” de Pierre Légendre, para quem o Direito é uma das formas utilizada pelo Poder para se fazer amar, camuflando-se para melhor se exercer.
[41]  Cf. Kelsen, “Teoria Geral das Normas”, Porto Alegre: Fabris, 1986, no 6, let. a, p. 32.
[42]  Veja-se, por exemplo, o que escreveu Kelsen na obra publicada postumamente, ult. cit., p. 322: (que) “normas são o sentido de atos de vontade e não atos de pensamento, é irrelevante do ponto de vista da Lógica. Mas se estes conteúdos de sentido estão expressos em proposições normativas, e se estão não são compreendidas como sentido de atos de vontade, positivamente não são normas válidas. Elas são positivamente normas válidas apenas como conteúdo de sentido de reais atos de vontade” (grifos do A.).
[43]  V. tb. Kelsen, ob. ult. cit., p. 328 e seg.
[44]  Cf. S. Freud, "Jenseits des Lustprinzips", II, in: Freud-Studienausgabe, vol. III, 4a. ed., Fischer Verlag, Frankfurt a. M., 1981, p. 225.
[45]  J. Lacan, O Seminário, livro 7, "A ética da psicanálise", trad. A. Quinet, 2a. ed., J.Z.E., Rio de Janeiro, 1991, cap. XVI, 3, p. 262.
[46]  Aqui, pode-se lembrar, a título ilustrativo, a distinção hegeliana entre o "entendimento", próprio do senso comum, onde não há, por exemplo, a distinção entre sujeito e objeto e todas as      demais, daí decorrentes - ou antecedentes, como "interioridade/exterioridade" -; a "razão", analítica, própria da ciência, e o "saber", sintético, pelo qual se "vai para fora" ("geht hinaus"),   escapa das oposições, superando-as pela "Aufhebung",   o que significa suprimi-las/conservando-as, "com e fora"   ("without") da contradição. Lacan fala em "discurso histérico", "discurso universitário", "discurso filosófico" - e "discurso analítico".
[47]  Assim como nos mostrou Lacan, n'O Seminário, livro 20, "mais, ainda", versão brasileira da M. D. Magno, 2a. ed., J.Z.E., Rio de Janeiro, 1985, p. 170.
[48]  J. Lacan, "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", in: "Escritos", ed. Perspectiva, S.Paulo, 1978, p. 227.
[49]  Cf. F. de Saussure, "Curso de Linguística Geral", Cultrix, São Paulo, 1973, pp. 142 e segs.
[50]  Cf. C. Nique, "Iniciação Metódica à Gramática Gerativa", trad. E. Lopes, Cultrix, São Paulo, 1977, pp. 62 e segs., expondo a formulação contida na obra "Estruturas Sintáticas", de Chomsky.
[51]  Cf. J. Lacan, ob. ult. cit., p. 233.
[52]  Cf., aqui, e para o que segue, id. ib., p. 246. Observe-se que o registro original foi alterado, numa tentativa de adequá-lo àquele do Seminário XVII.
[53]  "O lugar que eu ocupo como sujeito de significante será, em relação àquele que eu ocupo como sujeito do significado, concêntrico ou excêntrico? Eis a questão." Id. ib., p. 247.
[54]  Cf. "Escritos", cit. pp. 275 ss.
[55]  Id., p. 288.
[56]  Ou também, "aquele que é-segundo-o-significante". A. Juranville, "Lacan e a Filosofia", trad. V. Ribeiro, rev. L. A. Garzia-Roza, J.Z.E, Rio de Janeiro, 1987, p. 76.
[57]  A notação original, francesa, corriqueira também na literatura nacional, é S(A'). A vantagem da notação utilizada está em que (Ø) significa elemento nulo ou ausência de elemento, coincidência, o que favorece a evocação de seu significado. S(Ø), afinal,   em outra notação, é S1, o significante puro, que não é nada em si mesmo, só sendo um significante por ser relacionado a uma   cadeia de significante, S2. Daí que S1 "é, entre todos os significantes,   esse significante do qual não há significado, e que, quanto ao sentido, simboliza seu fracasso". Lacan, Seminário XX,   cit., p. 107. Nesse contexto, ele se liga também ao phi, ao falo.
[58]  Cf. Lacan, loc. ult. cit., pp. 290, 301/302 e 306/307.
[59]  Id. ib., p. 297.
[60]  Cf. Id., O Seminário, livro 17, "O avesso da psicanálise", trad. A. Roitman, cons. A. Quinet, J.Z.E., Rio de Janeiro, 1991, cap. IV, 2, p. 57; cap. VI, 2, p. 87; cap. VIII, 2, p. 117.
[61]  A. Didier-Weil utiliza a expressão para diferenciar do "pequeno mestre", que podemos melhor designar por amo ou senhor. Cf. ob. cit., pp. 125/126.
[62]  Cf. Seminário XX, cit., p. 156. V. tb. A. Juranville, ob. cit., p. 307. Note-se como a postura de recusa do saber comumente aceito, própria do "grande mestre", que "só sabe que nada sabe",  - no que, aliás, nada há de modéstia, muito pelo contrário, pois os que pensam que sabem é que estão enganados - leva a uma reinstituição do saber, partindo dessa mesma ignorância, que logo se torna "douta" e, depois, objeto de docência, disciplina universitária. Cf., a propósito, G. Lebrun, "O avesso da dialética", trad. Renato Janine Ribeiro, Cia. das Letras,  S. Paulo, 1988, pp.12/13. Já a apropriação pelo discurso filosófico do discurso ignorante de si próprio, de quem "não sabe o que diz", mas que diz, como se há no discurso da histérica, encontra-se magnificamente ilustrada em "O sobrinho de Rameau", quando a certa altura Diderot exclama, após uma observação do "sobrinho": "Isto é infinitamente mais verdadeiro do que percebeis", ao que ele contesta: "Ah! Eis como sois, vós e os outros de vossa espécie! Se dizemos algo bom, o fazemos como loucos ou como inspirados: por acaso. Só vós próprios vos entendeis. Sim, senhor filósofo, eu me entendo assim como vós vos entendeis". Cf. Col. "Os Pensadores", vol. "Diderot", Abril Cultural, S. Paulo, 1979, p. 44.
[63]  Cf. id. ib., cap. XII, 1, pp. 157/158 e 164/165.
[64]  Seminário XVII, cit., p. 15.
[65]  Cf. id. ib., loc. cit.
[66]  O tema da dialética senhor/escravo é trabalhado por Lacan em diversas opostunidades. Veja-se, por exemplo, seu debate com Jean Hyppolite, n'O Seminário, livro 2, "O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise", trad. M. C. Laznik Penot, col. A. Quinet, 2a. ed., J.Z.E, Rio de Janeiro, 1987, esp. p. 96. Depois, no Seminário VII, cit., p. 21; nos "Escritos", cit., pp. 292 e segs.; no Seminário XI, pp. 240/241; extensamente no Seminário XVII, passim; no Seminário XX, esp. p. 45. Em Hegel, consulte-se a "Fenomenologia do Espírito", Parte I, trad. Paulo Menezes, col. K.-H. Efken, Vozes, Petrópolis, 1992, pp. 126 e segs.. Para um resumo, P. Menezes, "Para ler a Fenomenologia do Espírito", Loyola, S. Paulo, 1985, pp. 60 e segs. A leitura lacaniana, como é sabido, descende daquela de Kojève, a qual é resumida em L. A. Garcia-Roza, "Freud e o inconsciente", J.Z.E., Rio de Janeiro, 7a. ed., 1988, pp. 140 e segs.. V., ainda, F. Costamoura, "A propósito de uma referência a Hegel: verdade e saber", in "Jacques Lacan: a psicanálise e suas conexões", A. Quinet (org.), Imago, Rio de Janeiro, 1993, pp. 94 e segs..Amplamente, sobre a interface da filosofia hegeliana com a teoria psicanalítica lacaniana, S. Zizek, "O mais sublime dos histéricos - Hegel com Lacan", trad. V. Ribeiro, rev. O. de Souza, J.Z.E, Rio, 1991.
[67]  Cf. Seminário XVII, cit., p. 161.
[68]  Cf. A. Juranville, ob. cit., pp. 298/299. V. tb. A. Quinet, "As 4 + 1 Condições da Análise", J.Z.E., Rio, 1991, p. 92.
[69]  Cf. Seminário XVII, pp. 18 e segs..
[70]  Cf. Massa e Poder, trad. R. Krestan, Ed. UnB/Melhoramentos, S. Paulo, 1983, p. 427.
[71]  Cf. Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, trad. J. F. Duarte, Fabris Ed., Porto Alegre, 1986, pp. 71, 328/329; v. tb. "Derecho y Psicoanalisis: Teoria de las ficciones y función dogmática", E. E. Marí (ed.), Hachette, Buenos Aires, 1987; Lacan, Seminário VII, p. 22; id., Seminário XX, p. 80.
[72]  Cf., mais amplamente, W. S. Guerra Filho, Teoria política do Direito, Brasília jurídica, Brasília, 2000, pp. 49 ss.
[73]  V. Hegel, ob. cit., ns. 190 e segs., pp. 130 e segs., onde se lê, v.g.: "A verdade da consciência independente é (...) a consciência escrava" (n. 193, p. 131). V. tb. P. Menezes, ob. cit., p. 62: "Como o Senhor chega à certeza de si através de uma consciência dependente, não adquire a verdade de si mesmo, porque `seu objeto não corresponde a seu conceito', o qual requer uma consciência independente. Sua verdade é a consciência escrava". Para J. Hyppolite a exposição da dialética do senhor e escravo "consiste essencialmente em mostrar que o senhor se revela ser em verdade  como escravo do escravo e o  escravo como o senhor do senhor". "Genèse et structure de la Phénoménologie de l'Esprit de Hegel", vol. I, Aubier, Paris, 1946, p. 166.
[74]  Cf. Seminário XVII, p. 21: "um verdadeiro senhor não deseja saber absolutamente nada - ele deseja que as coisas andem".
[75]  A respeito, veja-se em apoio as reflexões instigantes de J. Cabrera em "Projeto de ética negativa", Mandacaru/Graphbox, S. Paulo, 1990, pp. 58 e segs..
[76]  Cf. J. Lacan, "Escritos", cit., p. 232. Já no Seminário VI, p. 378, ele nos diz: "O testemunho da obrigação, na medida em que ela nos impõe a necessidade de uma razão prática, é um Tu deves incondicional. Esse campo adquire, precisamente, sua importância pelo vazio em que o deixa, ao se aplicar rigorosamente a definição kantiana".
[77]  O termo alemão Witz, empregado por Freud, costuma ser traduzido, na literatura psicanalítica, tanto em castelhano como português, por "chiste". Aqui, optamos em geral pela palavra "piada", por ser mais usual no linguajar brasileiro. Por outro lado, para cobrir melhor o espectro semântico do original alemão, há que se referir pelo menos uma outra expressão, que bem poderia ser uma gíria, infelizmente já em desuso, "tirada", pois é isso, também, o Witz, tal como FREUD o refere: um dito espirituoso, de improviso, ocasionado por determinada situação. Para esse caso, porém, empregamos a palavra "trocadilho".
[78]  Literalmente, “ato teatral com três personagens”, como desde a época medieval se caracteriza ao processo judicial, numa analogia que desenvolvemos entre este último tipo de processo e o processo analítico, no texto que se segue ao presente, “Processo e Inconsciente”.

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