quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Nossa Origem Amorosa - Rousseau 300 Anos


         (Extraído do Cap. XIII do meu "Filosofia: uma Introdução"  )   
                       A origem mais remota da sociedade, segundo Jean-Jacques Rousseau, não é o contrato social, tal como ele expõe em sua mais célebre obra – ou nos fez supor, com sua leitura. No “Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação musical”, publicado postumamente, em 1781, e escrito após o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1754) – cuja leitura pode desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias de Rousseau, a saber, que o homem no estado de natureza seria bom, quando na verdade dele não se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não possuía, a rigor, uma consciência moral -, antecipa-se, corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da espécie humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
                        E Rousseau chega a essa conclusão por considerar que a humanidade surgiu em razão de contatos entre hominídeos onde mais escassa e necessária se tornou a água. Não foi, portanto, o fogo que fez surgir os homens, quando o domesticaram, nem o calor das fogueiras que forjou-nos a consciência, mas sim o frescor das águas de rios e lagoas, com as quais se saciava o corpo por dentro e o acariciava por fora, fazendo acender um outro fogo, “um fogo sagrado que conduz ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade”, e que depois nos atrairá para o fogo que aos outros animais assusta. E também em torno do fogo serão galvanizados os laços sociais que primeiro serão gerados na água, como a própria vida o foi. Mas agora deixemos com o próprio Rousseau a palavra:
“...nos lugares áridos, onde só os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para cavá-los, ou pelo menos entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a origem das sociedades e das línguas, nas regiões quentes.
Aí se formaram os primeiros laços entre as famílias, aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. (...) Olhos acostumados aos mesmos objetos desde a infância aí começaram a ver outros, mais doces. (...) Atraíam-se gradativamente uns e outros; esforçando-se por se fazerem entender, aprenderam a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras festas: (...) o prazer e o desejo, confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes brotaram os primeiros fogos do amor” (cap. IX).
            Eis que a origem de tudo o que nos diz respeito mais de perto, enquanto humanos, é a festa. Note-se como foi no encontro com desconhecidos e desconhecidas que a necessidade carnal se tornou paixão, a vontade se tornou desejo, e nosso corpo adquiriu consciência, consciência de que não é apenas um corpo, carne, mas um local de prazer, de onde se fala para obtê-lo. Seria a partir desse encontro, então, que assim como a carne crua passou a ser desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o sexo com os iguais e conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um primeiro momento, desinteressante, e, em seguida, proibido: surge a “primeira Lei”, aquela que Lévi-Strauss (1908 -    ) considera, a um só tempo, natural e social, em sua obra fundamental “As Estruturas Elementares do Parentesco” (Les structures élémentaires de la parenté”,1ª. ed. 1949), e que para o Dr. Sigmund Freud, como expõe em obras como “Totem e Tabu” (1912 – 1913) nos constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto. O civilista francês Jean Carbonnier, em obra de sociologia do direito, refere a tese, mas não entende que haja nas sociedades ditas primitivas a consciência de um caráter especificamente jurídico da regra que torna "tabu" o incesto. Para os membros dessas sociedades a coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se esse fosse "uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física, frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vivido, e não simplesmente uma máxima pensada".
                        Bem diferente são as coisas em sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel.
                        O caráter em si mesmo repressivo da escritura, especialmente aquela fonética, com alfabeto, é suscitado por Jacques Derrida (1930 – 2004), em sua obra “Gramatologia” (De la gramatologie, 1ª. ed. bras. 1973), na esteira de J.-J. Rousseau: "Mais racional, mais exata, mais precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do canto, isto é, da origem viva da linguagem.(...) Correspondendo a uma melhor organização das instituições sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a presença soberana do povo reunido". A representação abstrata através da escrita é empregada na elaboração de normas jurídicas na forma de decretos redigidos por representantes políticos que "falam", i.e., escrevem e lêem a lex, enquanto os representados "emudecem". Nessas condições, "o corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de sua destruição" (Rousseau, "Du contrat social", Livro II, cap. XI, apud Derrida, ob. e ed. cits., p. 363).
            Em nossa sociedade, como disse Foucault, na famosa aula inaugural no Collège de France, “A Ordem do Discurso”, de 1970, "há juizes da normalidade em toda parte. Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do <<assistente-social>>-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos".
          Para uma representação literária dessas idéias, podemos remeter à obra de Franz Kafka (1883 - 1924). O conto "Na Colônia Penal" (In der Strafkolonie - 1ª. ed. 1919), por exemplo, aborda exatamente esse ponto, quando nos apresenta um aparelho de punição que inscreve no próprio corpo dos condenados o crime que teriam cometido, com uma caligrafia complicada e indecifrável, causando um sofrimento enorme, o que conduziria o imputado à compreensão e arrependimento do erro cometido. Entre muitos aspectos suscitados no trabalho de Kafka, destacaria apenas a observação de que do inventor de tal máquina de punição é dito que era a um só tempo "soldado, juiz, construtor, químico e desenhista", como que a dizer, tal como Foucault, que também a ciência, a tecnologia e até as artes estariam envolvidas no empreendimento repressivo do corpo, juntamente com os poderes institucionais.
                        A modelagem que o poder impõe aos corpos é bem nítida nos militares, com sua postura "espigada", esticados para cima, por estarem como que espremidos entre os muros de proibições construídos para pautar seu desejo. Elias Canetti, na obra Masse und Macht (“Massa e Poder”), de 1960, nos fala de tais "muros", que os militares não podem alegar desconhecer e devem "se movimentar como se eles estivessem sempre ao seu redor. O aspecto anguloso do soldado é como um eco, em seu corpo, da dureza e da lisura desses muros; ele adquire algo de uma figura estereométrica".
                        Um fator importante de disciplinamento dos corpos e seus desejos, tanto em corporações militares, como entre os membros de ordens religiosas, estudantes, empregados de hospitais e de empresas em geral, é o uso de uniformes. Nos ambientes de trabalho, quando não se prescreve o uso de uniformes, se proscreve o uso de um vestuário mais exuberante, que corresponda ao gosto do usuário, à seus desejos e espontaneidade, sem levar em conta prejuízos psíquicos daí decorrentes. Em geral, há ainda toda uma regulamentação não-explícita a respeito do vestuário, determinando o tipo de roupa adequado a cada sexo, e em que pese a opinião do mais importante filósofo do direito inglês, no século XX, Herbert L. A. Hart (1907 – 1992), em sua influente obra sobre o conceito de direito, no sentido de  que as regras a respeito do modo de se vestir são desprovidas de importância,[1] se pode observar repercussões no plano jurídico da recusa em obedecer tais regras, em determinadas circunstâncias. Exemplo disso é fornecido pelos próprios advogados, constrangidos a usar terno e gravata em nosso clima tropical, para não falar dos juizes, togados, por exigência da liturgia do exercício eficaz do poder, por meios encantatórios presentes em toda sociedade, desde aquelas ditas primitivas até aquelas que, como a nossa, se consideram desenvolvidas (ou, às vezes, o que é pior, “sub-desenvolvidas”).  


[1] Cf. O Conceito de Direito, trad. A. Ribeiro Mendes, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986, pp. 188/189.

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