sábado, 8 de dezembro de 2012

O cerne da minha tese em Filosofia publicada em panoptica.org


Por uma Poética do Direito:
Introdução a uma Teoria Imaginária do Direito (e da Totalidade).*

Willis Santiago Guerra Filho

Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (FFB-CE). Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ). Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP).  Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). Pós-Doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).


Resumo: O artigo propõe a retomada de estudos do direito situados em um quadro mais amplo, tal como idealizado e, a seu tempo, em parte, também realizado pelo italiano Giambattista Vico, no século XVIII, quando contrapôs ao racionalismo de matriz cartesiana uma abordagem calcada no que se pode denominar a utilização poética da linguagem, o que converge para os estudos contemporâneos em filosofia, quando se vê na linguagem o que há de mais fundamental a ser perquirido, bem como com propostas as mais diversas, oriundas igualmente das ciências humanas, no sentido de apontar para o caráter fundante que tem a imaginação no esforço humano de entender qualquer manifestação mundana ou consciencial.

Palavras-Chave: Teoria do Direito – epistemologia – imaginação – poética

Abstract: The paper proposes a return to the legal studies located in a broader framework, such as idealized and in his times also practiced by the Italian Giambattista Vico in the 18th. Century, which opposes the Cartesian like rationalism with an approach based on what we may call a poetic use of language. To this converges also contemporary studies in the field of philosophy, when language is envisaged as the ultimately reality to be reached, as well as the efforts that can be found in humanities, in order to point out to the founding nature of imagination in all the human features to comprehend worldly and consciences manifestations.

Key-words: Legal theory – epistemology - imagination – poetics


SUMÁRIO:


Introdução


1. Natureza Ficcional do Direito


2. O Direito como parte do mundo criado pelo desejo


3. O Direito posto (positivo) poeticamente concebido como Direito possível


4. Crítica fenomenológica do formalismo científico


5. Proposta de reordenação das formas de conhecimento legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou “escatológicas”.

6. Interlúdio Metafísico-Teológico

Conclusão

Introdução

            A expressão “Teoria Imaginária do Direito” apresenta uma postulação epistemológica e uma outra, ontológica. A primeira, referente à natureza da teoria do direito e, antes, à de toda teoria, aponta para o seu caráter imaginário. A segunda, referente à natureza do próprio direito, objeto de uma tal teoria, também aponta para o seu caráter imaginário.
            No que tange à postulação epistemológica, ela se põe em confronto com uma tradição racionalista, que tem na filosofia cartesiana sua mais conhecida representante, a qual reverbera até a contemporaneidade, por exemplo na concepção sartreana sobre o imaginário, quando ele trata o produto da atividade imaginativa, a imagem,[1] como um símbolo deficiente, ontologicamente esvaziado, a ser superado pelo conceito, correlato da atividade racional (ou talvez melhor dizer racionalizadora), o “pensamento retificado”, como bem o denomina Gilbert Durand.[2]
Juntamente com este último, na esteira de outros, anteriores, como Bachelard e Minkowski, vamos entender o pensamento lógico-racional, do encadeamento linear, como um caso particular e, enquanto particularização, também uma limitação, da forma originária e fundamental de pensamento, que é aquela por imagens, do imaginário. E entendemos que foi o próprio avanço da investigação teórica, onde ela é mais reconhecida como científica, ou seja, na matemática e na ciência natural, sobretudo a física, que trouxe uma tal compreensão, tornando a geometria euclidiana uma das possibilidades de elaboração de uma axiomática rigorosa sobre as propriedades do traçado de figuras em um plano que não podemos esquecer ser imaginado, logo, imaginário, assim como a lógica formal aristotélica, bivalente (que usa apenas os valores da falsidade e verdade), também é uma dentre muitas lógicas possíveis. O avanço da matemática, que é de se considerar como o avanço da própria imaginação humana criativa em um de seus setores, terminou impulsionando o avanço da investigação da matéria e do espaço físicos, permitindo que se forjasse a cosmologia relativística e a microfísica quântica. Nesta última, por exemplo, já se sabe que a idéia de “átomo” é uma abstração, não havendo esta partícula última indivisível, um “ponto”, tal como concebido na geometria euclidiana, tornada padrão de racionalidade pelo cartesianismo da (primeira ou mais recuada) modernidade. Imaginemos então que esse ponto na verdade é um círculo, reduzido a proporções infinitesimais, e consideremos que uma reta é formada por uma série de pontos, assim como em cada ponto da reta se pode conceber o cruzamento com ela de uma outra reta, sendo o que estabelece o sistema de coordenadas cartesianas, mas cada ponto é, na verdade, o lugar de um corte, que em matemática se denomina “corte de Dedekind”.[3] A imagem que agora se tem desse sistema de coordenadas é totalmente diferente, e ela expressa bem uma outra percepção da realidade que a partir daí se pode obter, diversa daquela linear, cartesiana, a qual se mostra como uma abstração redutora diante dela. Retomaremos adiante estas colocações.
            Com relação à postulação ontológica, sobre o caráter imaginário do próprio direito, enquanto objeto de estudos teóricos, para entendê-la, basta que se atente para a circunstância de que o direito é também uma forma de conhecimento, sendo um modo como numa sociedade se dá a conhecer aos seus membros o comportamento que é esperado de cada um, pelos demais. Eis que, como era de se esperar, a postulação epistemológica e aquela ontológica convergem, mostrando-se como “os dois lados de uma mesma moeda”, “moeda” esta que o jurista e filósofo Miguel Reale, por influência (neo)kantiana, muito bem denominou “ontognosiologia”. O que aqui se quer então destacar é o caráter fundamentalmente “po(i)ético”, criativo, imaginativo de toda obra humana, aí incluídos tanto o direito como o conhecimento que se produz, a seu respeito, e também em geral, a totalidade do que se conhece, enquanto dependente de alguma forma de decodificação - ou signatura, para utilizar a expressão alquímica de Paracelso, amplamente empregada por Jacob Boehme, retomada de há pouco por Giorgio Agamben -, para ser por nós percebida significativamente, numa articulação simbólica.

1. Natureza Ficcional do Direito

Partindo da consideração do Direito como uma criação humana, coletiva, é que de último jusfilósofos dentre os mais acatados, a exemplo de Ronald Dworkin, professor de filosofia do direito em Oxford e em Nova Iorque, vêm propondo uma compreensão do universo jurídico em aproximação com aquele da ficção e, mais especificamente, da literatura. Outro teórico do direito contemporâneo, de expressão, que se pode referir, em sintonia com uma tal concepção, é o também nova-iorquino Richard Posner, que assim como a professora de filosofia do direito em Harvard, Martha Nusbaum, encontra-se na origem do que veio a se chamar o movimento do direito e literatura (Law & Literature Movimment). Contudo, não se faz necessário recorrer ao pensamento anglo-saxão a fim de encontrar apoio para quanto aqui se pretende sustentar a respeito da natureza ficcional do Direito, pois em nossa própria tradição, originária da matriz continental européia, houve quem fizesse indicação nesse sentido, e com precedência, sendo autor de obra que se tornou paradigmática, a saber, Hans Kelsen. É certo que o pensamento kelseniano oficial não costuma destacar esse aspecto da elaboração teórica de seu autor referencial, posterior à segunda edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), em 1960, concebida para se tornar canônica. Insiste-se, portanto, em referir à norma que seria o próprio fundamento de validade e, logo, de existência positiva do Direito, por isso mesmo dita norma fundamental ou básica (Grundnorm), como sendo uma norma hipotética, quando o próprio Kelsen, comprometido ao máximo como sempre esteve com a coerência do pensamento, percebeu que não poderia entender como sendo uma hipótese uma norma jurídica, pois hipóteses são assertivas feitas na forma de um juízo lógico, que podem ser verdadeiras ou falsas, a depender da correspondência de quanto ali se assevera com o que se comprova empiricamente, experimentalmente. Ora, isso significaria ultrapassar o limite entre o mundo do ser (Sein), onde se situam os fatos reais (Tatsache), e aquele do dever ser (Sollen), onde se encontram os fatos possíveis (Sachverhalt) que forem (juridicamente) selecionados para fornecer a base de uma imputação do Direito, a chamada fattispecie, da doutrina italiana, que corresponde ao “suporte fático” (Tatbestand), da doutrina germânica. E tal limite, como é sabido, foi rigidamente estabelecido como um pressuposto de toda a teoria do direito kelseneana, a fim de evitar a chamada “falácia naturalista”, denunciada já por David Hume e, na esteira dele, por Immanuel Kant, principal referência filosófica para Kelsen. Essa falácia ou falso raciocínio ocorre quando se pretende fazer uma dedução do que deve ser a partir do que é, minando assim a autonomia da moral, do Direito, da estética e de tudo quanto estabelece o ser humano como critério de avaliação de sua conduta, por em assim procedendo fazer depender de uma determinação prévia do que seja o bom, o justo ou o belo a possibilidade de se estabelecer parâmetros de julgamento do que quer que se venha a fazer com a intenção de atingir tais ideais.
            A qualificação de uma norma jurídica, portanto, não pode ser a de que é verdadeira ou falsa, ou seja, a de que corresponda ou não a fatos reais, do mundo do ser, daí dependendo sua existência, mas sim a de que é válida ou inválida, em se verificando sua correspondência com os fatos de ocorrência possível, do mundo do dever ser, instituído juridicamente. Na origem lógica – e não, propriamente, histórica – do universo jurídico que temos posto, positivado, diante de nós, Kelsen “pre(s)su-pôs” uma norma primeira, esvaziada de conteúdo, uma forma pura, puramente jurídica, como uma mera indicação da existência de um mundo de normas a ser entendido como Direito, juridicamente vinculante, mas sem uma vontade que (im)pusesse uma tal norma, a tornasse posta, positiva, e ela é que seria o fundamento de validade, a justificativa (lógica) de existência, de todas as normas efetivamente postas, positivas. Essa norma, na 2ª. ed. da Teoria Pura do Direito é considerada, kantianamente, uma condição transcendental de possibilidade do conhecimento jurídico, ou seja, algo como as categorias de tempo e espaço, enquanto necessárias para o conhecimento do mundo físico, mas depois Kelsen se deu conta de que, justamente por ser uma categoria, ou seja, literalmente, um “modo de falar” (do grego kat’ gorein) – no caso, sobre o Direito -, não poderia ser uma norma, jurídica, que na sua própria definição é o que confere um sentido, jurídico-positivo, a um ato de vontade, criando Direito a partir de Direito previamente estabelecido. A norma fundamental cumpriria a função de evitar o regressum ad infinitum, o círculo vicioso, do Direito que é criado a partir do Direito, mas atribuindo-se a ela o caráter hipotético e a natureza de uma categoria, ela restava descaracterizada como norma, não podendo assim ser a primeira de uma série – é como, mal comparando, se considerasse que o primeiro dos números da série de números naturais, o zero, não fosse um número, fosse um “não-número”, por ser zero, o que restou definitivamente superado pelas investigações de Frege sobre os fundamentos da aritmética, que demonstraram como a definição de todos os demais números da série dos cardeais pressupunha a existência de um primeiro número “n”, diverso do número 1 e diverso também de si mesmo, para validar a fórmula definidora de todos os x-números dessa série numérica. Ocorre que um tal objeto, contraditório (igual e diverso de si mesmo), não-existente, mas dotado ainda assim de existência, pois dele depende a existência, racionalmente justificada, de outros, “normais” (ou, no caso dos números, “naturais”), em matemática, já adquire o estatuto do que aqui se entende como “imaginário”, remetendo-nos à transcendência – só sobre a divindade é que se produziu, em outros contextos, afirmações como esta, demarcando tão radical diferença com o que habitualmente nos deparamos.
A solução encontrada por Kelsen, similar à que se proporia em matemática, diante de um tal impasse, quando se criou os números imaginários – mas esse não é o momento de adentrar em considerações desse gênero, de resto expendidas em nossa “Teoria da Ciência Jurídica” e em outras oportunidades -,[4] foi a de considerar sua  norma fundamental como uma norma fictícia, norma em sentido figurado (fingierte), um “como se”, no sentido da filosofia do “como se” de Hans Vaihinger.[5] O propósito maior da obra,[6]   como reconhece ao final seu A. - em sua auto-proclamada teoria “idealístico(-crítica)-positivista”, de matriz, a um só tempo, kantiana e nietzscheana -, é diferenciar ficções de hipóteses, enquanto recursos heurísticos. No capítulo próprio, a respeito (Parte I, Cap. XXI, p. 87 ss. da ed. cit.), as primeiras são apresentadas como conscientemente inventadas, sem pretensão de serem verdadeiras, no sentido de corresponderem à realidade, tal como as hipóteses, que devem ser prováveis (e comprováveis), enquanto as ficções, por seu turno, devem ser úteis para fazer avançar o conhecimento, dando como resolvidas questões que se apresentam como obstáculos para este avanço. Daí que, ao final da obra, o A. apresente como exemplo típico de ficção os dogmas da teologia – em passagem que será lembrada por Freud, em sua apreciação psicanalítica da religião, no texto “O Futuro de uma Ilusão” - , assim como antes apontara o direito e a matemática como as disciplinas que mais se valem do recurso para resolver seus problemas, por meio de uma formalização que as tornaria muito similares, estruturalmente - Vaihinger se refere a um “parentesco fundamental (prinzipielle Verwandschaft)” -, na medida em que abstraem especificidades dos objetos reais para subsumi-los a proposições generalizantes (abstrakte Verallgemeinerungeid. ib., Cap. XI, p. 56 ss.), a fim de equipará-los por analogia e realizar cadeias dedutivas (ib., Cap. V, p. 32 s.). Tratar uma assertiva como do domínio da ficção, portanto, é vedar de antemão a sua possibilidade de corresponder à realidade, enquanto a hipótese implica a pretensão de, possivelmente, se confirmar.[7]

2. O Direito como parte do mundo criado pelo desejo

            O mundo da ficção é um mundo de possibilidades reduzidas, onde não se pode saber sobre o que não nos é dado a conhecer pelos responsáveis por sua criação. Existir como uma ficção é existir menos do que o que existe realmente, pois é nesta última forma de existência, e não naquela, em que logicamente tudo pode acontecer, desde que não implique em contradição com o que já existe, enquanto a coerência narrativa, a consistência entre o ocorrido antes e depois - que segundo Dworkin é o que se deve esperar encontrar e, logo, cobrar,  no Direito -, seria a um só tempo, mais vaga e mais constringente, para determinar o que pode acontecer. Daí se poder falar, com o importante fenomenólogo polonês Roman Ingarden, de uma “incompletude ontológica” do universo ficcional, do qual só se pode saber o que nos informa o seu “demiurgo”, que no caso da literatura são os autores das obras ficcionais. [8] Assim, os juízos realizados no âmbito deste universo ficcional diferem daqueles feitos a respeito da realidade propriamente dita, a ponto de se poder denominá-los, como o fez Roman Ingarden, “quase-juízos”, inaptos a serem considerados “verdadeiros” ou “falsos”, pois a “realidade” da ficção é uma simulação da realidade, enquanto ficcional, mas o mesmo não se pode dizer dos juízos em outros âmbitos, como em Direito, que se referem a um possível “estado de coisas” (state of affairs, Sachverhalte). Este não é de se considerar uma simulação da realidade, mas uma outra realidade, de uma outra natureza – deontológica, no caso do Direito, do âmbito do dever ser, e não puramente ontológica, do ser (ontos, em grego antigo) -, humanamente construída, sim, tal como a ficção, mas de modo coletivo, difuso, e dotada de um caráter vinculante, que a impõe a nós COMO SE realidade fosse, na qual devemos acreditar – e não apenas podemos, se quisermos -, e isso para evitar que, em razão do descrédito, se venha a sofrer conseqüências, bem reais, como são as sanções jurídicas.
            O Direito, então, disponibiliza aos que a ele se encontram sujeitos, e que em face dele se tornam sujeitos passíveis da aquisição de direitos e obrigações correlatas, meios de produzir uma história, vinculante para os que nela tomarem parte, e vinculando-os a partir da obediência ao que se encontre previamente estabelecido pelo Direito, enquanto apto a desempenhar a função no enredo que nele pretendam os envolvidos adotar, a fim de atingirem suas finalidades e propósitos, com respaldo jurídico. Aqui é elucidativa a analogia com o jogo, como o xadrez, com suas possibilidades virtualmente infinitas de jogadas, a partir da estipulação de como podem se mover no tabuleiro suas peças, sendo a definição prévia do que pode fazer qual peça absolutamente essencial para que se possa avaliar, ao longo de um jogo, se ainda se continua jogando xadrez ou se, por atribuir, ainda que seja a uma só peça, funções outras, imprevistas, não se descaracterizaria, com ela, o próprio jogo, restando apenas a aparência do jogo original, pela permanência de figuras que não se pode mais considerar como, efetivamente, aquelas de um verdadeiro jogo de xadrez, de acordo com suas definições estipulatórias. Essa dependência do jogo em relação às suas regras constitutivas foi mostrada em uma passagem bem conhecida de suas “Investigações Filosóficas” por Ludwig Wittgenstein, sendo transposta para a reflexão jusfilosófica por um seu discípulo, Herbert Hart, ao considerar a norma jurídica uma prática social, em tudo e por tudo similar àquelas dos jogos. Aliás, o jogo é também uma ficção, um combate fictício, engendrado para dar vazão aos anseios lúdicos, agônicos, do ser humano, tão bem estudados por Huizinga em seu clássico “Homo Ludens”. Entende-se, assim, a proposta feita recentemente por Giorgio Agamben,[9] no sentido de que aos filósofos, como às crianças – e, de nossa parte, acrescentaríamos os poetas -, caberia a descoberta de novas dimensões para os usos comuns dos meios que se encontram a disposição para atingir certos fins - jurídicos, econômicos, políticos etc. -, tornando-os inúteis para tais finalidades, no mesmo gesto em que os utilizam para outras finalidades, mais diretamente prazerosas, como jogar.
            O direito é, portanto, parte desse universo lúdico, criação do desejo humano, um modo de imaginar o real em descrições que façam sentido, como diria o antropólogo Cliford Geertz.[10] Ora, em um mundo concebido (nietzscheanamente) como sonho (de deidades que são o aspecto subjetivo do cosmo, entendido como uma diacosmese, uma epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu modo, de múltiplas formas, expressa o cosmo em sua totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e com maior facilidade do que na realidade fixada por nossos hábitos, pois ele não só varia muito mais no tempo e no espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia, filosófica, totalmente diversa daquela astronômica, que é como se pode conceber, por exemplo, os esforços da psicanálise.[11] É certo que nisso a filosofia, assim como a ficção e, com anterioridade, o mito, seja na magia, seja na religião,[12]  demonstra-se “constituinte de mundo” (weltbildend), mas se não é propriamente ficcional o modo de existência originário do mundo, a ser captado pela filosofia, e vazado nos moldes cunhados pelo Direito, qual seria o seu estatuto? A proposta que aqui se avança é a de que ele é da ordem do desejo, considerando-se a expressão como formulada utilizando o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja, como sendo o mundo ao mesmo tempo causa e efeito, ou função, do desejo, do que é mais propriamente humano, e não da vontade ou de necessidades, que geram interesses, como defende o utilitarismo tecnicista hoje predominante.
Ao considerarmos o mundo, tal como o concebemos, representamos, imaginamos, como um produto do desejo lhe conferimos o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico, imaginário. Tratar-se-ia, então, de algo como um sonho coletivo, construído a partir do que já é dado como sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja, objetivo, pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha posto, no passado, visando uma previsão e controle do futuro, contingente, depende também de sujeitos que o “re-ponha”, no presente, atualizando o que há de ser visto como potencialidades, realizando possibilidades.[13]
Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, mas do tipo po(i)ético, “criador” de mundo, produtivo, ao invés daquele seu outro tipo, o técnico, reprodutivo, “explorador” de mundo. Aquele pode ser caracterizado como o que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu fazê-lo, estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A teologia, por exemplo, foi considerada um saber prático já por John Duns Scot (1266 – 1308),[14]  mesma época em que os Glosadores da escola de Bolonha estarão abordando desta maneira o Direito. Também como ele - e antes dele, influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ -,[15]  pode-se defender que do Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como do ser dos entes, as criaturas, em um sentido unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo, tal como demonstrou seu sucessor na cátedra dominicana de Paris, o místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em Heidegger, com sua afirmação da absoluta diferença (ontológica), estranheza,[16]  do Ser  - logo, também de Deus, que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda que supremo, e maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao contrário de nós, não ex(ks)iste,[17]  pois não “está (iste) fora (ex ou εζ)” e, sim, além, do mundo e de toda conceitualização, por ser transcendente:[18] como já afirmavam os medievais, na esteira de Duns Scot, e esse com base em Avicena, n’Ele coincidem a essência e a existência, ser e realidade, enquanto nossa essência de entes humanos é a possibilidade - de ser, e também de não ser.[19]

3. O Direito posto (positivo) poeticamente concebido como Direito possível

            É a partir de tais colocações que também se abre uma perspectiva para o desenvolvimento, em teoria da ciência jurídica, em um sentido próprio e atual, isto é, falibilista, porque humana e, logo, “possibilista”, imaginária. O direito, então, ao invés de positivo, positum, dado, objetivamente, há de ser concebido antes como possível, imaginário, pois a ficção é a verdade do direito, e o direito é a camuflagem do poder, apropriado e exercido pelos “autores-intérpretes” desta grande montagem, que é a sociedade. Isso porque o que é verdadeiro e falso, em direito, como na política e setores afins, se determina pela “coerência da narrativa” (Dworkin, MacCormick), tendo toda verdade a estrutura de uma ficção, de montagem teatral – fictio figura veritatis, conforme a máxima dos glosadores, lembrada por Ernst H. Kantorowicz e, na esteira deste, Pierre Legendre.[20]
Daí ser o tipo de discurso que é desenvolvido no âmbito da teoria jurídica de se considerar, em um sentido amplo, um discurso ficcional, poético, ou melhor, “poiético” (do grego poiésis, “fazer”, “produzir”, “criar”), já por podermos imaginar várias versões para a história da origem do humano, permanecendo sempre o mesmo desfecho, a saber, o de sermos um ser produzido pelas proibições que se nos impõem e, logo, também, nos impomos.
Na atual concepção epistemológica, em lógica e matemática, assim como na física e ciências em geral, “encontra-se o real como um caso particular do possível”.[21]  É certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em microfísica ou física quântica, como indicado acima, que instaurou a possibilidade (ou a “indeterminação”) no próprio cerne dos fenômenos estudados nesse nível, pois uma molécula ativada por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material, como pode reemitir o seu ganho de energia sob a forma de radiação, ou ainda entrar em reação química com outras moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em energia.[22]
Com isso, as ciências vão ao encontro daquela antropologia fundamental, que a partir de poetas-filósofos como Novalis, para quem o homem é o autor de sua realidade, ou teólogos-filósofos, como Kiergegaard, para quem o homem é aquele ser que deve educar-se no possível, podendo se remontar ainda a Ortega y Gasset e Heidegger, bem como, antes deles, Nietzsche, para que chegue a nos caracterizar nosso Vicente Ferreira da Silva - lamentavelmente falecido antes dos cinqüenta anos, em fins da década de 1960 -, em confronto com as coisas (ta onta), da seguinte maneira: “Enquanto a coisa vive cerrada em si mesma numa compressão infinita e limitante, o homem como subjetividade está envolto num horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e somente através deste possível pode ser profundamente compreendido”.[23]
Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser construído tomando elementos da realidade, do que compartilhamos de mais elementar, completando-os e, por assim dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os que temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos maiores desejos, os desejos de saber. “Tampouco isto foi descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard,[24] “posto que esta fala pela boca do paradoxo se diz a si mesma: as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam seus objetivos.
            Daí podermos postular a produção de um discurso puramente imaginativo, e bastante revelador. Neste sentido, me parece que um dos objetivos seria o de realizar, no campo do pensamento, o que no campo puramente ficcional certos autores realizam quando fazem o que Deleuze/Guattari chamam de “literatura menor”,[25] que é a literatura sempre política e necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem, “desterritorializados”, a ponto de empregarem para fazer literatura a linguagem do “colonizador”, dos que exercem o domínio político e lingüístico no território em que habita o povo dominado – lembremos, aqui, que em sua origem romano, o territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício do terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque que se tem produzido em nosso País, em termos culturais, é de se considerar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não estou pensando apenas na literatura em um sentido mais tradicional, mas também em gêneros como a música popular e as telenovelas. Aqui pode-se falar em uma “hermenêutica imaginativa”, tal como é preconizada por Márcia Sá Cavalcante Schuback,[26] a fim de termos melhor acesso a autores marcados pela uma visão teologia, com são os medievais, dos quais também nos ocuparemos, ao longo do presente estudo, em que se busca recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento desde suas origens filosóficas até o presente – “tradição” aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a origem da geometria escrito em 1936,[27] nos seguintes termos: “A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da qual o inquérito regressivo começa, é uma tradição. Nossa existência humana se move dentro de inumeráveis tradições. O mundo cultural todo, em todas as suas formas, existe por meio da tradição. Estas formas surgiram como tal não apenas casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente tradição, tendo surgido dentro do nosso espaço humano através da atividade humana, isto é, espiritualmente, mesmo embora geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência particular e da origem espiritual que as trouxeram. E ainda lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim também, ser tornado explícito, um conhecimento da evidência inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais como: que tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de acordo com isto homens passados e civilizações humanas existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que modelaram o novo a partir de materiais à mão, quer fossem brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície, contudo, é–se levado às profundezas. A tradição é aberta deste modo geral a inquérito contínuo; e se se mantiver consistentemente a direção do inquérito, uma infinidade de questões que ainda está presente para nós, e ainda está sendo elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões que levam a respostas definidas de acordo com o seu sentido”.[28]
            Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar um trabalho imaginativo, conscientemente ficcional, que se avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim que, dessa perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e mesmo as ciências são literatura, ficções, pois o que se pretende fazer é contar uma história o melhor possível, para torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo quando se diz, como o jurista romano do século II, depois teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano: creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo. Nesse contexto, vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última publicação:[29] “Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens da vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado .(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: (...) A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. (...) Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento coletivo de enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este povo que falta...(...) ‘Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias”.
Cabe agora distinguir as implicações políticas, epistemológicas e metafísicas do possibilismo da Teoria Imaginária do Direito, em confronto com aquelas do positivismo. O positivismo, como não se costuma salientar, tem diversos sentidos, conforme se apresente como uma ideologia de obediência ao que determinam as normas jurídicas, sem consideração quanto ao seu conteúdo, pelo simples fato de terem emanado de um poder soberano, posição que se encontra associada à figura de Thomas Hobbes,[30] assim como em termos epistemológicos a referência é o cientificismo mecanicista e anti-metafísico de Augusto Comte, com suas variantes mais recentes, como são aquelas do Círculo de Viena. Tanto em um caso como no outro, porém, a matriz é metafísica, e pode ser caracterizada como sendo um formalismo, que teve na filosofia transcendental de Kant a sua culminância.
            O sentido comum do termo “formalismo” é o de importância desmedida concedida às formalidades, ao que é exterior, em detrimento do que é substancial e realmente importa. Daí já se extrai uma indicação valiosa do que seria o sentido filosófico, que consiste em negar a existência real do conteúdo, para reconhecer somente a da forma – ou, em uma versão menos radical, mas próxima daquela defendida pelo grande patrocinador da chamada “distinção formal”, na Baixa Idade Média, John Duns Scot,[31]  simplesmente a possibilidade da existência independente da forma em relação ao conteúdo de um objeto.
            Diferentes serão os sentidos do formalismo, segundo o contexto de aplicação seja a lógica, a filosofia da matemática, a gnosiologia, a ética ou a estética, mas sempre com a idéia de preponderância da forma sobre a matéria.
            Bastante impulsionado por Immanuel Kant, o formalismo lógico atribui um caráter puramente formal aos princípios e leis da lógica, e portanto tende a tomá-los como meras convenções. O conjunto das proposições e predicações lógicas formariam uma totalidade autônoma, radicalmente separada das conexões reais entre os seres ou as partes do ser, os entes, marcando uma oposição à lógica metafísica dos escolásticos, inspirada em Aristóteles, para a qual os princípios lógicos têm intrinsecamente um alcance ontológico, isto é, não valem só para as conexões de idéias, mas também para as coisas reais. É essa mesma ênfase na forma que será aplicada para estabelecer as leis matemáticas e operações delas derivadas. Um certo formalismo é inerente a todo pensamento matemático: uma expressão (tautológica) como a + b = b + a é puramente formal, pois se aplica a quaisquer números ou objetos e não tem matéria determinada. O formalismo estende esse caráter puramente formal a todas as relações matemáticas e toma os números como formas convencionais. Estabelece-se assim uma fronteira rigorosa entre as matemáticas e a filosofia da matemática: a redução dos sistemas matemáticos a meras construções formais permite evitar questões filosóficas complicadas, de corte metafísico, como a natureza dos números e o significado do "verdadeiro" e "falso" em matemática. Por essa razão, muitos matemáticos adotam o formalismo como mero expediente prático, sem aderir a ele expressamente. Na verdade, segundo o formalismo, não existem objetos matemáticos. A Matemática consiste apenas em axiomas, definições e teoremas, ou seja, em fórmulas. No limite, existem regras pelas quais se deduz uma fórmula a partir de uma outra. Mas as fórmulas não são acerca de coisa alguma: são apenas combinações de símbolos. É claro que os formalistas sabem que as fórmulas matemáticas se aplicam por vezes a problemas físicos. Quando se dá a uma fórmula uma interpretação física, ela ganha um significado, e pode então ser verdadeira ou falsa. Mas esta veracidade ou falsidade tem a ver com a própria interpretação física. Enquanto fórmula puramente matemática ela não tem significado nem valor lógico. Contra uma tal concepção, pelo que tem de nefasto para o pensamento, insurgiu-se Husserl em seu último grande esforço filosófico, consubstanciado na obra “A Crise da Ciência Européia e a Fenomenologia Transcendental” (abrev.: “Krisis”). [32]

4. Crítica fenomenológica do formalismo científico

Em linhas gerais, pode-se dizer quanto ao pensamento husserliano que irá partir de uma crítica aos limites impostos ao conhecimento pela filosofia de Descartes, Kant e Hegel, ao afirmar que o pensamento dos citados filósofos não era “rigoroso”, já que não consideravam devidamente em suas construções a subjetividade humana, focalizando apenas o objeto. Eles não se atinham ao fato de que as considerações acerca do objeto eram, elas mesmas, “construções mentais”. A subjetividade, enquanto consciência intencional, dirigida aos objetos, para Husserl, seria “a primeira verdade indubitável para se começar a pensar corretamente.” Daí ter ele defendido que, no processo de consideração da subjetividade humana, é necessário assumir uma “atitude fenomenológica”: já que o homem é um “ser no mundo” e, portanto, participante dele, deve assumir essa postura e se contrapor a uma “atitude natural”, que é aquela de ser “possuído pelo mundo”, desconfiando de toda e qualquer evidência ou obviedade, sejam aquelas do senso comum, sejam as das ciências, sendo essa a tarefa própria da filosofia. Não existe, portanto, para a fenomenologia, uma relação pura do sujeito com o objeto, visto que a relação entre o sujeito e o objeto é sempre intencional: o objeto se torna tal a partir do olhar do sujeito, um olhar que, para além da existência contingente de objetos em particular, capta sua essência, o que necessariamente lhe constitui, donde se falar em Wesenschau – literalmente, “visão da essência” ou, no sentido fenomenológico, intuição. Assim, para a Fenomenologia, o ser é um ser de relação, e não uma substância, como tradicionalmente vinha sendo pensado, desde os antigos gregos. Dessa forma, para ele, tanto o ser quanto o mundo só existem na relação ser-mundo, não fazendo sentido, portanto, como ressalta aquele que seria o maior dentre os seus muitos discípulos, caso não tivesse estabelecido uma dissidência, a saber, Martin Heidegger, no § 9 de Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriff,[33] entender-se o fenômeno estudado pela fenomenologia husserliana como uma aparência que oculta uma essência ininteligível, pois esse fenômeno é caracterizado pelo encontro mesmo entre uma consciência com o que para ela se revela do mundo, enquanto doadora de sentido e, logo, dá consistência de objeto a essas “revelações”.           
            O texto da “Krisis”, de 1936, vai apontar a rebeldia de Galileu frente ao intuicionismo espontâneo como a origem mesma das modernas ciências da natureza, por ele ter sido alguém que teve a idéia de aplicar à natureza física o mesmo método de objetivação aplicado na geometria, cujos traços fundamentais, segundo Husserl, são (1) a idealização e (2) a construção.
            Husserl (“Krisis”, § 9a), opõe o objeto intuitivamente dado aos objetos ideais da geometria, sendo que os primeiros são dados em um mundo circundante intuitivo, inexato, avesso à objetivação, ao contrário daquele mundo matemático, em que são objetivados, como verdades em si, “irrelativas”, ou seja, absolutas, por não serem relativas a algo, de que seriam a representação aproximada. No “mundo real” temos a experiência de corpos, com forma e conteúdo constituídos pelas qualidades sensíveis, quer dizer, pensáveis em uma certa gradação, como mais ou menos planos, retos ou circulares, e assim por diante – longe, portanto, da exatidão de uma forma geométrica. Essas coisas, reais, em todas as suas propriedades, estão sujeitas a uma certa oscilação, donde sua igualdade, postulada em uma função, tanto a si mesma como a outra coisa, ser puramente aproximativa, valendo o mesmo para as figuras, relações etc. O que significa esse caráter meramente aproximativo do mundo intuitivo? Ser ele subjetivo-relativo: o que parece reto a Pedro pode não sê-lo para Paulo. Essa subjetividade implica na inexatidão inscrita nesse mundo, onde nunca haverá verdade em si, válida para todos, objetivamente válida.  Logo, a geometria lida com um método idealizante, para operar com idéias, e não com coisas, o que requer a passagem das formas reais para as ideais, formas-limites, contruídas: no lugar de qualquer práxis real tem-se uma práxis ideal, do pensamento puro. O movimento de um ponto, por exemplo, produz uma reta, e o movimento circular da reta produz o círculo e assim por diante. Desse modo, consegue-se a exatidão que não há na práxis empírica, determinando aquelas formas em sua identidade absoluta, com propriedades absolutamente idênticas, determináveis de modo unívoco. Dadas as formas elementares, por uma operação sobre elas se constrói novas formas de maneira metódica, com um método que garante verdades para todos os que o praticarem. Ora, a estrutura literalmente circular desta forma de pensamento fica evidenciada quando propomos que se conceba o ponto como um círculo diminuto, tal como feito de início, na tentativa de forjar uma concepção geométrica mais fidedigna em relação às pesquisas da física quântica sobre a estrutura do real.
            Quanto a saber se haveria continuidade entre os dois mundos, aquele real e o ideal, Husserl entende que de maneira alguma – são domínios separados por um abismo, visto que o ideal não é um dos possíveis do real, obtidos pela variação imaginária das formas sensíveis (cf. “Krisis”, § 9, passim). Por isso que a reta será melhor representada como uma continuidade imaginária dos pontos em que se tocam a série de círculos que são os pontos, postos lado a lado, pois assim fica evidenciada a verdadeira descontinuidade, o “corte de Dedekind”, que a imagem da reta nos oculta.
            Com a ciência moderna, surge a idéia de uma natureza construtivamente determinada em todos os seus aspectos. Agora não se trata de aplicar a matemática à empiria, como já Platão – ou, antes dele, Pitágoras - o preconizara, mas sim idealizar a natureza, transformando-a em si em uma idéia, onde ela própria é idealizada, sob a direção da norma matemática, tornado-se ela mesma um múltiplo da matemática. E com isso, o mundo da vida intuitiva é substituído por um mundo matemático de idealidades, começando uma história de sobreposição deste à natureza pré-científica. As ciências exatas – que em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica” (abrev.: “Ideen”), III, §  18,  Husserl qualifica de “dogmáticas” – mascaram a trivialidade de que na vida cotidiana não encontramos correspondência com a idealidade, existentes em um espaço geométrico e em um tempo matematizado. Daí decorre a “alienação técnica das ciências”, a que se refere Husserl no § 9 lets. f, g, do texto da “Krisis”, com a busca desenfreada por fórmulas que nos permitam chegar a ver o ser verdadeiro da natureza, já anteriormente idealizada, fórmulas essa submetidas a uma algebrização, a qual, inicialmente, amplia as possibilidades do pensamento, tornando-o livre e purificado de qualquer referência intuitiva, com o que o desconecta do fundamento de validade, fonte originária de toda verdade.
            Nesse contexto, de fabricação da ciência, o cientista é mero operário ou, quando muito, um engenheiro, tal como já consta em “Ideen”, III – já o filósofo é caracterizado em “Krisis” como um “funcionário da humanidade”. Aos cientistas é que se referia Husserl, ao dizer que operam segundo regras de um jogo, enquanto o pensamento originário, o que confere sentido e verdade, “simbolizante”, imaginativo, fica excluído, em face do simbolismo formalista. Afastar tal alienação técnica, saindo dos signos exteriores para os conceitos, partindo da intuição, como preconiza Husserl, é acabar o “jogo” das operações meramente computacionais, com seu formalismo estéril.
            Com Hilbert, deu-se o impulso maior ao formalismo, em filosofia da aritmética, a qual ele pretendia demonstrar ser a base de toda a matemática, uma vez encontrada uma técnica por meio da qual se pudesse clarificar, de uma vez por todas, que a matemática estava livre de contradições, o que foi posto por terra pelo célebre teorema da incompletude de Gödel.[34]
Segundo Kant, as formas de cognição próprias ao ser humano predeterminam o conteúdo de nossos conhecimentos possíveis. Estamos presos a elas e delas não podemos sair para apreender "as coisas em si". Por exemplo, espaço e tempo não são "realidades", mas formas, internas (e inatas) à mente humana, nas quais enquadramos os dados que recebemos do real, de modo que nada percebemos fora do quadro espaço-temporal que nos é próprio. Do mesmo modo, há formas de pensamento lógico (categorias como "existência" e "inexistência") que também funcionam como filtros - e sabemos por antecipação que nada chegará a nosso conhecimento sem passar por esses filtros.
            Ainda segundo Kant, a ética deve limitar-se a emitir regras formais, sem matéria definida. Por "matéria" de um juízo ético Kant entende os bens ou males determinados, que ele recomenda ou proíbe. Uma "ética material" teria de provar logicamente a superioridade de certos bens sobre outros, o que para Kant é impossível. Regra ética formal é a que vale para quaisquer bens indeterminados. E se isso pode ser contestado em tema de ética, como efetivamente o tem sido, entre outros, por Max Scheler, com seu enfoque fenomenológico, assim como, em termos de ciência do direito, da perspectiva tão difundida de Hans Kelsen, que propõe a consideração dita científica (positivista) do Direito apenas como um conjunto de normas já dadas, a ser estudado por um sistema consistente de objetos puramente formais, sem discussão de seus conteúdos, é que se atingiria a possibilidade do conhecimento científico.
            Justamente contra essa perspectiva é que nos insurgimos, verberando argumentos como os que defendem, em filosofia da matemática, os intuicionista, Luitzen Brouwer a frente, tendo ao lado Henri Poncaré, e também Husserl, como antes dele o seu mestre, Weierstraß. A prática da matemática, para Brouwer, como explica Jairo José da Silva,[35]  “não se constituía na derivação de teoremas, no interior de uma lógica determinada a priori, como para os logicistas e formalistas, mas no exercício criativo de uma consciência matemática, limitada apenas ao princípio formal a que está sujeita toda construção, o tempo”. Assim, para o intuicionismo, enquanto vivência de uma consciência moldada pelo sentido interno, que é o tempo, a investigação matemática se dá em um processo temporal finito, mas que não é aprioristicamente limitado ou universalmente pré-determinado. Toda construção que extrapole a intuição fundamental é inexistente, mera forma fantasmagórica, concebida no espaço imaginário da consciência. Assim ocorre com os conjuntos infinitos, dos quais a matemática usa e abusa, sem que deles possa oferecer um verdadeiro conhecimento, posto que nenhuma totalidade de fato infinita pode ser efetivamente construída numa seqüência finita de momentos – e também por vivermos, até onde  nos é dado perceber, em um mundo materialmente finito, oriundo de um evento singularíssimo, o assim chamado “big bang”.
            A subjetividade transcendental, por seu turno, como bem demonstra Alexandre Fradique Morujão,[36] é quem vai pôr o mundo “entre parênteses”, por meio da redução fenomenológico-transcendental (a epoché do ceticismo pirrônico, com o significado que lhe atribuiu Husserl), depurando, assim, desse mundo (natural) o eu que é seu correlato intencional, visto que “(N)o sentido fenomenológico só há mundo para mim e só há eu na correlação mundana intencional”.[37] Isso porque o fenômeno, para a fenomenologia husserliana, é esse “correlato real ou possível de determinados modos de doação intencionais” (id. ib., p. 116), modo esses que são modos de doação do mundo – o qual, parafraseando a passagem bíblica, se precisa inicialmente perder para depois recuperá-lo, “ganhando-o”. Escapando do mundo pela epoché, seguida da redução fenomenológica, o eu, agora (mais) livre, pode lhe atribuir sentido, o que já exige que ele saia do solipsismo, de seu estado de mônada (como diria Leibniz), irredutivelmente fechada em si, abrindo-se para o “nós” ou pluralidade de “eus” que há em si, em cada um de nós.[38]  Por essa via, a reflexão fenomenológica, tal como atestam trabalhos ainda inéditos de Husserl,[39] chega a uma “totalidade absoluta das mônadas”, denominada “personalidade total” (na “Krisis”, § 55, pp. 191/192, linhas 39/01, há referência a “personalidades de ordens superiores”, com sentido crescentemente transcendental e, assim, absoluto), fundamento mais íntimo do eu transcendental, que é também um “eu”, só que de um tipo todo especial, por ser Deus, “intuível reflexivamente como uma ultra-realidade, supra-verdade e ultra em si”.[40]
            Ora, o conjunto de mônadas, que é uma “super-mônada”, a qual se pode se indicar com a denominação de “Deus”, há de ser concebido como este círculo, que foi reduzido ao “ponto” da geometria clássica, formado por uma infinidade de outros círculos ou “pontos”, as “rei” (plural de res, em latim, a causa jurídica, o litígio, que se traduz também por coisa) ou coisas que compõem a assim chamada re(i)alidade, todas passíveis de serem concebidas abstratamente como círculos que são abrangidos por um círculo maior, no qual, portanto, são imanentes, mas que, por este círculo maior a eles não se reduzir, ele seria, em relação aos círculos menores, transcendente.[41]

5. Proposta de reordenação das formas de conhecimento legitimando aquelas de natureza poético-normativa ou “escatológicas”.

Eis que assim nos pomos em condição de propor os vetores de investigação da totalidade do real, como uma parte do imaginário, dividido por um eixo horizontal atravessado por um outro, vertical, onde na parte superior está o transcendente, assim como na parte inferior está o imanente. Já na parte anterior, do eixo horizontal, tem-se a investigação causal-explicativa, praticada pelas ciências naturais, e que também pode ser dita arqueológica, no sentido em que Michel Foucault propôs uma arqueologia do saber,[42] ou também “arcôntica” (archontisch), como refere Heidegger,[43] desde que praticada no plano histórico, transcendente (parte superior esquerda do diagrama proposto), ao invés daquele natural, imanente (parte inferior esquerda o mesmo). E na parte posterior deste mesmo eixo (portanto, à direita do diagrama) é que se tem localizada a investigação ou elaboração mais puramente imaginativa, voltada não para a busca retrospectiva de causas originárias, as “archai” (do grego arché, que quer dizer “causa”, sendo termo originário do vocabulário jurídico-político, pois significa também o poder de decidir do arc[h]onte), mas sim para a formulação prospectiva, escatológica,[44]  do sentido, tal como se faz no âmbito da poética, seja ela artística, ou (também) teológica, tal como refere Giambattista Vico, com uma conotação igualmente jurídica, ou jurídico-política, “civil”,[45] sendo esta última de se considerar como imanente (parte inferior à direita do diagrama proposto), enquanto aquelas são transcendentes (parte superior à direita).
Em meados do século XX, a obra de Theodor Viehweg, “Tópica e Jurisprudência” (melhor traduzindo Topik und Juriprudenz: Tópica e Ciência do Direito) teve grande impacto na filosofia jurídica e, mesmo, na filosofia em geral, ao postular um retorno a Vico para resgatar a racionalidade argumentativa ínsita a disciplinas, como a tópica e a retórica, desacreditadas pelo racionalismo cientificista da (primeira) modernidade, então caído ele próprio em descrédito, em face dos horrores das duas grandes guerras mundiais, impulsionadas pelo avanço do conhecimento, que ao invés de trazer a esperada melhoria das condições da humanidade a estava, então como ainda agora, ameaçando com a extinção. É preciso que se retorne mais uma vez a Vico e aos que, tanto antes, como depois dele, postularam uma defesa da racionalidade contemplando o solo mesmo de onde ela brota, o húmus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para a existência desse ser em aberto, livre, que somos.
Do que faz falta, então, é de promover uma (re)aproximação da teoria a um modo antes poético, do que científico e mesmo filosófico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e sua exposição. Com isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os estudiosos de filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os filósofos, normalmente aqueles do passado e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos, que ousaram, ou ainda ousam, elaborar um pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui, entenda-se no duplo sentido da palavra, em que este pensamento tanto aparece como original, originário do próprio sujeito, como apropriado ao que se pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui proposto, realizar um trabalho teórico que mais se aproxima de parâmetros científicos, sejam das ciências humanas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá, comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, entendemos que significa desviar-se do que mais direta e imediatamente interessa tratar em filosofia, desviando-se para um caminho técnico, no qual se exaure o modo mais originário de questionamento filosófico, que é metafísico ou, como acima referido, “archôntico”, enquanto imanente, e escatológico, quando aberto ao transcendente, à discussão do sentido da existência de si, ou seja da vida e da morte, bem como dos demais e do próprio mundo, tal como normalmente é feito pelo simbolismo “mitopoético” de religiões e artes em geral. De certa maneira, estaremos assim retomando uma perspectiva suscitada ainda na passagem do séc. XIX para o seguinte pelo filósofo cearense Farias Brito, que entendia deveriam filosofia, ciência e poesia fundirem-se em uma só, enquanto princípio ativo (e regenerador) do pensamento, dirigindo-o, respectivamente, para o bem, o verdadeiro e o belo.[46]  
Assim, mesmo sendo da filosofia que resultou a postura científica de tratar as questões (sua epistéme, para dizer em grego, empregando expressão hoje consagrada no jargão filosófico), aquilo que se pretenda conhecer/saber pela filosofia sobre este aspecto de último referido, é justamente o que não interessa às ciências, do que elas não se ocupam, até porque as põe em questão: elas próprias, seus objetivos, para além do conhecimento que fornecem e das possibilidades de ação/interação/alteração do que estudam. Mesmo uma “ciência da ciência” não levaria a uma tal filosofia, pois não se voltaria para pensar o que aqui se propõe deva acolher uma nova teoria, metafilosófica, (mito)poética,  aqui qualificada de “imaginária”, por imaginativa – situada naquele plano que Henry Courbin denominou de “imaginal” -, havendo urgência nesse acolhimento, perfeitamente factível, tendo em vista que a filosofia já esteve voltada para esse modo de pensar e o levava em conta – aliás, em alta conta, como atesta, por exemplo, o que nos restou de obras como a Poética de Aristóteles, a partir da qual Olavo de Carvalho propõe se deva (re)ler o conjunto desta obra fundadora do pensamento ocidental,[47] ou já na chamada época moderna colocações como aquelas antes referidas de Vico -, antes de se perder e exaurir nas ciências. Inclusive, a própria palavra “filosofia, etimologicamente, fora utilizada de maneira esparsa por “Pré-Socráticos” como Heráclito de Éfeso e Pitágoras (membros da Escola dita Pitagórica, localizada na região da atual Sicília), mas só foi efetivamente difundida a partir de Atenas, graças a Sócrates e seus seguidores, havendo nela a philia, referência a um anelo, uma aspiração, por uma forma extra-ordinária de saber, a sophia, que não é da ordem natural apenas, como aquele dos que, a exemplo de Thales, Parmênides, Zenão, Leucipo, Demócrito,   investigavam o fundamento (arché) ou fundamentos (archai) da physis, sobre ela elaborando um discurso logos – em geral, da maneira que então se entendia ser a mais adequada para a transmissão e fixação do saber,ou seja,em versos, quer dizer, poeticamente -, donde serem melhor denominados, como o fez Aristóteles na Metafísica, “fisiólogos”, physiologoi  (de physis + logos, pl. logoi), até porque dentre eles se tem contemporâneos e pósteros de Sócrates.
A urgência desse pensamento em nosso tempo se explica justamente em razão do que nele vem-se produzindo, sob a influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e o pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez mais remete ao pensamento que a filosofia tornou científico, e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e desde já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu embrionariamente enquanto técnica, faltando apenas o encontro histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a religião monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito homem, o cristianismo, para que se verificassem os pressupostos mais importantes, no plano ideológico, imaginário, de seu completo desenvolvimento – eis que se tem uma origem metafísica teológica da ciência e de sua(s) técnica(s).[48]
Para Platão, por exemplo, a filosofia seria "epistéme epistemés", "ciência da ciência", enquanto Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como "epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento dos primeiros princípios e causas explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no texto "Que é isto, a filosofia?", recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa vocacionada e competente para uma determinada atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e transcendentes, que, no princípio do livro apenas citado de Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer a inveja deles. Uma outra forma de conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars. Então, a epistéme seria algo intermediário entre essas duas formas de conhecimento, por referir-se à atividade de conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos e, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os dois filósofos gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje maiores entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e Aristóteles, na já citada "Metafísica (Livro I ou alfa, 2). Temos que retornar sempre a esse momento espantoso, em que o ser se mostra, o qual nos levou a falar e a nos pormos a caminho de uma busca de explicações, como que para nos assegurarmos na vida, tentando aprisionar o que, na verdade, nos fez prisioneiros, sem percebermos, pois assim entramos em uma fantasia de permanência, impedindo-nos de aproveitar bem a oportunidade que temos de, simplesmente, sermos (experiências do ser).
É certo que antes do saber científico afirmar sua superioridade, em termos pragmáticos, frente aos demais, inclusive a filosofia – o saber justamente  de onde as ciências em geral foram colher seu mais forte impulso inicial, adotando postulados como este apenas mencionado, da contingência e falibilidade do conhecimento -, foi necessário superar o predomínio de um tipo de conhecimento  que mesmo tendo se aproveitado bastante da filosofia, até o ponto de tê-la como sua “serva”, veio a abandoná-la nos momentos cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé. Este saber é o da teologia, ou o conhecimento de natureza religiosa amparado teo-logicamente, que irá por muito tempo cercear o desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista, própria da ciência. Contudo, a ruptura que a modernidade trará com a supremacia do pensamento teológico, no Ocidente, foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por teólogos mal-compreendidos em seu tempo, como Roger Bacon (séc. XIII), com sua insistência no valor da experimentação para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e britânico como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai destacar alguns aspectos mais salientes de seu pensamento, que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), sendo que entre ambos avulta a figura do antes referido John Duns Scot, a quem se pode conceder os maiores créditos pela introdução de uma perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente transcendental – e, logo, moderna –,[49] a ser desenvolvida posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a teologia, por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para citar apenas três dos maiores responsáveis pelo aprofundamento do que se pode denominar uma “metafísica do possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para Avicena (Ibn-Sina).[50]

6. Interlúdio Metafísico-Teológico

            A teologia (judaico-)cristã da onipotência divina, ao postular um Deus que é pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir  uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior ao princípio de não-contradição. Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade possível.
A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica do possível, que é também uma teologia,[51] mas sem a referência dogmática a um credo religioso qualquer, ambas com um caráter falibilista, tal como recentemente se reconhece às próprias ciências, o que a torna possível em um outro sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como são os resultados científicos, a respeito de nosso significado cósmico – que se produza, então, uma teologia esvaziada de qualquer conteúdo religioso específico, para ser a teologia adequada a nossos tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de superar esse predomínio, salvando a humanidade de si mesma, enquanto o saber salvífico, soteriológico, que sempre desde a origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões,[52] e não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz também.[53] busca das estruturas fundamentais de toda realidade inteligível, que não seriam, entretanto, consideradas como estruturas transcendentais, enquanto condição mesma da inteligibilidade, nem tampouco estruturas transcendentes, tidas como originárias de algum plano meta-físico ou teológico.
            Centrando-nos no entendimento do que seriam tais estruturas, tem-se que a estruturalidade implica a negação do simples ou da falta de conexão e, neste sentido intuitivo, estrutura constitui o conceito originário ou o fator primeiro de qualquer empreendimento teórico, sua arkhé, para referir a noção fundamental – e fundante – da filosofia.
            No horizonte de uma tal elaboração, verifica-se a ausência de uma distinção clara entre metafísica e teologia, até por estarem ambas voltadas para o estudo da realidade como uma totalidade (de sentido), o que teria contribuído para obscurecer, na modernidade, os pressupostos dogmático-teológicos ou “dogmatológicos” nela estruturalmente operantes, retomados de maneira também indevidamente explicitada no que se pode considerar tentativas contemporâneas de refundação da ontologia enquanto “ciência primeira” (protê epistéme) na fenomenologia, com Husserl e, principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a “hermenêutica da facticidade”, conforme se pretende demonstrar, como também no modo de desenvolvimento das “ciências derivadas”, ou ciências propriamente ditas.
            Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio Heidegger, um retorno às origens gregas da metafísica, tal como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles, o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza como reunidas em uma unidade dinâmica, finita e ordenada, expressa pela linguagem. Neste sentido, pode-se dizer que aí culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em que inventa um saber racional, capaz de dar uma resposta unitária aos problemas suscitados pela tradição anterior, problemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao da própria razão humana. O irredutível de tais problemas, afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão imediata de captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer escapar a todo intento de delimitação e que,  precisamente por isso, só podemos designar como o comum a tudo, e, particularmente, como o comum à realidade do mundo frente ao homem e à realidade do pensamento no homem, isto é, como o comum à natureza e à razão. Por causa da impossibilidade de sua delimitação, a realidade do ser não pode ser objeto de nenhuma ciência particular, mas sim de uma ciência primeira, enquanto se ocupa do que é prévio e pressuposto em todas as demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas determinações do ser no que é dado: a realidade irredutível do ser.
            Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser ciência em um sentido totalmente diverso de qualquer outra, sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época chamavam “teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito reunidos por Teofrasto, na organização do corpus  essencial da obra aristotélica, o organon, “após (os livros d)a física” (meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua matéria -, definida como a ciência que trata do ser enquanto ser, i. e., que trata de sua realidade mesma - cf. Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.
            Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão e a natureza, unidade bifronte de um único dinamismo dado em sua finitude, Aristóteles funde a ciência da realidade do ser, inaugurando o que se pode denominar  uma metafísica do real.
            O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um Deus infinito, iria ter sérios problemas na hora de confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus infinito é tudo menos algo dado, e se esse Deus infinito é tido como o maximamente real ou o real por antonomásia, o real em si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão será seriamente ameaçada. As grandes sínteses teológicas medievais, especialmente aquela mais característica e acatada, a de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade recorrendo ao escalonamento dos graus metafísicos da realidade, onde Deus possuiria um grau máximo,  infinito,  absoluto, enquanto a realidade das coisas criadas seria finita, relativa e Dele dependente. Isto supunha, em contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante limitado, acesso do homem ao conhecimento da realidade de Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter uma noção aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito as perfeições da natureza (idéias) e os valores da razão (fins), obtendo assim um vislumbre de quais poderiam ser os atributos da divindade. Esta solução, que implicava em atribuir a Deus caracteres próprios do binômio natureza-razão, particularmente os arquétipos naturais (idéias divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a Tomás de Aquino salvar o essencial da metafísica aristotélica e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos fossem parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era a metafísica do ser real.
            Os teólogos críticos da escolástica tardia, principalmente Duns Scot e, de uma maneira ainda mais radical, Guilherme de Ockham, rechaçaram abertamente este procedimento por considerarem que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no defeito oposto, quer dizer, desprezava a infinitude própria da divindade, atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins (racionais) que só podiam limitar Sua liberdade infinita, isto é, sua onipotência absoluta. Assim, Duns Scot iria desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao interpretá-la em um sentido formalista, que excluía expressamente sua aplicação à existência, com o que cortava todo aceso racional à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver qualquer coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas agora por sua condição de objetos mentais do pensamento divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o ser como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria ainda mais longe, ao pretender para Deus uma transcendência tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência racional e O definia como pura onipotência infinita, para além de toda razão e toda natureza, consolidando desse modo a fratura escotista entre Deus e o binômio razão/natureza, que abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna. Com efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto ockhamista, segundo o qual nada há de impossível para a vontade divina, situada para além de todo rasgo de racionalidade e de toda sabedoria mundana. Isto porque, sendo a vontade divina absolutamente livre, não há nada na ordem atual da criação que possa indicar de um modo ou outro a essência de seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto é, a ordem da natureza racional,  não é mais que uma ordem qualquer entre as infinitas ordens possíveis, nem têm nada em comum com a essência divina do que pudera ter qualquer outra, imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mundo o homem foi criado à imagem de Deus, não será na razão humana onde se pode achar o fundamento dessa semelhança, mas sim no mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade livre do homem, tão livre como a vontade divina frente a qualquer constrição racional que pudesse empanar ou limitar sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação e a renúncia a Deus. O ato da vontade humana pelo qual escolhe salvar-se ou condenar-se  -  o  mais  transcendente, portanto, na vida do homem -, se exerce, pois, à margem de qualquer instância racional ou natural, e já não tem lugar no processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas sim no isolamento interior da privacidade de cada um (consciência). Em outros termos, esta escolha não pode encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a racionalidade, e só poderá de agora em diante ser questão de fé, onde a fé – como a graça – já não implicará um reforço salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação expressa por parte do homem de sua própria razão e de sua essência humana. Deste modo, tanto Duns Scot como, sobretudo, Guilherme de Ockham, instauram uma concepção de um Deus infinitamente transcendente que se situa radicalmente para além de um mundo criado, com o qual deixa de ter qualquer coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre ambos, como se fossem conjuntos infinitamente disjuntos. Impossível, por tanto, qualquer conhecimento racional desse Deus infinitamente não racional por parte da razão humana. O único laço entre o mundo e Deus se encontra – fora da natureza e da razão – na recôndita consciência espiritual do ser humano, sob a forma de uma vontade absolutamente não constrangível por qualquer valor racional em seu ato de aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se denomina . A relação do homem com Deus,  daí em diante, deverá se desenvolver nesse âmbito irracional  – e,  logo, privado –, enquanto a razão comum humana deverá renunciar a todo intento de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-se a seu objeto imediato, isto é, o mundo criado que se acha frente a si e que carece de toda relação com seu Criador.
            A teologia da onipotência divina implica, como parece evidente, uma revisão drástica dos pressupostos filosóficos precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade do binômio razão/natureza (no caso de Aristóteles), ou do trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer parte desse trinômio e escapa por inteiro do binômio restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de mero caso fático entre uma infinitude de mundos possíveis, e cuja realidade se vê condenada à precariedade irremissível de não ter outro fundamento para sua existência que não a pura arbitrariedade divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos evidentes que O impeçam de criar outros quaisquer dentre os infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é pura onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste modo, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível. Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de realidade em beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta última se faz co-extensível à de ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é, a não ser mais que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir  uma realidade puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas maneiras, para contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime definido pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e exclusivo modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre inexata, em certo sentido submetida e também superior ao princípio de não-contradição.
            Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de paradigma de toda verdade possível.
            A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto ser, aquela ciência, de estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a partir das outras ciências, tenha de adotar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica do possível, que é (ou contém) também uma teologia, mas sem a referência dogmática a um credo religioso qualquer, o que a torna possível em um outro sentido, agora epistemológico, aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável como são os resultados científicos, a respeito de nosso significado cósmico.
Pelo exposto se pode compreender porque Guilherme de Ockham é considerado um dos introdutores do que em sua época já se chamava via moderna, que conduz o pensamento filosófico para além da Escolástica medieval, diretamente na ambiência moderna. Dele vamos retomar aqui a noção de unidade do saber, o que propomos que se denomine "perspectiva integradora", sendo aquela que vem predominando em epistemologia, à medida que se vai superando os últimos resquícios metafísicos e teológicos. Tais resquícios se fariam presentes na perspectiva que é própria das ciências modernas em seus primórdios, quando davam margem a que se difundisse, de maneira triunfalista, a crença na definitividade dos conhecimentos por meio dela obtidos, por baseados na observação de regularidades na ocorrência de fatos que permitiam elaborar leis gerais explicativas. Isso por que tais fatos eram recortados, do conjunto da realidade, de maneira a permitir um tratamento analítico, que os tornava objetos reduzidos à sua localização espaço-temporal, de acordo com o procedimento preconizado exemplarmente por Descartes. A derrocada do resultado principal da aplicação deste modelo epistemológico, a física mecanicista (copérnico-kepler-galileico-) newtoniana, com a emergência da física quântica e relativista foi, sem dúvida, um marco. A partir daí as ciências voltam a ter história, a ser um conhecimento em evolução, melhorando à medida em que se abre para aprender com os erros, ao invés de, precipitadamente, inferir leis definitivas de padrões observados em escala limitada. Por outro lado, pode-se perfeitamente supor que os avanços no conhecimento da matéria viva, chamaram a atenção para uma descontinuidade nos níveis de explicação, apontando um limite para a capacidade de previsão, tomando como referência a uniformidade de fenômenos observados no âmbito físico e químico, tal como se fossem partes de um grande mecanismo.
É assim que Versalius, o pai da anatomia, na obra "Fábrica do Corpo Humano" (De humani corporis fabrica), obra publicada no mesmo ano daquela, literalmente, revolucionária, de Copérnico, a saber, 1542, irá - em sentido, de certa forma, oposto a este, que deslocou o homem e sua habitação do centro do universo -, postular uma distinção radical do ser humano em relação a outros seres vivos e à ordem cósmica, tal como preconizava a medicina, desde Hipócrates e Galeno, donde a necessidade de se praticar o estudo da anatomia assim como nos humanos ela se apresenta, ao invés de tentar compreendê-la por analogia com outros seres, nos quais se praticava a dissecação. Em seguida, com Harvey, a anatomia se torna "animata", ou seja, fisiologia (ou anátomo-fisiologia), sendo o próximo passo importante, em termos epistemológicos, aquele que foi dado por aqueles estudiosos, mais recentes, que passaram a enfatizar a importância do estudo das patologias, isto é, dos estados disfuncionais, para entender o funcionamento e as funções normais dos organismos. Dentre esses, vale destacar, com o autor de “O Normal e o Patológico”, Georges Canguilhem, os estudos sobre a diabete, para entender o funcionamento das glândulas supra-renais.
            Com o desenvolvimento da fisiologia, impulsionado pelo conhecimento das patologias, algo literalmente vital para nós, como é a saúde, passa a ser tratado de maneira anti-metafísica, não-ontológica, pois agora a doença não é um ser (mal) que invade o doente, mas um estado alterado em relação ao normal, que é uma das possibilidades contidas nesse estado normal, quando ocorre algum desgaste ou ineficiência em seu funcionamento -  a rigor, não chegaria nem a ser, em sentido literal, um estado anormal, no sentido de "anômalo", o estado patológico, pois esse estado também segue um "nomos", uma norma, só que diversa daquela que rege o estado dito "normal", ou são, sendo mesmo por esse motivo que se investiga a anomalia, buscando enquadrá-la em regras explicativas, a um só tempo, da anormalidade e da normalidade. De todo modo, ao contrário do que ocorre com a matéria inanimada, há uma oscilação constante na matéria viva, entre estados de excesso, carência e equilíbrio, ainda que instável, sendo daí que se extrai a noção de patologia, de disfunção, por considerarmos, nós os que vivemos e somos conscientes disso, ao estudarmos-nos, ser funcional o que nos mantém vivos e sem sofrimento, não havendo estados patológicos da matéria inanimada, pelo simples fato de que ela não pode, como nós, morrer.
            Só assumindo uma perspectiva externa - e aí fazendo retornar, sub-repticiamente, à postura metafísica e teológica, com o seu ponto de vista do absoluto - é que se pode afirmar a continuidade entre os estados físicos, químicos, físico-químicos, e aqueles biológicos ou, mesmo, bioquímicos, moleculares. Dessa perspectiva, a diferença entre a saúde e a doença, e mesmo entre a vida e morte, é meramente quantitativa, sendo em todos os casos estados da matéria de que se trata, com maior ou menor complexidade, abordando sua organização. Esta é uma perspectiva inorgânica e mecanicista da vida. Pode-se, entretanto, adotar uma concepção inversa, vitalista, não só do que é vivo como do próprio universo, ou seja, concebê-lo da perspectiva da vida que nele se formou e que, em certo momento, gera a consciência, graças a uma certa maneira de operar um tipo de células, aquelas nervosas, que nos permitem uma forma de acoplamento com o meio circundante extremamente favorável à nossa manutenção nele.
            Nesta última perspectiva, há sentido no universo e esse sentido é a vida, não havendo sentido na vida para além de si mesma – pelo menos, para os seres vivos. A filosofia, então, pode ser posta a serviço da vida, nesse ser vivo que somos nós, conscientes do fim da vida, o que pode nos tornar a vida sem sentido, cabendo à filosofia velar pela continuidade da vida nesse ser que a altera e questiona, altera-se questionando-a, tendo desenvolvido um conhecimento tal e uma organização social de tamanha complexidade e poderio que pode destruí-lo, rápida ou lentamente. E na base desse conhecimento está uma epistemologia, havendo ainda uma base biológica, vitalista, para a epistemologia, pois ela, como todo conhecimento, é uma função vital dos seres humanos.
            Para investigar as bases biológicas do conhecimento, segundo o neurofisiólogo mineiro Nelson Vaz,[54] na esteira de Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e outros, precisa-se incrementar o estudo de uma dimensão intermediária entre a fisiologia e a filogênese. No caso da primeira, se tem um estudo em nível celular e molecular, numa escala temporal extremamente rápida, variando de milisegundos, na transmissão neuronal a alguns poucos dias, na cicatrização, passando por algumas horas, na digestão. Já os fenômenos da filogênese são medidos em milhões ou centenas de milhões de anos, como a "explosão" de vida do Período Cambriano, em que surgiram nossos antepassados mais remotos, metazoários, ou as extinções em massa de seres vivos, entre os Períodos Permiano e Triássico. Entre esse dois extremos, muito lentos e muito rápidos, encontra-se o nível que agora precisaria ser melhor explorado, e que é o nosso nível ou escala mais próxima, aquela da chamada ontogênese, em que se tem os fenômenos com duração de semanas, meses e anos, a começar pela constituição do zigoto, passando pelo desenvolvimento embrionário com sua organogênese, até a reprodução, envelhecimento e morte. E o interessante é que o avanço científico  em biologia, especialmente em genética, vem demonstrando que seres vivos aparentemente tão distantes, como os mamíferos e os insetos, compartilham muitos mecanismos morfogênicos na formação do embrião, valendo-se, muitas vezes, de células muito similares, sem falar na similitude genética entre seres tão diversos como seres humanos e ratos: se antes nos espantávamos e maravilhávamos com a aparente diversidade da vida, hoje é a sua uniformidade em um nível mais profundo o que nos intriga. E assim, somos levados novamente à disposição que motivou os primeiros filósofos, bem como impulsionados a pensar sobre o que já se encontra desde a origem escondido no interior do código genético, e se revela em toda sua diversidade no contato com o exterior, alterando-o e alterando-se, continuamente, enquanto puder.
            Há, então, necessidade de que se pratique de forma tão intensa quanto possível a interdisciplinaridade, o que exige, então, que tenhamos um paradigma unificador, uma perspectiva integradora em epistemologia, capaz de articular explicações de natureza sociológica, econômica, jurídica, biológica, filosófica e, até, teológica. Um paradigma com essa característica “uni-totalizante” (Ein- und Allheit, para empregar expressão que remonta a Schelling, filósofo idealista alemão do séc. XIX) é o que se vem desenvolvendo por aqueles, como Edgar Morin,  na esteira de Ilya Prigogine, que defendem a superação do tradicional paradigma simplificador das ciências clássicas, modernas, em favor de um paradigma da complexidade, em que se inserem “ciências transclássicas”, pós-modernas, como são a cibernética e a teoria de sistemas. Tratam-se de teorias holísticas, de aplicação generalizada no âmbito de ciências formais e empíricas, tanto naturais como sociais, e que toma como distinção fundamental não mais aquela entre sujeito-do-conhecimento-como-observador-objetivo e objeto-do-conhecimento-observado-independentemente, mas sim outras, como aquela entre “sistema” e seu “meio ambiente”, para explicar tudo a partir dessa distinção, entre o que pertence a determinado sistema e o que está fora, no ambiente circundante, embora circule dentro do sistema – que não é fechado “para” e sim “com” o ambiente.
            É de todo conveniente o emprego de novas categorias em estudos que levam em conta a complexidade da realidade estudada, considerando que a mesma não existe para nós independentemente de nossa observação dela. Só assim poderemos, igualmente, enfrentar melhor as questões éticas e jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência vem, ao mesmo tempo, revelando e tornando mais complexo. Um aspecto, porém, que traz certo desconforto, quando propomos a adoção de um paradigma novo, sistêmico, para melhor estudar o mundo complexo em que nos encontramos, é a suspeita que esse tipo de abordagem suscita, da perspectiva normativa de teorias ditas “críticas”, como é (ou foi) aquela habermasiana. Uma teoria sistêmica, efetivamente, não se propõe a avaliar aquilo que estuda, mas fornecer, a partir de suas observações - e observações não só do que se observa, mas também dos observadores, que são “observadores/concebedores” de “objetos/concebidos”, nos termos expressivos empregados por Morin -,[55] descrições mais acuradas e explicações do mundo e das teorias que construirmos para observá-lo/”construi-lo”, o que, afinal de contas, deve anteceder o momento da crítica valorativa, para propor alternativas à (re)construção do mundo pelo direito, a ética, e também a economia, a política e, sobretudo, a própria ciência. O que buscamos, então, é o que Husserl denominava “princípio dos princípios”, uma idéia regulativa, no sentido kantiano, a qual, como esclarece Manfredo Araújo de Oliveira, com apoio no filósofo frankfurtiano K.-O. Apel, “quer ser efetivada, o que significa dizer que para isso é necessário que a razão ética entre em contato com outras ‘formas de racionalidade’. Numa palavra, a dimensão ética, na medida em que se efetiva historicamente, tem que entrar em combinação com a racionalidade sistêmico-funcional dos sistemas sociais e das instituições e com a racionalidade estratégica”.[56]
            Entretanto, há um problema bastante grave que se pode apontar, em concepções normativas da racionalidade, como é aquela hoje tão difundida e apreciada, de Habermas, por mais que endosse e pratique a recomendação que acabamos de referir, sem que evite um certo maniqueísmo, quando distingue uma “boa” e uma “má” razão - a comunicativa e a estratégica: é que elas são formuladas de uma perspectiva transcendental, ainda que se diga pragmática, de “fora da realidade”, donde terminarem resvalando numa postura irracional, pois não são capazes de perceberem a unidade subjacente às diversas formas de pensar e agir racionalmente. É por isso que, filosoficamente, a postura dialética do “idealismo objetivo” (Dilthey), tal como foi adotada na modernidade por Hegel - e, contemporaneamente, por Vittorio Hösle, Carlos V. Cirne Lima, Manfredo A. de Oliveira, dentre outros -, apresenta-se como mais frutífera e conseqüente, apesar de sua “fé”, que não se assume como tal, na possibilidade de uma fundamentação última de nosso conhecimento da realidade – e, logo, na possibilidade de conhecermos verdadeira e definitivamente o que as coisas são, seu ser, sem garantia de que este seja o ser, pura e simplesmente.
            Habermas adota uma postura que denomina “pós-metafísica”, de acordo com a qual só as ciências estão aptas a elaborar assertivas com valor heurístico sobre os diversos objetos de conhecimento, ficando a filosofia restrita ao estudo de segunda mão, que tem as ciências - ou, mais precisamente, o seu procedimento cognitivo - como sentido e objeto. Com tal postura, Habermas não escapa da metafísica, pois termina ficando preso ao que Heidegger denominou “metafísica da subjetividade”, a qual dá sustentação ao projeto de domínio técnico-científico da realidade, responsável maior pelos problemas éticos, jurídicos, políticos, sociais, econômicos e ecológicos - em sentido amplo, para envolver o que Edgar Morin denomina “ecologia da ação”,[57] a qual já se coloca no plano da sociedade, em que não podemos prever as conseqüências de nossas próprias ações - com que nos deparamos atualmente.
            É preciso, então, para abordar corretamente a problemática aqui delineada, que se supere tal postura, tipicamente moderna - e, portanto, ultrapassada -, o que, em termos epistemológicos, requer a substituição do paradigma formalista, baseado na distinção entre sujeito e objeto(s) do conhecimento, e, em termos filosoficamente mais gerais, a ultrapassagem do humanismo, tal como indicado por Heidegger em sua célebre carta a Jean Beaufret a esse respeito, a “Carta sobre o Humanismo”. Que as indicações aqui fornecidas possam servir para a elaboração desse caminho para o pensamento, tão dificultoso quanto urgente.
            Com isso, pretendemos minorar os efeitos desastrosos do esquecimento metafísico do ser que somos na operação meramente técnica de uma engrenagem em que somos as peças, pensando sermos meros operadores, no que se mostra de fundamental importância a crítica que a perspectiva fenomenológica de Husserl e também aquela de seu genial discípulo Martin Heidegger permite que se empreenda ao formalismo instalado no pensamento moderno, pelo exarcebamento do modo conceitualista e objetificante de lidar com o conhecimento, em geral, sendo de se apontar o exemplo bem característico do que se dá no campo do Direito.[58] Fica, assim, estabelecido o desafio, a ser enfrentado aqui de maneira decidida, de saber em que medida algo como um retorno à situação concreta, fática, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal), com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)” -, pode dar ensejo a uma recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou re-orientação, na busca de sentido para as ações humanas a serem, então, devidamente reguladas pelo Direito, com uma pretensão justificada de obediência generalizada, nas condições adversas da atualidade. Cabe a todos os que nos preocupamos com o que pode resulta da quadra histórica de crise que estamos vivendo, já há bastante tempo –  sabe-se lá por quanto tempo ainda -, assumir uma parte de tal tarefa, de proporções gigantesca, percebendo o quanto é urgente e necessária e, se é assim, há de ser também possível dela nos desincumbirmos.
            Trata-se, portanto, de questionar a concepção clássica, típica da metafísica do real, de que o conhecimento é uma cópia da realidade e será verdadeiro na medida em seja uma representação fiel dela -  a crítica dessa metafísica é feita por autores do lado de cá e de lá o Oceano Atlântico, como se pode exemplificar,  no primeiro caso, com Richard Rorty, e no segundo caso, com os chamados “filósofos da diferença”, a começar por Heidegger, e seguindo-se com Deleuze, Derrida etc.[59] É uma tal concepção de metafísica, enquanto metafísica do real, com sua ontologia substancialista, que vem rejeitada em posições epistemológicas positivistas e outras, como as materialistas e fenomenológicas, assim como permanece aceita naquela outra importante tradição filosófica, mais antiga que estas outras, mas que ainda hoje tem seus representantes, a saber, aquela oriunda do tomismo, embora as demais posições filosóficas, inevitavelmente, tenham de dar alguma respostas às incontornáveis questões metafísicas, tal como aqui se as concebe, considerando que evitá-las, adotando uma forma de suspensão do juízo ceticista, é também uma das respostas possíveis. E. J. Lowe diz-nos que,[60]  ao contrário das ciências, que se ocupam de estabelecer o que é, não o que tem de ser ou o que pode ser (mas não é), a metafísica lida com possibilidades. Daí que, é preciso, de alguma maneira, delimitar o escopo do possível, para podemos, ao menos, esperar que consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real,  da maneira tentativa e aproximada que é própria da ciência, tal como entendida contemporaneamente. A tese do autor apenas referido é a de que a metafísica será possível na medida em que se atenha a lidar com possibilidades – seja, portanto, possibilista, tal como aqui preconizado. Um apanhado didático dos desenvolvimentos recentes em metafísica encontra-se em Cynthia Macdonald.[61] Sua abordagem se situa no âmbito da recuperação da metafísica em uma chave analítica, na qual é bastante representativa a contribuição do oxfordiano contemporâneo Peter Strawson.[62] Já um representante proeminente da vertente materialista contemporânea é Alain Badiou.[63] Por fim, na perspectiva neotomista, podemos referir o pensamento do brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, o (justamente) festejado (e pranteado) Pe. Vaz, que deu ensejo à formação de verdadeira Escola, a partir de seu longo professorado em Belo Horizonte (MG).[64]
            Eis que nos defrontamos aqui com uma questão que, tradicionalmente, pertence ao campo que se designou, com base em uma classificação de certas obras de Aristóteles, metafísica. Como é corrente, o termo “metafísica” é oriundo de uma classificação de obras de Aristóteles versando sobre sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde a denominação metá, isto é, “após”, ta physika, ou seja, “da física”. Já Kant, porém, questionou se seria uma mera coincidência que uma tal denominação se adequasse tão bem ao sentido mesmo da investigação metafísica, voltada para questões que se situam para além daquelas tratadas no plano da realidade palpável, física. E, de fato, há trabalhos que demonstram estar presente no pensamento aristotélico, se não o termo, a idéia a que ele corresponde.[65]
            A metafísica trata de questões das quais não se ocupam as ciências, enquanto formas de conhecimento que ora se voltam para a construção de um saber com base em experiências feitas no contato com a realidade, com o que existe, e que por isso são ditas “empíricas”; ora elaboram o conhecimento advindo da consistência de suas proposições entre si mesmas, sem referência a quaisquer objetos reais, mas apenas àqueles abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s), donde justamente serem qualificadas de “formais”. Na realidade, estes “tipos puros” de conhecimentos científicos se mesclam em maior ou menor medida, restando ainda a possibilidade e, mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis, pois o possível é necessariamente possível, assim como o necessário sempre é possivelmente necessário, já que esta é a condição do que existe sem ser em si mesmo, o que só é o ser que não depende de nenhuma causa para existir, o qual se pode denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos, meta-científicos, que seriam a epistemologia, para discutir as condições de possibilidade de um conhecimento científico ou de uma outra natureza, e a metafísica, para discutir as categorias, determinações ou, simplesmente, os conceitos dos conceitos empregados pelas demais formas de conhecimento, como são os conceitos de realidade, possibilidade, necessidade, causalidade, tempo, espaço, existência, número, contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência, indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a justiça, mas também o mal,  etc. Para efeitos mais didático do que por razões substanciais pode-se dividir em diversas (sub)áreas do conhecimento a metafísica, conforme privilegie alguns desses temas, de forma que do estudo de Deus se ocuparia a teologia (racional, e não aquelas dogmáticas, vinculadas a alguma religião positiva), assim como dos valores a axiologia, dos deveres ou obrigações – aí incluído temas como o das promessas, dádivas  ou realidades deônticas mais habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das questões pertinentes ao(s) mundo(s) a cosmologia e daquelas sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas relacionados ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A estreita conexão entre todas essas matérias, em que cada uma remete às demais, torna de todo relativas tais divisões, ao mesmo tempo em que suscita o interesse em promover a interdisciplinariedade “holística” dos estudos por meio da metafísica tal com aqui entendida. Quanto às denominações atribuídas às suas sub-divisões, são oriundas mais da etimologia, em correspondência com seu objeto, do que de qualquer outro significado que possam ter, a depender do contexto em que apareçam empregados os respectivos termos. Uma tal investigação há de ser feita racionalmente, empregando até, o quanto possível, um instrumental oriundo de ciências (formais) lógicas e computacionais.[66]
Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa denominação -  na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos romanos e, posteriormente, com uma versão (ou versões) muito particular(es) da religião monoteísta judaica, como é o cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de se impor ao mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por diversas formas, “imitá-lo”.
            A teoria a que se busca aqui uma via de acesso, introduzindo-a, então, precisa estar, por exemplo, fora do círculo em que os cultores da filosofia a aprisionaram e ali a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço do desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor espaço de tempo, sem parar e se perguntar do por quê, para quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um saber-fazer (know how), característica da (tecno)ciência, que tantos problemas vem solucionando, ao mesmo tempo em que muitos outros vai criando e, principalmente, deixando de enfrentar a brutalidade da existência - o chamado “absolutismo da realidade” mencionado por Hans Blumenberg (na obra “Arbeit am Mythos”, ou “Trabalhar o Mito”), insensível ao sofrimento consciente dos humanos -, por promover mais e mais o afastamento dela, evitando que com ela nos confrontemos, o que exige um tipo de saber mais próximo da mitologia, das artes e da religião, em suma, do imaginário, da imaginação - portanto, mais distanciado daquele “puramente” científico, formalista, positivista -, e isso sem que entre essas formas antípodas de saber se estabeleça propriamente um conflito, pois estão situadas em “quadrantes” diferentes daquele diagrama acima proposto, com o fito de auxiliar no mapeamento das formas de conhecimento da totalidade, nela situando, em posição de igual legitimidade que a das ciências, saberes como o da poética (mitológica, religiosa, artística, jurídica etc.): surgem, assim, questões que colocam em questão a própria ciência e o modo de organização social (também política, jurídica e, sobretudo, econômica, utilitário-capitalista) que a criou, sustenta e nela se sustenta, sem que dela possa obter a devida sustentação. Não é de estranhar, portanto, que tais questões não sejam tratadas e sejam mesmo, de certa forma, descartadas, pelo pensamento classicamente tido por científico, causando grande instabilidade, de ordem psicológica, ética e também política, jurídica, econômica, em suma, social, neste ser em aberto, carente de orientação e fixação de um sentido para sua existência, que somos os humanos. De tais questões, tradicionalmente, se ocupam as religiões, com sua forma (mito)poética de explicar o mundo, dando-lhe (e dando-nos) também algum sentido, e não há lugar para elas, tanto as religiões e os mitos - com sua força simbólica, que sempre deu sustentação à ordem social, através do direito e outros meios, os quais sem esta força não têm como bem desempenhar este papel crucial -, como para tais questões, na sociedade mundial tecnocientífica contemporânea, que tem na secularização um dos pressupostos de seu aparecimento e manutenção, tratando como falso o que não é para ser avaliado por este registro, pois uma metáfora não é mesmo para ser levada ao pé da letra. É para elas, então, que se volta a teoria aqui proposta, a partir do estudo do direito, sim, mas situando-o na totalidade das formas de conhecer e ordenar a realidade,[67] sejam aquelas mais propriamente normativas, acima qualificadas de “escatológicas”, como é o direito enquanto ordenamento da conduta humana, sejam aquelas “nomológicas”, como são as teorias, inclusive do direito. E ao assim proceder, pode-se esperar a obtenção de esclarecimentos também sobre essa totalidade mesma e sobre nós, que dela fazemos parte, como um seu “subconjunto próprio”, sendo ela um conjunto infinito - logo, um subconjunto que pode não ser menor que ela.[68]


Conclusão


            Eis que chegamos à conclusão de que a filosofia, já tendo servido à teologia, durante o período medieval, depois à ciência, e também à política, na modernidade, deveria ainda, em seus estertores, ser posta a serviço da arte, ou melhor, da poética, em uma última tentativa de salvar um mundo que ela, mais do que o expansionismo político-jurídico romano e o monoteísmo personalista cristão, serviu para criar, quando deixou de ser dialética, inconclusiva, sofística, para tornar-se exigência da verdade, filosofia propriamente. Aqui, a descrição da filosofia a aproxima da situação trágica em que se viu envolvido o famoso personagem da tragédia de Sófocles, Édipo. E tal como Édipo, a insistência da filosofia em perseguir a verdade, uma única verdade, em ser “alética”, portanto, e não mais, di-alética – ou “pluri-alética”, e, positivamente, “lética”, lembrando que lethein, em grego antigo, remete também ao esquecimento, sendo a-lethein o desvelamento, mas também, o “desesquecimento”, o rememoramento – é que a teria levado (ou estaria levando) ao encontro de seu fim, trágico. Filosofia, então, estaria bem se não servisse para nada, como postulava já Aristóteles, no início de sua “Metafísica”, mas ela terminou sendo empregada para os mais diversos fins, e agora parece estar a serviço do nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se mostra, por todo lado, nessa Civilização Ocidental, que se tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental -, e traz já em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda, da ruína, da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão” é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir todas as outras civilizações e, até, o próprio mundo, físico.
As coisas inorgânicas, por exemplo, como destaca Türcke,[69] “não sentem a contradição, mas fazem parte dela”. Sim, claro, não sentem por não terem sensibilidade, mas são a própria contradição, com a sua simples existência, já que sua densidade ontológica faz-se positividade, contrastando com a negatividade do nada. Já os seres orgânicos, animados, estes sentem, sim, a contradição, a que damos o nome de “dor”. E será contra o sofrimento que se mobilizará o “ser de pensamento”, o ser humano, linguajeiro, constantemente aterrorizado, perseguido pelo saber de que pode sofrer e, até, morrer. Se a dor é o mal e o bem ausência de dor, então temos que estes seres que nós somos percebemos como negatividade o bem, e positividade o mal. Para afastar essa idéia se desenvolverão religiões, sendo as mais eficazes aquelas monoteístas, que deslocam o bem supremo, todo o bem, para a divindade, supra-terrena, espírito puro, deixando o mal no mundo, na terra, na matéria impura, enquanto nós, humanos, “húmus da terra”, ficamos presos nessa contradição, oscilando entre os dois extremos. Tal contradição se desdobra em uma série de outras, inclusive naquelas conceituais, próprias da filosofia.
         E então, internalizamos as contradições, existentes na realidade e, sobretudo, no contraste da realidade com seu duplo, que fabricamos para melhor enfrentá-la, a linguagem, sendo o modo como as resolvemos que fará de nós o que somos – embora pareça contraditório, e é mesmo, o melhor para nós, individualmente, e para os que convivem conosco, é que adotemos a estratégia da dialética negativa com essas contradições, evitando tanto resolvê-las, superá-las definitivamente, de forma absoluta, como também desconsiderá-las, pretender cancelá-las, por uma cisão analítica entre o certo, positivo, e o errado, negativo, pois a negatividade é positiva e a positividade é negativa, a verdade é parcial e, conforme a famosa afirmação adorniana, contante da obra “Minima Moralia”, “o todo é o falso”, contrapondo-se frontalmente à máxima hegeliana, de que o todo é a verdade, assim como o real é racional e vice-versa.
Pode-se, então, falar em uma “negatividade dúplice”, sendo uma positiva e outra negativa, o que se expressa exemplarmente na arte, como bem explica um teórico contemporâneo que se costuma catalogar bem distante de Adorno, em um espectro ideológico das teorias sociais, mas que muito provavelmente com o assentimento dele o substituiu em Frankfurt, nas aulas interrompidas durante as manifestações estudantis de fins da década de 1960: Niklas Luhmann, autor de uma vigorosa teoria social sistêmica.[70] Em ambos, na verdade, para utilizar uma distinção do enciclopedista d’Alembert, resgatada por Adorno, está presente um “esprit systematique”, antes que o “esprit de système”, de um Hegel. Em “Die Kunst der Gesellschaft” (p. 473), Luhmann refere que na teoria estética de Adorno a arte aparece como uma negatividade a um só tempo positiva e, propriamente, negativa, ao se contrapor à falta de liberdade na realidade social com seu exercício de liberdade na sociedade, que, por isso, dela se beneficia, tornando-a positiva, valorizada socialmente, por expandir os limites dessa sociedade, ao alterar a subjetividade dos que a possibilitam, sem com ela se confundirem: os indivíduos.
            É assim que a estética se põe no lugar da ética, ou, pelo menos, do lugar tradicionalmente ocupado por ela. Ocorre que em ética, ou nas éticas em geral, já se dá por resolvida a questão de saber se apenas viver é bom, buscando o bom viver, o viver bem ou o viver para o bem, associando-se a vida ao bem e a morte ao mal, pois ser é que é bom e não ser, ruim. A tais éticas, afirmativas, porém, podemos contrapor um outro tipo de ética, negativa,[71] que ao evitar uma valoração positiva prévia do que é, em detrimento do que não é, pode tornar melhor vivida a vida de um ser, como nós, que a rigor não somos – no sentido em que, conforme defendemos em outro local, só Deus pode ser -, mas apenas existimos – enquanto Deus, porque é, não existe -, ocasionalmente.  Facilmente se percebe que a ética, ou seja, o saber sobre o que devemos fazer, do qual depende toda filosofia jurídica que não se reduza à esterilidade do formalismo positivista – negando-se, portanto, como filosofia para se tornar, na melhor das hipóteses, uma teoria do direito -, por seu turno depende fundamentalmente de respostas a outras questões, quer sejam de natureza metafísica, sobre o que é o ser, quer sejam de natureza teológica, ou melhor, religiosa, sobre o que podemos esperar do desfecho da vida. Dito de outra forma, e sinteticamente: a definição do modo como devemos nos comportar nessa vida depende da concepção que temos de seus limites – da morte, portanto. Os pressupostos de que necessitamos para desenvolver a filosofia, de um modo geral e  também sobre aspectos particulares – como, por exemplo, aqueles referentes ao direito -, deve possibilitar um entendimento de como nos situarmos em face de nossa finitude, individual, abrindo um horizonte, metafísico, de compreensão e superação de certos modos de relacionamento com tal questão que incita a ações e reações violentas. O melhor modo de enfrentar tais questões, transcendentais, é mobilizando os resultados obtidos no campo aqui qualificado de poético, onde encontramos as diversas formas de lidar com a imaginação, desde aquelas mais antigas, como a mitologia e as religiões, até outras, mais recentes, como a psicanálise, passando pelas diversas artes, a teologia e a própria filosofia, sem esquecer o direito, enquanto forma de responder aos reclamos de convivência entre os humanos que dispõe de um vasto repertório de soluções, necessitando de uma melhor apresentação, para assim recuperar seu poder de convencimento e vinculação intersubjetiva.



* Versão ampliada de texto enviado para publicação na Revista Nomos, do Curso de Mestrado em Direito da UFC.
[1] Cf. J.-P. SARTRE, L’Imaginaire, Paris: Gallimard, 1940, pp. 148 e s. Bem diferente em relação ao tema da imagem e sua importância é a postura de autor anterior a Sartre, que em seu tempo teve a mesma importância que ele, no cenário filosófico francês – e, logo, também mundial. Estou a me referir a Henri Bergson, cujo pensamento será retomado por aquele que sucederá Sartre, no centro das atenções do grand monde  filosófico: Gilles Deleuze.
[2] Las Estruturas Antropológicas del Imaginário, México (D.F.): Fondo de Cultura Económica, 2004 [1992], p. 35.
[3] Devo a referência ao “corte de Dedekind” a diálogo mantido com José Dantas (em 21.01.2010), que em manuscrito inédito sobre matemática a ele se refere, em um outro contexto, i.e., para definir número irracional, como “uma fenda existente em uma seqüência de racionais que o cercam sem nunca chegar lá”.
[4] Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, 2ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 200, sobre os números imaginários, e a nota 348, p. 198, sobre o que se vem de referir a respeito das investigações de Frege. v. tb. id., “Significado filosófico da matemática”, in: Revista Filosofia, n. 43, São Paulo: Escala, 2010.
[5] Cf. KELSEN, Teoria Geral das Normas, trad. José Florentino Duarte, Porto Alegre: Fabris, 1986 p. 328 e seg.: "Em obras anteriores falei de normas que não são o conteúdo significativo de um ato de vontade. Em minha doutrina, a norma fundamental foi sempre concebida como uma norma que não era entendida como o conteúdo significativo de um ato de vontade, mas que estava pressuposta por nosso pensamento. Devo agora confessar que não posso continuar mantendo essa doutrina, que tenho de abandoná-la. Podem crer-me, não foi fácil renunciar a uma doutrina que defendi durante décadas: a abandonei ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser o correlato de uma vontade (Wollen). Minha norma fundamental é uma norma fictícia, baseada em um ato de vontade fictício. Na norma fundamental se concebe um ato de vontade fictício, que realmente não existe".
[6] Cf. HANS VAIHINGER, Die Philosophie des Als-Ob, 1ª. ed. 1911, ed. popular (Volksausgabe), resumida, Leipzig: Felix Meiner, 1923
[7] Para uma exposição do intenso debate contemporâneo sobre o valor heurístico da ficção, inclusive no âmbito da filosofia analítica, cf. GOTTFRIED GABRIEL, “Sobre o Significado na Literatura e o Valor Cognitivo da Ficção”, in: O que nos faz pensar: Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, n. 7, 1993, p. 63 ss.; MARIO ANTONIO DE LACERDA GUERREIRO, O problema da ficção na filosofia analítica, Londrina: UEL, 1999.
[8] Cf. BARRY SMITH, “Meinong vs. Ingarden on the logic of fiction”, in: Philosophy and Phenomenological Research, 1978, p. 93 ss., disponível em http://ontology.buffalo.edu/smith; Id. e JOSEF SEIFERT, “The truth about fiction”, in: Kunst und Ontologie. Für Roman Ingarden zum 100. Geburtstag, W. GALEWICZ et al. (Hrsg.), Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1994, p. 97 ss.
[9] Cf.  Profanazioni, Roma: Nottetempo, 2005, p.  87.
[10] Citado em Teoria da Ciência Jurídica, cit., p. 238.
[11] Disso se mostram perfeitamente conscientes aqueles estudiosos de psicanálise da vertente londrina, kleiniana. No Brasil, cf., v.g., PAULO CESAR SANDLER, A Apreensão da Realidade Psíquica. Vol. VII, Hegel e Klein: A tolerância de paradoxos, Rio de Janeiro: Imago, 2003.
[12] Esta é a posição de VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Para uma etnogonia filosófica”, in: Revista Brasileira de Filosofia, 1954. V. tb. id.,  Filosofia da Mitologia e da Religião, in: Obras Completas, vol. I., São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, p. 299 ss.
[13] Aqui cabe suscitar a contribuição que pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. La Poética de la Ensoñación, trad.: IDA VITALE, México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 20. Essa é também a poética modernista proposta para as artes, desde Baudelaire e, mais radicalmente, por Apollinaire - cf., v.g., SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM, Guillaume Apollinaire: Fábula e Lírica, São Paulo: UNESP, 2003 -, que se engaja na produção de um mundo que revele possibilidades desapercebidas do real. Bachelard será reivindicado pelo “pai” do Surrealismo, André Breton, que se insere nessa tradição modernista, como ele próprio reconhece – cf. ANDRÉ BRETON, Conversaciones (1913 – 1952), trad.: LETÍCIA PICCONE,  México: F.C.E., 1987. E Gilbert Durand irá se colocar nessa linha, junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos “grandes românticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação do que Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar a matriz metafórica, imaginária, de onde emana todo a atividade mental humana, inclusive aquela mais redutora, a que aqui denominamos racionalizadora, dita racional - cf. ob. cit., p. 35. Nesse aspecto, vale lembrar a elaboração convergente da psicanálise kleiniana e de seus herdeiros intelectuais, da chamada Escola de Londres – cf., a propósito, RONALD BRITTON, Crença e Imaginação, trad.: LIANA PINTO CHAVES, Rio de Janeiro: Imago, 2003.
[14] Cf., v.g., o “Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte.
[15] Cf. MIGUEL ATTIÊ FILHO, Os Sentidos internos em Ibn Sînâ (Avicena), Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.
[16] Daí não ser nenhuma surpresa a afinidade heideggeriana de estudiosos do gnosticismo, como Henry Courbin, o primeiro tradutor de Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, mais recentemente, Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticos cristãos dos primeiros séculos, estando o homem “estranhado” de sua origem divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo, divindade inferior e invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-se aí um outro traço heideggeriano, na concepção de uma pluralidade de deidades -, não procede a definição corrente de que se trata de um animal, ainda que racional. Isso mesmo que em Heidegger, como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como o espanhol injustamente menosprezado Ortega y Gasset, não se suscite uma origem divina do humano, nem tampouco meramente natural, dada a distância do ser formador de mundo em relação ao que dele são desprovidos ou pobres – cf. Martin Heidegger, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: Marco Antônio Casanova, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o. cap., §§ 43 ss., p. 204 ss.; Antonio Regalado García, El laberinto de la razón:  Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza, 1990, p. 288 ss.  Sobre o papel na elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar, o Unheimlich, o qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que em Freud, v. ainda ERNILDO STEIN, Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre:  Ithaca, 1966, p. 100 s.
[17] Cf. MARTIN HEIDEGGER, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P. GIACHINI, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52.
[18] Para esse duplo sentido da palavra “transcendência” cf. JOSEPH CAMPBELL, Isto és tu. Redimensionando a metáfora religiosa, EUGENE KENNEDY (org.), trad.: EDSON BINI, São Paulo: Landy, 2002, p. 181 s.
[19] Daqui se origina a idéia de uma renovação da filosofia a partir da investigação do que somos na situação concreta, fática, da vida, proposta por Heidegger - no que se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal) ou, com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)”, pois para Heidegger, “acima da realidade está a possibilidade”. M. HEIDEGGER, Meu Caminho para a Fenomenologia, in: col. Os Pensadores, trad.:  ERNILDO STEIN, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 302; id. Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, vv. eds., p. 52.
[20] Cf. ERNST H. KANTOROWICZ, Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval, trad.: CID KNIPEL MOREIRA, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 181 ss., passim; PIERRE LEGENDRE, Leçons II: L’Empire de la Véritè. Introduction aux espaces dogmatiques industriels, Paris: Fayard, 1983, p. 109.
[21] GASTON BACHELARD, O novo espírito científico, trad.: REMBERTO FRANCISCO KUHNEN, São Paulo: Abril, 1978, p.119 (penúltimo parágrafo do cap. II).
[22] Cf. id., “Luz e Substância”, in: Estudos, trad. ESTELA DOS SANTOS ABREU, Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 63
[23] VICENTE FERREIRA DA SILVA, em “Reflexões sobre a ocultação do ser”, in: Ensaios Filosóficos, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p. 45 e s., tb. in: Obras Completas, vol. I., cit., p. 37.
[24] Migajas Filosóficas o un poco de filosofía, trad. Rafael Larrañeta, Trotta, Madri, 1997, p. 64,
[25] Em Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977. Para uma extensão do conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guattari para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. WINQUIST, Desiring Theology, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995.
[26] Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa, Petrópolis: Vozes, 2000.
[27] editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo) por Eugen Fink na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939), sob o título “Der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”, que aparece em Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie (abrev.: Krisis) como “Beilage III”, W. BIEMEL (ed.), La Haya: Martinus Nijhoff, col. Husserliana, vol. 6, 1962, pp. 365-386.
[28] Trad. do inglês para o português por MARIA APARECIDA VIGGIANI BICUDO. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponível na página da SE&PQ – Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos em http://www.sepq.org.br/ maria.htm.

[29] Crítica e Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 ss.
[30] Mas que bem se pode remontar a GUILHERME DE OCKHAM. Cf., v.g., LOUIS DUMONT, O Individualismo. Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna, trad.: ÁLVARO CABRAL, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, p. 76 s.; WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, Direito e Poder em Guilherme de Ockham”, in: Direito e Poder. Estudos em Homenagem a Nelson Saldanha, HELENO TAVEIRA TORRES (coord.), Barueri (SP): Manole, 2005, p. 188 s.
[31] Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Sobre a estrutura medieval do pensamento filosófico e jurídico” in: Revista Opinião Jurídica, n. 3, Fortaleza: Faculdade Christus, 2004, p. 9 s., e, mais amplamente, ANDRÉ DE MURALT, L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: PAULA MARTINS, São Paulo: 34, 1998; La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, Madri: Istmo, 2002.
[32] Para uma discussão desta obra, em conexão com o direito, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por uma crítica fenomenológica ao formalismo da ciência dogmático-jurídica” in: Revista Opinião Jurídica, n. 5, Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, p. 311 s.
[33] “Prolegômenos à História do Conceito de Tempo”, Seminário do Verão de 1925, Gesamtausgabe, vol. XX
[34] Sobre esse desenvolvimento em filosofia da matemática, cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Por que não é lógica a dialética, se é dialética a matemática?” in: id., Para uma Filosofia da Filosofia, Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1999, p. 39 ss.; tb. id., Teoria da Ciência Jurídica, loc. ult. cit.
[35] Cf. Filosofias da Matemática, São Paulo: UNESP/FAPESP, 2007, p.152.
[36] Cf. “Sobre a fenomenologia husserliana”, in: Id., “Subjectividade e História”, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1969, pp. 105 ss.
[37] Cf. ob. loc. ult. cit., p. 115.
[38] Cf. HUSSERL, Erste Philosophie, 1923/1924, 2a. parte, Husserliana, vol. VIII, 1959, p. 173, passim.
[39] V., p. ex., o “Manuscrito” EIII 4, 1930, p. 62, referido por Morujão, ob. cit., p. 135.
[40] Husserl, apud Morujão, ob. loc. ult. cit.
[41] Assim como nos parece os números seriam entendidos, se definidos como “conjuntos de conjuntos”, na esteira das colocações de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, em Principia Mathematica, quando então o zero, por exemplo, dessa perspectiva, seria definido como “o conjunto cujos elementos são todos os conjuntos vazios” – cf. JOSÉ DANTAS, ms.,  cit., p. 1.
[42] Cf., para uma retomada recente da contribuição de Foucault, com grande vigor, GIORGIO AGAMBEN, Signatura Rerum. Turim: Bollati Berlinghieri, 2008.
[43] Cf. Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, WALTER BRÖCKER e KÄTE BRÖCKER-OLTMANNS (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26. Também Husserl reporta-se a uma “metodologia arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reporta Nicoletta Ghigi, da Universidade de Perúgia (Itália), especialista em fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo pesquisas sobre os manuscritos inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica) - cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm, consultado em 1o./10/2006. V. tb. ANGELA ALES BELLO, Culturas e Religiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio Angonese, Bauru (SP): EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências Humanas, org. e trad.: MIGUEL MAHFOUD e MARINA MASSIMI, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187 ss.
[44] No sentido em que Paul Ricouer se refere às duas formas de hermenêutica, em seu texto fundamental sobre a simbólica do mal, contida em sua obra “O Conflito das Interpretações”, a saber, aquelas redutoras, voltadas para uma reconstituição do passado, ditas arqueológicas, em contraposição àquelas amplificadoras da imaginação simbólica (sinnbildende, como se diz em alemão, ou seja, literalmente, “construtora de sentido”), que se relacionam com o passado no registro do que chamamos em língua galego-portuguesa (e/ou luso-brasileira) de maneira singular de “saudade”, um anelo de voltar a viver com maior intensidade, no futuro, algo já vivenciado, em geral na in-fância feliz da existência, do que escapa às palavras mas se preserva nas imagens. A essa segunda forma de hermenêutica Ricouer denomina “escatológica”. Cf., especificamente, P. RICOUER, “Le conflit des herméneutiques, épistémologie des interprétations”, in: Cahiers Internationaux de Symbolisme, Paris, 1963, n. I, pp. 179 ss.; v. tb. GILBERT DURAND, A Imaginação Simbólica, São Paulo: CULTRIX/EDUSP, 1988, pp. 93 ss.  
[45] Para Vico, os primeiros poetas foram teólogos que com a sua teologia estabeleceram os fundamentos da organização política, inicialmente republicana, expressando-se através de “imagines humanae maiorum”, antes que por conceitos, como se faz em teologia natural ou racional. Cf. VICO, “Sinopsi del diritto universale”, in: Id.,  Il diritto universale, a cura di FAUSTO NICOLINI, Bari: Laterza, 1936, pp. 6, 7, 10 e 17. Daí ser para ele a poética uma sabedoria (sapientia), a se diferençar tanto das ciências, como a matemática, enquanto um emprego da razão com finalidade demonstrativa, como das “técnicas” (ars), de natureza preceptiva – e também daquelas disciplinas que, segundo ele, são em parte demonstrativas e em parte preceptivas, dando como exemplo a Medicina e o Direito, e preceptivas em um sentido mais amplo do que seria a retórica (oratoria) ou uma outra disciplina, que denomina imperatoria, designação que aponta para algo assim como o que outros chamariam “arte de governar”, pois aquelas prescrevem na forma do aconselhamento (consilia) combinado com demonstrações, enquanto esta últimas combinam os conselhos (consilia) com os preceitos propriamente ditos (praeceptis). Merece transcrição integral as passagens concernentes, nomeadamente, os “capítulos” (capita) XXXVI e XXXVII do Livro primeiro da obra acima referida, “O Direito Universal”, intitulado “De uno universi iuris principio et fine uno”, in: loc ult. cit, p. 50: “CAPUT XXXVI – DE VIRTUTE: Ab hac vi veri, quae est humana ratio, virtus existit et appellatur. CAPUT XXXVII [VIRTUS DIANOETICA ET VIRTUS ETHICA] – Virtus dianoetica: scientia, ars, sapientia.: Vis veri, quae errorem vincit, est virtus dianoetica, seu virtus cognitionis. Quae, si tota demonstratione constat, est scientia, ut mathesis; si tota praeceptis, est ars, ut grammatica, frenaria; si partim demonstratione partim consilio, ut medicina, iurisprudentia, vel partim praeceptis partim consilio, ut imperatória,oratória, poética, proprie ‘sapientia’ est appellanada”.
[46] Cf. FARIAS BRITO, Finalidade do Mundo, vol. I - “A Filosofia como Atividade Permanente do Espírito Humano”, publicado originalmente na Cidade de Fortaleza, em 1895  -, 2a. ed., Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957p. 128.
[47] Aristóteles em nova Perspectiva, Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
[48] Aqui estamos diante do que Herman Dooyoweerd, jusfilósofo e também pensador da totalidade - de uma perspectiva neocalvinista, reformada -, qualifica, em seu opus magnum, De Wijsbegeerte der Wetsidee (disponibliizado para download na rede mundial pelo governo holandês), como  a priori religioso de todo pensamento, inclusive o científico. Embora na versão para o inglês desta obra, posterior, o A. tenha retirado da noção de a priori, tal como empregada na expressão, o sentido transcendental kantiano, o próprio cerne “ideonômico” de seu pensamento implica a idéia de ordenação de tudo quanto se possa conceber e transmitir a partir de pressuposições sobre o sentido, qu em si têm natureza religiosa ou, como preferimos denominar, “mitopoética”, por abranger todo o campo do simbolismo, no qual se pode situar as religiões, como também as elaborações mitológicas, de natureza antes mágica do que religiosa, as artes, o próprio direito etc. Remonta a Platão a concepção de uma estrutura ideonômica do universo dos símbolos coroado, na visão platônica, pela Idéia do Bem (Rep., VI) – cf. Henrique de Lima Vaz, Ética e Direito, São Paulo: Landy/Loyola, 2002, p. 328. O termo é o que entendemos deva ser utilizado para traduzir a expressão-guia do pensamento dooyeweerdiano: wetsidee (vertido para o inglês como Law-Idea e para o alemão como Gesetzesidee).
[49] Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Lei, direito e poder em Guilherme de Ockham”,cit.;  Id., Sobre a cisão medieval de estruturas do pensamento filosófico segundo André de Muralt”, in: Crítica. Revista de Filosofia, vol. 9, números 29/30, Londrina:UEL/CEFIL, 2004, p. 251 ss.
[50] Cf. VALENTÍN FERNÁNDEZ POLANCO, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, in: Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2,  Madrid, 2003.

[51] A teologia metafísica do possível vai repercutir no pensamento daquele filósofo que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, da hermenêutica no solo da fenomenologia husserliana, que foi Martin Heidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez mais demonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, os estudos de filosofia de Heidegger foram antecedidos pelo estudo da teologia, e sua tese de livre-docência versou sobre Duns Scot – ou melhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Thomas de Erfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scot justamente pela estrita observância scotiana nela apresentada. Uma outra influência, talvez ainda mais decisiva, foi a do pensador religioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger se encontre esse pensamento da abertura para as possibilidades do ser (Sein) que ante si mesmo, aí (Da), pro-jetado, no mundo, tanto se mostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente, temporal e materialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico, essencial e espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade, donde um intérprete recente do pensamento heideggeriano tê-lo qualificado com uma “fenomenologia da liberdade” - cf. GÜNTER FIGAL, Fenomenogia da Liberdade, trad. MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, esp, p. 36 e s. E como diria o pensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito de angústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nós experimentada  - aperceptivamente, diria Husserl – como um possível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença no mundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, e também para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes - ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do que sugere Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, a transformação almejada, seja qual for, é resultado de uma prática orientada teoricamente, i. e., de um saber prático, sim, mas produtivo, logo, “poiético” -, e não de uma ação enquanto mera práxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva.  Um saber prático pode ser caracterizado como aquele que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu (ética, política e/ou juridicamente) fazê-lo, e como fazê-lo.
[52] Neste sentido, LUC FERRY, O que é uma vida bem sucedida?, trad.: KARINA JANNINI, Rio de Janeiro: DIFEL, 2004.
[53] Cf. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “(Im)possibilidade e Necessidade da Teologia”, in: Nós e o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo de Oliveira, Carlos Cirne-Lima e Custódio Almeida (orgs.), São Paulo/ Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível em http://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/  núm 12: http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf. Aqui se apresenta uma perspectiva da teologia que se pode qualificar como “narrativa”, à semelhança daquela derivada da filosofia hermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é uma perspectiva que se mostra estruturalmente compatível com as ciências, ou com o direito, concebido – e concebidas - como ficções de mundos possíveis, a partir dos dados fornecidos pelos objetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessa diferenciar tal perspectiva de uma outra, que consideramos foi tentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig Conrad-Martius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologia se aproxima dos conteúdos mesmos das ciências, se fazendo com tais elementos e, eventualmente, mostrando-se compatível com religiões – sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, de derivação judaico-cristã, o que nos parece algo a ser evitado ou, pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de dificultar o diálogo intercultural.
[54] Cf. "Autopoiese: a criação do que vive", in: Um novo paradigma em ciências humanas, físicas e biológicas, CÉLIO GARCIA [org.], Belo Horizonte, 1987.
[55] Cf. Ciência com Consciência, 3a. ed., revista e modificada pelo A., trad. MARIA D. ALEXANDRE e MARIA ALICE SAMPAIO DÓRIA, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, cap. 10, n. 8, p. 333.
[56] Ética e Economia, São Paulo: Ática, p. 33.
[57] Cf. ob. cit., cap. 6, p. 128 ss.
[58] Neste sentido, v. AQUILES CÔRTES GUIMARÃES, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, bem como nosso verbete “Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia do Direito, VICENTE DE PAULO BARRETTO (coord.), Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS): Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.
[59]  Cf., no âmbito da teoria do direito, por exemplo, o trabalho do holandês BERT VAN ROERMUND, Derecho, Relato y Realidad, trad. HANS LINDAHL, Madrid: Tecnos, 1997.
[60] Em The Possibility of Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 2001, logo na introdução.
[61] Varieties of Things, Oxford: Blackwell, 2005.
[62] Cf. Análise e Metafísica, trad. ARMANDO MORA DE OLIVEIRA, São Paulo: Discurso, 2002.
[63] Cf., v.g., O Ser e o Evento, trad.: MARIA LUÍZA X. DE A. BORGES, Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1996. Para um desenvolvimento recente da concepção de Badiou, cf. MEHDI BELHAJ KACEM, L´esprit du nihilisme. Une ontologie de l´Histoire, Paris: Fayard, 2009.
[64] Para uma primeira aproximação a este pensamento, bem como quanto às possibilidades de se estabelecer conexões entre ele e contribuições modernas, como as de Kant e Hegel, bem como aquelas contemporâneas, de Heidegger ou Apel, particularmente recomendável se nos afigura o livro editado em sua homenagem, Saber filosófico, história e transcendência, JOÃO A. MAC DOWELL (coord.), São Paulo: Loyola, 2002. Uma introdução “biobliográfica” encontra-se em MARCELO PERINE, Ensaio de iniciação ao filosofar, São Paulo: Loyola, 2007, pp. 117 ss.

[65] Cf. HANS REINER, “O surgimento e o significado original do nome Metafísica”, in: Sobre a Metafísica de Aristóteles (Textos Selecionados), MARCO ZINGANO (org.), São Paulo: Odysseus, 2005, p. 93 ss.

[66] A propósito, v. trabalhos recentes como Steps Toward a Computational Metaphysics, de BRANDEN FITELSON (University of California–Berkeley) e EDWARD N. ZALTA (Stanford University), bem como, deste último, Principia Metaphysica, disponíveis em  http://mally.stanford.edu/publications.html.
[67] No sentido referido por Werner Heisenberg em A Ordenação da Realidade, trad.: MARCO ANTÔNIO CASANOVA, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009 [1942], em que vemos uma convergência, ao que parece ainda inexplorada, com o pensamento de Herman Dooyoweerd, há pouco referido.
[68] Aqui, novamente, beneficiei-me do ms. antes referido de José Dantas, na parte sobre teoria dos conjuntos, bem como de contato pessoal com o A., na data registrada acima.
[69] Cf. Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa, Mimeo., Departamento de Filosofia: UNICAMP, 2001, in: www.filosofia.pro.br, “Escola de Frankfurt”.
[70] Para uma introdução a esta teoria v. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Teoria da Ciência Jurídica, cit., pp. 193 ss.
[71] Nesse sentido, JULIO CABRERA et al., Ética Negativa: Discussões e Problemas, Goiânia: EdUFG, 2008. V. tb. http://e-groups.unb.br/ih/fil/cabrera/portugues/etica.html

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